Esta publicação dá sustentabilidade histórica e técnica ao Vulumi I do Libru Grandi di Nhara Sakedu, que, por sua vez, é um livro de Registo, Memória e Auto-ficção, escrito em Língua Cabo-verdiana.
O objetivo geral de ambos os livros é o mesmo: pretendem dar um modesto contributo à valorização do Crioulo de Cabo Verde, principalmente na sua vertente escrita.Este pequeno texto foi tirado do livro Lingua de Berço de Mana Guta, a ser lançado brevemente, no âmbito da celebração do Dia Internacional da Língua Materna.
Com autorização da Editora Casa e Verbo, partilhamos um excerto do livro cujo texto procura repensar, em conjunto com o leitor, os mitos que consumimos e que dizem respeito à nossa língua de berço. Então, lepetê lepetê (que é como quem diz “aos pouquinhos e de mansinho”) dissertaremos sobre a problemática de haver uma língua crioula de Cabo Verde, sua valorização e os mitos que a circundam. Um longo caminho que pretendemos percorrer por etapas a começar pela tão propalada questão de haver um dialeto de Cabo Verde.
É bom sabermos como classificar e entender o percurso da nossa língua materna. E feito isso, nos capítulos anteriores, comecemos a decifrar enigmas e a entender os mitos.
A realidade entre o prazer da escrita e o reverso do leitor nos surpreende sempre. Não se pode falar sobre a língua cabo-verdiana sem causar alarido de prós e contras de todos os lados. Sendo assim, mantemo-nos fiéis ao princípio de que não pretendemos agradar às diferentes opiniões e de que a polémica sobre a LCV/LPT em Cabo Verde pode estar fora de foco. Depois, e, principalmente, porque pretendemos partilhar opiniões que possam ser válidas pela positiva, decidimos retomar alguns mitos que ainda fazem vez e nos levam a ter posições radicais _ porque assumidas com base em pressupostos errados!
Então pedimos paciência, alguma atenção e boa vontade. Pois, no bom crioulo badiu: “papa kenti, kume-l di boita.” Prometemos, desta vez, textos pequenos, claros e com exemplos reais.
Sobre a problemática de haver um dialeto Crioulo de Cabo Verde
MITO Nº 1: O CRIOULO DE CABO VERDE É UM DIALETO?
Vejamos o texto em uso:
- Nhô sta, Xinói. Nhara sta, Fika. Maninha da-m bensu mô sta-du gora?
Eh, Naiss, mô ki bai ?
- Txiga, fidju fèmia, bu gentis grandi… da-m noba dê-s.
- Txiga poku.
- Kel poku mê.
(…)
- Bom, ti lógu, D. Djeny.
- Ba, n’hora de Deus, Nha Fidje. Salva-me Ti Góia!
RESPOSTA-PERGUNTA: DIALETO DE QUÊ?
Não se diz que o Crioulo é um dialeto; o correto seria dizer que o Crioulo é dialeto da língua X. Então se um brasileiro, um português, um angolano… pudessem entender o texto acima, o Crioulo poderia ser dialeto do português.
Mas não entendem.
O Crioulo, para além de não ser dialeto de nada, ele TEM dialetos (de Barlavento “Salva-me Ti Góia”, de Sotavento “Nhô sta, Xinói”, badiu di fora, di Praia, do Fogo…dialetos regionais; tem o dialeto formal/cerimonioso “Txiga poku”/”kel poku mê”, informal “Eh, Naiss, mô ki bai?”, entre outros.
A língua cabo-verdiana é um idioma independente com sua riqueza e complexidade próprias, de constante inovação e que acompanha todos os momentos da vida cotidiana. É utilizada em todas as situações de comunicação, por todas as classes sociais e em todas as regiões de Cabo Verde.
Seria dialeto, se fosse uma forma específica de se falar uma língua: como muitos acreditaram que a LCV era uma forma diferente de se falar o português, como se o português fosse uma forma diferente de falar o Latim.
Se o Romeno, o Francês, o Italiano, o Espanhol, o Português… não são dialetos do Latim e, sim, outras línguas, independentes entre si, que na sua composição inicial, foram uma forma de ramificação da árvore latina, então o Crioulo de Cabo Verde não pode ser dialeto de nenhuma delas.
O correto seria dizermos “língua cabo-verdiana” ou, para quem prefere o nominho, então que seja “crioulo de Cabo Verde”. E, do mesmo modo que dizemos que, em português temos o dialeto carioca, dialeto “caipira”, dialeto “alfacinha”, do Minho, dialeto baiano…dialeto-padrão-culto…etc, ao referirmo-nos a variantes da mesma língua portuguesa, podemos dizer, também, que o cabo-verdiano tem dialetos, como todas as línguas, e que a sua variedade diz da riqueza e da maturidade linguística dessa língua: que é de origem mestiça, porém, autónoma.
Mito nº 2 - São muitas as variantes e não se saberia qual delas se deverá oficializar.
- Eu, falante da LCV, teria que falar a variante de outra ilha?
- Se fôssemos oficializar, qual seria a variante-padrão?
A diversidade lexical e a morfológica não impedem a oficialização e nem atrapalham a comunicação. As línguas modernas têm sempre muitas variantes diatópicas (determinadas pela sua região geográfica). Acontece com o português, o francês, o inglês... todas elas.
A determinação de uma norma não significa que as outras não continuem a ser usadas. Este raciocínio tem vez em Cabo Verde, porque não estamos a pensar na LCV como tendo registos ou diferentes níveis. Mas devemos nos lembrar que a determinação de um nível padrão terá sempre como base um estudo aprofundado, do ponto de vista técnico, mas terá de ser algo arbitrário, no sentido do respeito pelas normas.
Coisa bem diferente é o uso do alfabeto. A proposta de se usar o ALUPEC não restringe nenhuma variante. Pelo contrário: as instruções são de que cada falante deve registar os sinais gráficos, respeitando a sua variante, já que o ALUPEC é um alfabeto de base fonológica. Por isso, não existem razões que impedem a utilização desta grafia.
Mito nº 3 – O ensino da LCV ou a sua oficialização pode atrapalhar o domínio da língua portuguesa…
Nada mais falso!
O ensino das regras e a sua aplicação, em LCV, permitirão o distanciamento saudável entre as duas línguas, de modo a que não haja interferências, como acontece agora.
Chegamos a um estágio de diglossia em que as estruturas de ambas as línguas estão a ser afetadas, principalmente na comunicação oral, a ponto de, muitas vezes, o falar cabo-verdiano de uma certa elite é compreendido apenas por pessoas que conhecem o português, enquanto que um certo falar português é manifestamente influenciado pela língua cabo-verdiana, a ponto de apenas os falantes do crioulo entenderem esse português falado em Cabo Verde.
O ensino adequado permitiria o uso correto de cada uma das línguas, eliminaria as interferências mútuas e definiria os limites dos dois sistemas línguísticos no vernáculo. Permitiria, em suma, que cada língua se desenvolvesse de forma autónoma, promovendo maior destreza ao falante, potenciando a força comunicativa de cada discurso.
Existem motivos para se valorizar mais a Língua Cabo-verdiana, especialmente na vertente escrita, podendo o invetismento ser o contrário em Lingua Portuguesa. Então, leia e escreva em Crioulo, leia e fale o Português.
Use o ALUPEC, faça as suas recolhas; registe, divulgue, partilhe. Crie intimidade com a LCV e leve-a a ambientes em que nunca esteve antes.
- Decreto-Lei n.º 67/98 de 31 de Dezembro/Decreto-Lei que institui o Alfabeto Unificado para a Escrita da Língua Cabo-verdiana – ALUPEC
- Resolução nº 32/2015 de 15 de Abril do Governo de Cabo Verde – sobre o ALUPEC aprovado pelo Conselho de Ministros.
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