Não creio que seja fácil, sem sair da esfera do racional, encontrar quem possa descobrir uma justificação, uma única sequer, para semelhante fenómeno.
É que ele, o fenómeno, assume contornos tão absurdos que mesmo quaisquer explicações que se tentasse avançar teriam que ser construídas rebuscando e analisando eventuais taras e alienações trazidas de um passado que todos devíamos tentar conhecer e compreender para melhor podermos continuar, com um mínimo de lucidez, a tarefa de edificar e consolidar a nossa matriz identitária.
O colonialismo tinha a sua lógica a que nós nos opusemos.
Nós também temos (ou pelo menos devíamos ter) uma lógica nossa a que os saudosos do tempo da dominação colonial naturalmente se opõem.
Ao colonialismo interessava, logicamente, dividir para enfraquecer e reinar.
A nós devia interessar, acima de tudo, unir para fortalecer e avançar.
Em Cabo Verde, o regime colonial-fascista, como lhe competia, criou e modelou a sua estratégia de acção levando em conta as particularidades geográficas, climatéricas, sociais, económicas e outras do Arquipélago e das suas gentes. Assim, as secas, as fomes, a pobreza, a escassez de recursos naturais, a miscigenação, aparecem como elementos a suportar essa estratégia que, como não podia deixar de ser, marcou profundamente a nossa personalidade e o nosso carácter.
O poder colonial, através dos seus agentes, procurou incutir no cabo-verdiano, por diversas vias, um enorme desprezo por tudo quanto cheirasse a África e daí, naturalmente, a tentativa sistemática de destruir todos os vestígios de manifestações culturais de raiz africana, visando criar a conhecida e triste figura do “preto de alma branca” tão do agrado dos governantes de então.
Aliás, até certo ponto, o poder colonial conseguiu os seus intentos e somos nós próprios a confirmá-lo, através do nosso comportamento, da nossa postura perante a África, das letras de algumas das nossas canções, dos nossos ditados, de certas brincadeiras nossas aparentemente inofensivas.
Mas essa cruzada de “promoção” do cabo-verdiano a “europeu de segunda categoria” pela via do “branqueamento mental” (já que outro tipo de branqueamento seria um tanto complicado) encontrou um sério obstáculo que era precisamente a Ilha de Santiago, a maior e a mais populosa de todas.
É que Santiago, que sempre albergou mais de metade da população do Arquipélago, foi desde as origens, por razões decorrentes do seu próprio povoamento, a mais africana das ilhas e, talvez por isso, aquela que mais resistiu à tentativa de “limpeza” cultural, mesmo quando era obrigada, na clandestinidade, a defender e a manter vivos, por vezes em circunstâncias bem difíceis, os valores que hoje integram o substrato da nossa identidade.
A Administração Colonial, utilizando as armas ao seu dispor, tudo fez para esvaziar Santiago da sua identidade.
Apesar disso, apesar de todo o esforço feito, apesar de todas as sequelas negativas decorrentes de uma tal política, nada impediu que, com a queda do regime colonial, as manifestações culturais santiaguenses, que tinham sido fortemente reprimidas, tivessem irrompido em toda a sua pujança e estendido a sua influência a todo o território nacional.
Para o poder colonial, a Ilha de Santiago era a “ovelha negra” do grupo. E eram os próprios cabo-verdianos que, na altura, o diziam: “Se não fossem os pretos de Santiago, os badius, poderíamos ser Ilhas Adjacentes”.
Não sendo, pois, possível “branquear” suficientemente Santiago, a solução seria “despromovê-la” e “diminui-la”, sociologicamente claro, de tal forma que a sua influência no panorama social, económico e cultural do Arquipélago fosse a mais reduzida possível.
Assim, a Praia, apesar de ter conseguido manter-se como capital de Cabo Verde, nunca passou, durante todo o tempo colonial, de uma minúscula cidade administrativa, de características provincianas e sem quaisquer possibilidades de influenciar e muito menos de liderar o Arquipélago nos planos social, cultural e económico.
As únicas instituições de ensino secundário na altura existentes (a clássica e a técnica) foram colocadas fora de Santiago. E mesmo quando, na década de cinquenta do século passado, se tornara inevitável a criação de um Liceu em Santiago, houve vozes cabo-verdianas, até de intelectuais tidos como consagrados, que a isso se opuseram alegando que para Santiago bastava uma escola de formação na área da agricultura e pecuária pois essa era a verdadeira vocação da Ilha.
Sem um cais acostável, que só muito mais tarde viria a ter, toda a vida comercial e económica de Santiago decorria através do Porto Grande de S. Vicente.
Santiago era pois, na época colonial, uma ilha fortemente espartilhada, deliberadamente impedida de dar a todo o Arquipélago a contribuição que podia e devia dar.
Com o advento da independência, em 1975, muita coisa mudou.
Todas as forças culturais do País e da Ilha foram finalmente libertas. O batuque, a tabanca e o funaná ganharam foros de cidadania. Os escritores escreveram, os pintores pintaram, os compositores compuseram. Katcháss mostrou o caminho da dignificação do batuque, da tabanca e do funaná e vozes poderosas como as de Bibinha Cabral, Nácia Gomi, Zeca e Zézé di Nha Renalda, Ntóni Denti D’ôro, Sema Lopi, Caetaninho, Kodé di Dona, para só falar dos mais antigos, como que surgiram de entre as pedras e deram a conhecer toda a força e toda a profundidade do nosso finaçon.
Santiago se revelou então, para espanto de muitos, incredulidade de alguns e desagrado de outros tantos, como o maior repositório dos valores sobre os quais devem também assentar a nossa identidade e a nossa cultura. E os cabo-verdianos de todas as ilhas puderam conhecer e apreciar aspectos interessantíssimos da nossa vivência colectiva que durante muito tempo tinham sido desprezados e condenados a uma clandestinidade envergonhada.
Mas nem por isso a Grande Ilha se livrou por inteiro dos espartilhos que lhe tinham sido impostos.
Durante os quinze anos da 1ª República, a participação de Santiago na vida política, social e económica do País foi muito reduzida, bastante aquém daquilo que a sua dimensão, o seu peso demográfico, os seus pergaminhos, o bom senso e a própria história naturalmente exigiam.
A abertura do País à democracia pluripartidária, se, por um lado, permitiu um maior envolvimento dos santiaguenses na vida política nacional, criou, por outro lado, condições para um ressurgimento de forças retrógradas (ingenuamente julgadas mortas) que, vindas de um passado de má memória, encontraram sem grandes dificuldades espaço e terreno onde se instalar e medrar.
Essas forças recuperaram e adoptaram, de início encapotadamente mas depois abertamente, o espírito do velho discurso do tempo colonial: “Não fossem os badius, os pretos de Santiago, seríamos hoje ilhas adjacentes a Portugal”.
Só que desta vez tiveram que introduzir uma pequena alteração formal: em vez de Portugal fala-se da Macaronésia; em vez de adjacência fala-se de integração.
E quando é um deputado à Assembleia Nacional a dizer publicamente que Cabo Verde devia ser dividido em duas “regiões” – uma integrada na Macaronésia (leia-se Açores, Madeira e Canárias), outra constituída por uma única ilha, a de Santiago, ligada à África – está tudo dito.
Esse deputado não só teve o à-vontade de expor e defender os seus pontos de vista como até chamou de hipócritas vários altos dirigentes políticos de diversas forças partidárias que, segundo ele, pensam da mesma forma mas não têm a coragem de o dizer.
Só quem não quer é que ainda não se deu conta de que existiu e existe, em Cabo Verde, um forte sentimento anti-Santiago que tem os seus mentores e defensores bem identificados e que dispõe de uma estratégia que visa acima de tudo a “diminuição” da maior ilha do País.
Para os estrategos dessa visão aberrante, o crescimento do seu “bairro” só será possível com a “diminuição” de Santiago e a via melhor, a mais eficaz para se alcançar tal desiderato é sem dúvida a do “espartilho”.
E os “espartilhos”, como é evidente, só podem ser colocados (e também removidos) por quem detenha os meios e o poder para tanto.
Vivendo em perpétua penúria de energia eléctrica e de água e estando fora do seu alcance a tomada de medidas que possam contrariar tal estado de coisas, Santiago não pode alimentar a esperança de acompanhar e muito menos de liderar o processo de desenvolvimento em curso no País.
Não dispondo de portos nem de projectos de portos com reais e ambiciosas perspectivas futuras, Santiago ficará irremediavelmente secundarizada no plano nacional e internacional.
Não possuindo um verdadeiro aeroporto internacional que sirva a Ilha e o País sem os constrangimentos que o actual aeroporto apresenta, não pode Santiago sequer imaginar poder integrar-se nos grandes circuitos internacionais do turismo e dos negócios.
Não dispondo de estruturas de saúde adequadas e viradas para o futuro e não possuindo a cidade da Praia um hospital central com o nível e a dignidade de há muito reclamados, limitando-se os sucessivos Governos, teimosamente, cada um a seu modo, a colocar mais um ou vários remendos nos barracões centenários que até alguns Governadores Coloniais, em tempos bem recuados, haviam condenado, não poderá Santiago atingir um nível de desenvolvimento desejado e com ela todo o País.
Não dispondo de infraestruturas e de equipamentos desportivos minimamente compatíveis com a sua dimensão e o seu peso demográfico, não poderá Santiago, no plano do desporto, oferecer ao País a sua valiosa e decisiva contribuição.
Não dispondo de estradas de penetração minimamente aceitáveis em quantidade e em qualidade, não poderá Santiago aproveitar as grandes potencialidades de que a ilha dispõe em todas as áreas e daí o prejuízo que tal facto representa para o todo nacional.
Retirando de Santiago os principais pólos científicos e tecnológicos da futura Universidade de Cabo Verde, como pretende um activo mas discreto movimento integrado por gente muito bem posicionada, a maior Ilha de Cabo Verde, se tal vier a acontecer, corre o risco de voltar à situação do tempo do Liceu único.
Não sendo contemplada com investimentos compatíveis com a sua dimensão física e demográfica e com os fluxos crescentes de populações vindas de outros pontos do País, preferindo-se antes direccionar o grosso dos investimentos para algumas das zonas de proveniência de tais fluxos, não poderá jamais Santiago fazer frente aos graves problemas económicos e sociais que a afligem.
Daí o absurdo a que me referi logo no início deste artigo.
Na verdade, é absolutamente inconcebível que aqueles que, em virtude das funções que exercem, das posições que ocupam e dos poderes que detêm, podem ter alguma influência na colocação ou na remoção de “espartilhos”, não se tenham ainda apercebido do mal que já causaram, que vêm causando e que poderão vir a causar ao País com a criação, desnecessária e irracionalmente, de verdadeiros obstáculos ao seu próprio processo de desenvolvimento.
Felizmente para todos nós que alguns altos dirigentes deste País deram já sinais bem claros de que têm a consciência plena dos malefícios desse fenómeno: a prova disso é que, ainda há bem pouco tempo, se falou publicamente da necessidade de uma “discriminação positiva” para a Ilha de Santiago.
Seja como for, correndo até o risco de não ser compreendido, nem por gregos nem por troianos, tentei aqui avançar algumas explicações para tão bizarro fenómeno. O leitor, no entanto, se quiser e puder, que ensaie outras explicações.
*Este artigo foi publicado no nº 783 do Jornal A SEMANA, de 22 de dezembro de 2006. Tendo em conta que ainda mantém uma certa dose de atualidade, é novamente partilhado com os leitores deste diário digital, com a anuência do autor.
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