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Um conto de Abril. Prorrogação e liberdade de imprensa
Colunista

Um conto de Abril. Prorrogação e liberdade de imprensa

Numa bela manhã da semana santa, em plena primavera boreal, um Presidente da República faz crer, que se estenderá o outono austral constitucional. A democracia terá de ver suas folhas caídas, para que o povo não sinta, o rigoroso inverno da morte que cercou o mundo. Para que este povo conheça, novamente, o verão da vida.

Este presidente, é o Presidente da República de Cabo Verde, e este povo, é povo cabo-verdiano.

É sob este cenário de flores tenebrosas de Abril, que viemos advogar a liberdade de imprensa, um direito para todas as estações.

Antes de afirmarem que a nossa fala é desprovida de objetividade sem razão, diremos de antemão, que em nosso discurso: a análise esposa a opinião, e toda verdade é dita com paixão.

O nosso exame tem como objeto os acontecimentos políticos desta semana e os seus fundamentos, que por sua vez, possuem raízes nas semanas anteriores.

Posto isso, recapitulemos os eventos e as tragicômicas contradições políticas que permearam este mês.

No final de Março, ao declarar o estado de emergência, o senhor Jorge Carlos Fonseca nos colocou a par das arestas e metas deste estado nos seguintes termos: as "balizas" do estado de emergência foram "bem definidas na base dos preceitos e princípios da Constituição vigente", embora "muitos outros direitos -- todos, à exceção daqueles cujo exercício foi suspenso - mantinham-se e mantêm-se inalteráveis na sua vigência".

Peço que leitor e a leitora retenha em sua memória esta declaração, pois voltaremos a ela.

No dia 7 de Abril, numa terça-feira santa, data em que outrora Jesus tinha feito revelar a traição no coração de Judas e a fraqueza na conduta de Pedro, o garante da unidade da Nação e do Estado, nos revelou as consultas que estava em curso sobre a prorrogação ou o encerramento do estado de emergência. Os sinais de uma primeira prorrogação começam a ganhar forma.

Na quarta-feira santa, uma carta é endereçada para o vigia da Constituição cabo-verdiana. O teor da missiva consistia num pedido de apoio e um alerta para o fim da comunicação social impactados pela pandemia. O remetente da carta era ninguém menos que o presidente da União Internacional de Imprensa Francófona, o senegalês Madiambal Diagne. As inquietações do renomado jornalista direcionadas ao Presidente da República continham embasamento na realidade concreta dos estados de emergência pelo mundo.

Jornalistas de várias latitudes estão sendo brutalmente agredidos ao tentar informar sobre o Covid-19. No Gana o jornalista Yussif Abdul-Ganiyu, foi golpeado na nuca por militares, levado sob custódia e teve confiscado o seu equipamento.

Na Guiné Bissau, o jornalista Serifo Tawel Camará foi espancando por vários homens fardados, e diga-se de passagem, covardes, na noite de 24 de Março quando saía da estação de Rádio.

Na Hungria, a direita flerta com a ditadura e o primeiro-ministro Viktor Orbán, obteve poderes excepcionais por tempo indeterminado através da "Lei Coronavírus", aprovado pelo parlamento onde a direita possui supremacia. Nesta lei, se prevê penas de dois a cinco anos de prisão, para as notícias que o governo considere "distorção dos fatos" ou "informações falsas", assim o labrego engendra um ataque à liberdade de imprensa.

Por conseguinte, Diagne tem razões de sobra para estar inquieto, pois sente no ar o aroma fétido da censura, pelo qual todo jornalista competente, possui faro aprimorado.

Na quinta-feira santa, dia da Última Ceia e da partilha de pães, o poder executivo resolveu partilhar o seu falso desinteresse no estado de emergência. O Governo, na figura do Ministro Adjunto do Primeiro-Ministro e da Integração Regional, afirmou ser prematuro!, falar sobre a continuidade do estado de emergência: “É prematuro. Ainda estamos a meio [do período de estado de emergência]. O que podemos dizer é que os resultados até agora são animadores”. Mas como pode ser prematuro falar sobre isso na quinta, se já na terça o Presidente dava a conhecer aos cabo-verdianos, as consultas em curso para o veredito sobre o estado de emergência?!

Estaria o Presidente da República sendo apressado? Julgamos que não.

Como pode ser prematuro falar sobre um tema do qual o Governo dorme fazendo planos e acorda para pô-los em prática?

Ora, seria semelhante dizer: "Ainda é prematuro falar sobre a continuidade deste estado que nos confere tantos poderes excepcionais, mas os resultados são animadores."

Bem, quanto a nós, os precoces, consideramos imaturo, esperar que o assunto amadureça na árvore da procrastinação, onde todo fruto tem o sabor amargo da negligenciação.

No mesmo dia, enquanto o ilustre Ministro considerava ser prematuro falar sobre a continuidade do estado de emergência, o Presidente afirmava que havia consultado empresários da Boa Vista e São Vicente, ou seja, consultou os burgueses e os pequenos burgueses.

Quanto aos proletário cabo-verdianos, delega-se cestas básicas em aglomerações com sérios riscos de contaminação, um auxílio de fome, de dez mil escudos e ninguém lhes pergunta nada, pois todos sentem que podem falar em nome deles.

O teor desta consulta era "o estado de emergência - seu fim, sua prorrogação ou alteração de seus contornos e balizas". Se o leitor e leitora ainda se recordam, na declaração do estado de emergência, foi pronunciado: as "balizas" do estado de emergência foram "bem definidas na base dos preceitos e princípios da Constituição vigente". Entretanto, na quinta-feira do dia 9 de Abril descobrimos que afinal tais balizas não estavam tão bem definidas assim, do contrário, não seria necessário "alteração dos seus contornos e balizas".

Na sexta-feira paixão, seguindo a rigor a trajectória da semana santa, ficamos crucificados pela projeção de 430 mortes até julho. Após o estudo, recomendou-se o prorrogamento do estado de emergência. Opinião partilhada pelo senhor Artur Correia, Director Nacional da Saúde, tendo também esta opinião o beneplácito de Hernando Agudelo, representante da OMS em Cabo Verde.

No sábado, tivemos um exemplo magistral de arredondamento, dado pelo jornal A Nação, que realizou um inquérito a um grupo de 7 cidadãos midelenses sobre a continuidade ou término do estado de emergência , obtidas as respostas afirmativas, se concluiu doutoralmente, que os mindelenses querem a prorrogação do estado de emergência.

Ao longo desta semana santa, no decorrer do estado de emergência, o parlamento seguiu definhando, até finalmente, ter a sua força dizimada. Ficando reduzido a mera pantomima, onde adquire o seu superlativo adequado.

Com isso, a Imprensa crítica e a classe trabalhadora, se tornam o último baluarte da sociedade cabo-verdiana a minar eventuais desmandos do Governo, do qual este diário tem sido a ponta do gládio.

No domingo de Páscoa ressuscitamos, apenas para na segunda-feira vermos, uma reunião entre o Presidente da República e os cavaleiros da távola redonda do Movimento Para Democracia, que serão nomeadamente, o Primeiro-Ministro, o Vice Primeiro-Ministro, o Ministro da Saúde, o Ministro da Administração Interna, o Ministro do Transporte e o Presidente da Assembleia Nacional.

Nesta conversa, que certamente, terá lugar no conforto do consenso, teremos a declaração da prorrogação do estado de emergência como a sequência lógica do curso dos acontecimentos.

No mais, estaremos atentos para observar, caso seja efetuada, a "alteração de seus contornos e balizas". Na condição de, a alteração dos "contornos e balizas", significarem retornos e premissas, de um estado que sinta a necessidade de alterar a menor sílaba que seja da liberdade de imprensa, diremos com todo ímpeto à Vossa Excelência, Presidente da República de Cabo Verde, palavra por palavra a declaração do velho conde Kent: "Revoga o teu decreto, do contrário, enquanto alento me restar no peito, direi que estás errado."[1]

Abril, 2020

[1] Fala do conde Kent na tragédia Rei Lear, de William Shakespeare

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Redação