Como um cinéfilo inveterado, estive entre as centenas de pessoas que foram assistir à antestreia mundial do filme «Os Dois Irmãos», uma co-produção da Take 2000 de Portugal e do Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas, baseado no célebre romance de Germano Almeida.
(Aviso: esta crónica contém algumas revelações sobre o enredo.) Confesso que as minhas expetativas quanto ao filme não eram as mais altas, não por duvidar das qualidades dos atores, que a maioria nem sequer conhecia, ou do realizador, mas pelo simples facto de ver um filme de um enredo tão genuinamente cabo-verdiano e passado nas entranhas do interior de Santiago… mas falado em Português!
Ainda antes de iniciar o filme discutia este aspecto com os meus colegas jornalistas ali presentes. Descontando o requinte do palco do evento e o “espectáculo glamoroso” com direito a tapete vermelho e a gente muito bonita e bem vestida, o ambiente lembrava as antigas e quase extintas grandes salas de cinema e até deu uma certa nostalgia dos bons velhos tempos do cinema do Sal, actualmente CineAsa, do cinema municipal da Praia e do Cine Eden Park, sem os empurrões e as zaragatas nas filas de bilheteria.
Porém, aquela desconfiança teimava em manter-se presente na minha cabeça, até que as luzes do espaço se apagaram e deram lugar ao brilho da tela gigante com as primeiras imagens do filme que começa com a chegada de um dos personagens principais, o irmão mais velho, André (Flávio Hamilton), à sua pacata aldeia que deixara três anos atrás, com destino a Lisboa onde vivia e trabalhava nas obras.
Para quem não leu o livro magistral de Germano Almeida, o enredo (sinopse) do filme retrata a disputa entre dois irmãos, André e João (Che Gonçalves), que regressa à sua aldeia em função da carta do pai (Agnelo Duarte) a contar que João dormira com a esposa de André, Maria Joana (Janeth Tavares). Seis meses depois, pressionado pela tradição da sua localidade e pela “indignação” do pai, sobretudo, como de toda a aldeia, André acaba por matar o irmão naquele que é um dos momentos altos do filme e do livro, numa espécie de interpretação moderna da saga de Caim e Abel contada na Bíblia.
O realizador mantém-se fiel ao livro na construção da narrativa, até porque trata-se de um daqueles romances predestinados a ser transportado para a tela, quase que em argumento já pronto a ser filmado. O desenrolar da história, a partir do julgamento, pelo sistema judicial, já que o veredito do julgamento popular (exceptuando a mãe dos dois Irmãos que sofre com o destino dos filhos) considera que André estava forçado a “limpar a honra da família” caída em desgraça com tão alta traição de João.
A dor e a luta de André entre fazer o que se lhe cobravam todos e voltar a ser aceite pelos seus e o amor pelo irmão caçula, está tudo lá e Flávio Hamilton tem um desempenho muito bom, como a maioria do casting.
Porém, do início ao fim do filme, que aplaudi de pé como todos os outros, ainda que me tenha satisfeito, sobretudo pela fotografia que transforma em beleza a paisagem árida das montanhas e vales de Chã de Tanque, Rincão e Ribeira da Barca (concelho de Santa Catarina), onde foi filmado a obra, e a música que ajuda a compor o clima e é fantástica, ficou sempre aquela inquietação de que muito mais valia e realismo teria tivessem os atores falado em crioulo. Sobretudo o pai.
Diz, mais ou menos assim, o próprio Francisco Manso que um dos objectivos é a promoção da história e cultura cabo-verdiana. Não será a língua crioula parte integral e indissociável da cultura e de um povo.
Uma história, baseada em factos verídicos, e que se passa no coração do Santiago profundo, ainda mais em 1976, com gente simples a falar num português tão bom e muitos sem qualquer sotaque, confesso que me fez alguma confusão e acaba por retirar um pouco da autenticidade da estória. Bastas vezes ficava à espera de uma fala, um termo genuinamente santiaguense tipo “xuxadera” e ela nunca vinha…
Curiosamente, o próprio Germano, que até já se mostrou algo adverso à oficialização do crioulo - utiliza-se, assumidamente, de um português crioulizado para emprestar mais autenticidade às suas narrativas.
Não estaremos aqui a cobrar de Francisco Manso que assuma a bandeira da oficialização do crioulo ou nada disso, mas não consigo deixar de pensar que seria uma “bonita” oportunidade de se elevar ainda mais a nossa língua mãe que merece de nós o mesmo carinho e respeito que se nos merece a língua de Camões, também nossa, mas nunca tão nossa quanto àquela que se nos difere dos outros e faz de nós quem somos enquanto povo e enquanto nação.
De qualquer forma, bem-haja esta obra que, sobretudo, mostra que em Cabo Verde também temos gente talentosa nas artes cénicas e que, dada a oportunidade podem conquistar as telas do mundo.
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