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Médica responde artigo de Manuel António Torres. "O sofrimento não pode ultrapassar a verdade."
Ponto de Vista

Médica responde artigo de Manuel António Torres. "O sofrimento não pode ultrapassar a verdade."

Delaman.NET

A perda de um ente querido traz sempre muito sofrimento. É um período conturbado e difícil, pois é preciso reaprender a viver sem a pessoa falecida. Contudo muitos aspetos relacionados com a boa convivência entre as pessoas podem facilitar e aliviar este processo doloroso.

É certo que o processo do luto possui varias fases , sendo que inicialmente a negação e a raiva são os sintomas predominantes. Nesta fase tenta-se culpar os que estão a nossa volta, os profissionais de saúde entre outros, pelo desfecho desfavorável. É o que descreve a literatura científica!

Apesar de compadecer com a família pela triste perda, acredito que o sofrimento não pode ultrapassar a verdade.

Efetivamente uma consulta de 30-45 minutos , não nos permite conhecer e julgar os outros. Se bem me recordo, consultei a Senhora mencionada no artigo quatro vezes e o senhor a acompanhou apenas na última consulta. Por isso não teve oportunidade de apropriar-se da história médica do seu familiar.

Recordo que a paciente a citada no relato do Sr. Manuel António Torres iniciou queixas no início do ano de 2020 e procurou a consulta especializada no segundo semestre do referido ano. Na primeira consulta foi aventada a hipótese de lúpus eritematoso sistémico (LES) e solicitado exames que vieram a confirmar a suspeita. Assim, na segunda consulta foi estabelecido o diagnóstico e medicada em conformidade. A doente apresentava concomitantemente sintomatologia não relacionada com o LES pelo que também foi orientada para observação de outras especialidades. Nessas consultas o Sr. Torres nunca compareceu!

No dia 10 de dezembro a irmã do Sr. Manuel Torres foi a central de consulta do HAN, sem marcação prévia e ainda assim foi observada por mim. Nesta altura o senhor também não estava presente!

A paciente apresentava sintomatologia suspeita para COVID 19 e foi orientada para a ala que o hospital criou para observar esses doentes, e portanto não faria sentido e seria contraproducente eu internar uma paciente com suspeita de COVID 19 num outro setor. Quando a utente saiu da consulta não programada, levou uma informação clínica para o médico que estava no atendimento dos casos suspeitos. Talvez se o Sr. Manuel Torres estivesse a acompanhar a sua familiar na consulta poderia ter entendido esta situação, o que o impediria de tirar conclusões de uma situação em que não esteve presente. Antes da paciente sair, remarquei a próxima consulta para a semana seguinte.

Assim como faço com todos os pacientes que acompanho, informei a senhora que o meu dia de consulta externa é na quinta feira, mas que havendo necessidade estaria disponível para a observar (assim como já tinha ocorrido em outras circunstâncias ) na enfermaria onde trabalho, em qualquer dia. Mais uma vez o senhor não estava lá!

A utente regressou a consulta no dia 17 de dezembro e apesar de ter cerca de 10 pessoas a aguardar atendimento antes dela, priorizei o seu atendimento.

Isto penso que o senhor se lembra! Sendo a primeira vez que a senhora vinha a consulta acompanhada do irmão, informei-o sobre a situação que motivava o seguimento pela especialidade e o prognóstico. Apesar de ser uma doença complexa, muitos doentes conseguem ter boa qualidade de vida. Aqui abro parentese para acrescentar que a paciente em questão já tinha tido algumas convalescenças, passada por mim, a médica insensível! Mas também o senhor não estava presente nessa altura.

Nos países desenvolvidos, é comum haver associações de doentes com a mesma patologia, pois é certo que a troca de experiencia é benéfica. Creio que não é preciso ser médico para se saber que as pessoas são diferentes, e não são diferente apenas no aspeto físico, mas também no aspeto psíquico, social e espiritual. Cada pessoa é um ser único!

Continuando com os aspetos clínicos, e destacando aqui apenas aqueles que não comprometem a dignidade da paciente, saliento que assim que cheguei a consulta externa observei a paciente e constatei que mantinha o quadro respiratório. Naquele momento iniciei os contactos para saber o resultado do teste de PCR para SARS COV 2 pois até então a doente e a família não tinha o resultado. Lembra-se Sr. Manuel Torres?

Iniciei procedimentos (que não são de consulta externa e sim de urgência) que me permitiriam avaliar se o paciente tinha critérios de internamento. Solicitei de imediato todos os exames urgentes incluindo gasometria de sangue arterial (que eu própria fiz) e analises de urgência.

Neste ponto aproveito para informar que a assistência médica no hospital desenvolve-se em 3 modalidades. Na enfermaria (doentes internados), na Urgência ( doentes com uma situação clínica aguda ou crónica que tenha agravado) e na Consulta externa ( doente com situação clínica estável). Cada um desses setores esta equipado e preparado para dar resposta ao tipo de assistência prestado.

Os outros doentes tiveram que esperar mais de uma hora para serem atendidos e curiosamente ninguém reclamou, pois tiveram solidariedade e perceberam que a situação da sua familiar era de urgência e não de consulta. Apesar de estar na consulta externa, foi-lhe prestado todos os cuidados possíveis naquele serviço, que conforme já informei, não é um serviço destinado a situações de urgência.

Gostaria que tivesse estado presente mais vezes na consulta pois se assim fosse iria perceber  o seu funcionamento e o grande apreço que nutro pelos pacientes que faço seguimento e que são verdadeiros heróis, pois não é fácil viver com doenças crónicas. Mas mesmo assim tentam levar uma vida normal e apoiam-se uns aos outros trazendo esperança, criando laços de amizade verdadeira e honesta.

O Sr. Manuel Torres sabe que o seu familiar não faleceu devido ao Lúpus! Apesar dela ter a doença, esta estava controlada. Assim como qualquer outra pessoa, a sua familiar teve uma doença aguda e faleceu desta doença que a acometeu subitamente e não do LES.

Termino a minha exposição apelando a todos que tenham compaixão e respeito pela dignidade humana.

Existem varias formas de aliviar o sofrimento sem ultrapassar alguns direitos humanos, nomeadamente a privacidade e o respeito.

As suspeitas de má conduta devem ser averiguadas primeiramente e denunciadas aos órgãos competentes. Vamos todos nos respeitar uns aos outros pois este é o caminho, para uma sociedade mais consciente e interventiva, rumo ao progresso da nossa nação.

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