A democracia cabo-verdiana, como tantos têm dito e escrito, padece de sérios problemas. Aquele Cabo Verde que se auto-proclama “exemplo e farol da democracia em África” não existe (por mais que a nossa esperança seja imortal)! É um mito fabricado por discursos políticos nacionais e internacionais baseados em indicadores que mentem. Os cabo-verdianos estão famintos de liberdade, este princípio Constitucional supostamente inviolável. O próprio Estado cabo-verdiano, através de seu braço armado, tem sucessivamente humilhado os seus. A desumanização dos cidadãos tem sido uma prática corrente nestas ilhas ditas afortunadas (para quem, perguntamos?) ainda (orgulhosamente) anexas à metrópole.
Quem garante e defende os direitos dos cidadãos num país onde impera a violência policial?
Em Cabo Verde é proibido a um cidadão comum registar imagens de intervenções policiais na via pública! Foi o que nos disse, em jeito de sentença, para nossa surpresa, um agente policial cabo-verdiano, no dia 12 de fevereiro, aquando da manifestação pela regularização salarial (entre outras tantas reivindicações) dos professores cabo-verdianos na cidade da Praia. Manifestação esta que, diga-se de passagem, contou com um aparato policial tal que levava a crer que os manifestantes, profissionais da educação, constituíam uma ameaça à segurança interna do país, ou mesmo fazendo pensar que eram uns marginais ou potenciais terroristas.
Ficamos ainda a saber, pelos polícias, que, ao filmá-los, estaríamos a violar o seu direito à imagem e isso configura um crime. Segundo um dos agentes, em Cabo Verde a polícia e somente ela, a par dos jornalistas, tem o direito de registar imagens na via pública. Estupefactos, chegámos a perguntar onde poderíamos consultar essa curiosa informação e foi-nos dito que precisávamos estudar. Lembrando Cabral quando disse “quem sabe ensina quem não sabe”, respondemos que era exatamente por motivos de estudo que estávamos a pedir aquela informação e que nos ensinassem, pois consideramo-nos meros estudantes, como consta, assim esperamos, do auto que fizeram, segundo a informação que facultaram.
Curiosamente, o artigo 77º do Código Civil cabo-verdiano, relativamente ao direito à imagem, diz o seguinte no ponto 2: “Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de fatos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente.”
De facto, o direito à imagem está consagrado na Constituição cabo-verdiana no seu artigo 40º e todos os cidadãos, independentemente da profissão (inclusive o polícia enquanto indivíduo), têm esse direito. Contudo, como o próprio Código Civil mostra, qualquer cidadão pode, nas condições supra expressas, registar imagens de instituições públicas. A polícia é uma instituição do Estado! Durante uma atuação na via pública, o agente policial está em representação do Estado e não da sua pessoa individualmente, cremos nós. O cidadão tem todo o direito (e dever) de fiscalizar a atuação do Estado e, sobretudo, do seu braço armado, a polícia. Considerando o caráter arbitrário do poder, registar o modo como o Estado atua contribui para tornar a democracia mais possível.
Sendo assim, parece absurdo a Polícia alegar que o seu direito à imagem deva ser respeitado e, na mesma frase, afirmar que ela sim pode fazer tal registo de um cidadão comum. E, se calhar até pode, em algumas circunstâncias. Mas apenas ela? Afinal, será a Polícia uma instituição cujos membros estão acima dos restantes cidadãos? Serão eles, os agentes policiais os melhores filhos desta terra? Súper cidadãos? Não deveriam ser, pelo contrário, servidores públicos cuja função é EXATAMENTE defender a legalidade democrática e o exercício dos direitos dos cidadãos como estipula a própria Constituição cabo-verdiana no artigo 240°? Em que mundo vivemos? E pode um agente policial, devidamente fardado, arrancar a sua identificação (onde consta o seu nome), apenas porque um cidadão procura “identificá-lo” da única forma que lhe é possível? Pode um agente policial (ab)usar do poder que pensa possuir para tocar o corpo de um cidadão sem que este receba qualquer informação que vai ser identificado/revistado? Não é exatamente o Estatuto da Polícia Nacional de Cabo Verde, no seu artigo 74º, a dizer que os agentes devem reger-se por princípios que “proporcionem um relacionamento adequado com os cidadãos, usando de correção e de boa conduta, em serviço ou fora dele”?
“Independência para quê?”, indagava Cabral. Parafraseamos a resposta que deu a um jornalista em Conacri: Para termos direito à nossa terra, mas também aos nossos corpos. Portanto, tocar o corpo de cidadãos ainda não identificados e em jeito de intimidação é violar uma das razões principais da nossa independência. O direito a sermos nós mesmos com tudo o que nos identifica, mormente o nosso corpo.
Esses direitos estão consagrados na Constituição que o povo cabo-verdiano forjou com muito sacrifício. Uma Constituição cuja densidade de valores e princípios, honra, dizem alguns, os cidadãos. Mas, quando se confronta o “país Constitucional” com o país real, é notório um enorme desfasamento entre “o proclamado e o praticado”. Um fosso abismal que torna cada vez mais urgente a necessidade de “cumprir a Constituição”, esta carta magna que, longe de qualquer dogmatismo, tem no respeito e preservação da dignidade de cada cidadão, uma missão inalienável.
No nosso entender, o abismo entre o que está legislado e a prática social tem permitido, simultaneamente, sonegar os direitos do povo em benefício dos interesses das elites. O desfasamento entre o que está codificado e o que realmente acontece é, indubitavelmente, sintoma da sombra do autoritarismo que ainda paira sobre o Estado.
Todo este mirabolante cenário, num país que se ufana de ser Estado de Direito e farol da democracia em África (esta África que, em boa verdade, despreza), teve lugar num contexto mais amplo onde aconteceu uma manifestação dos professores, profissionais que são a espinha dorsal desta sociedade cuja maior riqueza são as pessoas, sobretudo quando formadas, mas que têm sido tratados como classe descartável, sucessivamente precarizados e desprezados pelo Estado. Eles que têm a função de tornar possível o que o agente nos sugeriu fazer: “estudar”.
Aliás, sendo os polícias fruto da educação dos professores, seria desejável uma solidariedade da sua classe para com as reivindicações destes. Ousamos ainda dizer que é imperiosa a solidariedade de todas as classes profissionais em manifestações, ainda que específicas, como esta.
A manifestação de 12 de fevereiro mostrou ainda que, em Cabo Verde, os professores não têm direito a sair à rua (embora este direito esteja plasmado na Constituição nos seus artigos 28º e 52º). Não obstante a manifestação ter sido autorizada, os professores foram impedidos de aceder ao destino das suas reivindicações (o Palácio do Governo), por uma barricada e um cordão policial, quando tinham o direito de estar a pelo menos 100 metros deste local, o que não aconteceu por imposição da força muscular, bélica e intimidatória do Estado.
A democracia cabo-verdiana, como tantos têm dito e escrito, padece de sérios problemas. Aquele Cabo Verde que se auto-proclama “exemplo e farol da democracia em África” não existe (por mais que a nossa esperança seja imortal)! É um mito fabricado por discursos políticos nacionais e internacionais baseados em indicadores que mentem. Os cabo-verdianos estão famintos de liberdade, este princípio Constitucional supostamente inviolável. O próprio Estado cabo-verdiano, através de seu braço armado, tem sucessivamente humilhado os seus. A desumanização dos cidadãos tem sido uma prática corrente nestas ilhas ditas afortunadas (para quem, perguntamos?) ainda (orgulhosamente) anexas à metrópole.
Indo mais longe, como é possível que a polícia cabo-verdiana celebre o ano de 1872 como data da sua fundação, quando o próprio Estado cabo-verdiano data de 1975? Como é possível uma instituição policial ser anterior à fundação do Estado que esta integra e serve? Será por tal motivo que a prática desta instituição continua a ser muito violenta, intimidatória e repressiva? Parece que não é apenas a data colonialista que a instituição policial reclama, mas também as práticas coloniais de mordaça, a docilização dos espíritos democráticos e a cultura de servilismo.
Em todas as gerações houve quem sentisse que este país precisa de um novo amanhecer, um amanhecer diferente, para parafrasear um grande poeta destas ilhas. A nossa geração já não quer apenas “construir uma outra terra dentro desta terra”, como escrevia, e muito bem, em contexto diverso, Aguinaldo Fonseca também ele poeta, mas sim reivindicar esta terra (e este mar) na sua totalidade para poder habitá-la plenamente de forma digna como cidadãos africanos que somos. Sem medo de circular, sem a urgência nem o dilema de ter de partir, sem a afronta de baixar a cabeça e estender as mãos para receber a palmatória. A nossa geração já não se contenta com pouco nem com muito, queremos cada dia mais e melhor, queremos tudo!
As coisas não podem continuar como estão. É preciso que todas as forças vivas deste país se juntem para afirmar que todo o poder pertence às pessoas, ao povo africano das ilhas.
ABAIXO a ditadura lusotropicalista cabo-verdiana.
ABAIXO o Estado policial-colonial.
ABAIXO a brutalidade e bestialidade policiais em Cabo Verde.
ABAIXO todos os cães e lacaios do colonialismo.
SOLIDARIEDADE com todas as classes unidas na luta pela transformação e descolonização total deste país.
MORTE ao imperialismo em todas as suas facetas.
VIVA o povo cabo-verdiano.
A luta continua!
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