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"Prateleira", descontinuidade do Estado e democracia de fachada
Colunista

"Prateleira", descontinuidade do Estado e democracia de fachada

1. Ao olharmos para a relativamente longa lista de sinais existentes, a prática chamada de "prateleira" aparece como um dos indicadores mais fortes da pobreza e fragilidade da democracia cabo-verdiana;

2. Na tradição cabo-verdiana, numa estratégia de prevenção para os dias de cerimónia, há um costume de se manter um jogo de louças, pratos, terrinas, copos e talheres, reservado nas prateleiras de uma estante, nas casas mais modestas, ou numa "vitrina", para as moradias já um pouco mais abastadas. Julgo que, seguramente, é daí que virá a designação atribuída, nestes tempos modernos, à situação de determinados técnicos da Administração Pública que passam os dias no trabalho, mas… sem trabalhar. Esses, não terão os seus dias de cerimónia. São, quase na totalidade, indivíduos que desempenharam funções de relevância no governo anterior. Passam os seus dias no Facebook, saltando entre páginas web, indo de visita à sala de colegas e tomando um ou outro cafézinho, aqui e ali. Até que chegue o fim do mês seguinte para verificarem se os salários já caíram, sossegadamente, nas suas contas bancárias. Quando oiço o simulacro de ataque às contas públicas e ameaças às embaixadas, num mega teatro de prestação de contas, fico a perguntar se o Ministério das Finanças teria audácia suficiente para fazer um estudo de modo a calcular os milhões que o Estado perde anualmente com essa mal-afortunada prática da "prateleira";

3. Para além das perdas financeiras, a prática da "prateleira" constitui um sinal de algo de longe mais preocupante e de efeitos devastadores que é o deitar abaixo de tudo o que se encontrou para se fazer de novo. Mesmo que signifique fazer pior! Precisamente porque são afastados aqueles que poderiam garantir o lado acumulativo das alternâncias democráticas. Um olhar, mesmo muito grosseiro, destacaria sinais evidentes dessa interrupção que o Estado sofre, particularmente, em 1991 e 2016;

4. Na primeira alternância ocorrida em 1991, assistimos a um corte brutal com o Estado anterior: foram apagados o hino, a bandeira e as armas da república; surge o enfoque no discurso de "menos Estado" e "mais empresários"; fez-se chacota da "reciclagem da ajuda" de países amigos; foi totalmente desmantelado o sistema de justiça encontrado e que englobava, para além dos tribunais da república, os tribunais de zona com os juízes dos próprios bairros e as milícias populares, dando lugar à emergência de condições ótimas para a proliferação da irresponsabilização comunitária, vandalismos e libertinagens juvenis. Curiosamente, 26 anos depois, esses dois grandes problemas persistem: justiça e empresariado fracos! Logo, o balanço é negativo. É assim que se fazem balanços de modelos!

5. Na segunda alternância, em 2016, há uma busca desvairada de desvalorização de barragens, portos, aeroportos, Casa para Todos, estradas e túneis. Há novos e ruidosos processos nos tribunais, não para se descobrir a verdade, mas para se atacar e apoucar figuras públicas e iniciativas anteriores. Candidaturas a organismos internacionais, companhias aéreas, bancos, fundos, tudo serve para brandir a bandeira do pega e esfola. Assiste-se à razia dos cargos de direção, levando consigo o conhecimento e a experiência acumulada ao longo de década e meia. Daí, na sexta-feira passada, a responsável pela avaliação da implementação do Documento de Estratégia de Crescimento e de Redução da Pobreza (DECRP III) ter apontado a entrada de novos dirigentes em funções como uma das várias causas do não cumprimento dos objetivos inicialmente traçados;

6. Há um vazio crescente, uma desesperança que se instala e uma certeza de que o Estado, afinal, é uma incerteza. A eliminação dos concursos públicos e a lista de critérios que passaram a dominar o contexto cabo-verdiano são sinais preocupantes do fim da ideia do Estado como entidade de confiança, cujo funcionamento é estribado na análise objetiva, científica e legal. Emerge um contexto onde critérios como "excessivamente partidarizado" pode ser invocado para a justificação de veto presidencial; a "assumpção de posicionamento político ativo" ou a "preocupação em evitar colocar a linguiça no pescoço do gato" constituem razões de Estado para a não recondução de pessoas à frente de serviços da Nação; num acto de semear e reforçar o ódio e a desconfiança, numa clara violação da Constituição da República, particularmente os seus artigos 55 e 56. Um contexto desta natureza significa que a democracia tem ainda um longo e sinuoso caminho a percorrer nas ilhas de Cabo Verde;

7. Cabo Verde vive a grande ilusão de campeão de democracia em África. Pois, os processos eleitorais não são acompanhados de atentados, mortandades tribais, nem recusas de aceitação de resultados. É fácil ser-se campeão numa comparação efectuada olhando para baixo. Urge um olhar sobre essas práticas anti-democráticas de "prateleiras", critérios que põem em causa a liberdade política dos cidadãos e essa ideia primária de criação de "modelos de sociedade" atrelados a governos. Depois, vêm falar de valores.

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SOBRE O AUTOR

Francisco Carvalho

Político, sociólogo, pesquisador em migrações, colunista de Santiago Magazine