"Conto Partilhado Para celebrar o Dia Internacional do Livro Infantil, mas que adultos também deveriam ler"
Kusa ma kusa ki e pa pensa kusa na mundu:
Eram dois reis e dois servos.
Esta história não começa com “Era uma Vez”, nem com “Fortuna do Céu Amém”, porque não é uma história de ninar, nem é uma história de encantar. Nem serve sequer para acalentar o coração.
É, sim, uma história para pensar. E começa assim:
Havia dois reis, um do Norte e um do Sul.
Ambos competiam entre si e achavam que eram um mais do que o outro. Viviam se desafiando:
Quem tinha mais bens? Quem era mais rico, quem era mais inteligente, quem tinha mais servos…
Um dizia que sua mulher era mais bonita e outro que sua esposa era mais bela. Nunca chegavam a acordo e os anos passavam e eles não se entendiam.
Mas um dia se cansaram de falar entre si, chegaram ao Primeiro Acordo: Quem tivesse o servo mais inteligente, mais esperto e mais astuto, esse seria o Rei Maior de toda a região. O Rei do Sul passaria a mandar no Rei do Norte; ou este, se seu servo ganhasse, passaria a ser o Chefe da Esquadra.
O Segundo Acordo foi que todos os habitantes de todas as ilhas tinham que assistir ao duelo, para que a escolha do melhor servo, que era o servo mais astuto, fosse justa e transparente. E, por isso, a arena não podia ser em nenhuma das ilhas, onde moravam os respectivos reis. Foi assim escolhido o lugar neutro de Santa Luzia, terra de todos e de ninguém. Reserva natural, querida e protegida, tanto pelo Rei do Norte, quanto pelo Rei do Sul.
Estava decidido. Então sim.
Mas antes de se bater o martelo, uma menina bonita, que se chamava Lacinho, se lembrou de perguntar:
- Será que cabe todo o mundo, de todas as ilhas, em Santa Luzia? Será que vai ter panelas e pratos e talheres e comida para todo o mundo? Não sei não… E água, para as gargantas secas, da porfia e dos debates… quem levará?
Então o Sábio, que até então estava calado, incrédulo a matutar, respondeu:
- Cada ilha, mais a diáspora, escolherá um representante. Cada ilha terá um banco escrito com seu nome, da cor que escolher e o entregará ao seu eleito. Estes votarão no servo mais astuto. E ainda bem que somos onze ilhas, número impar, sem margem de empate. Votaremos através dos nossos representantes. Eu votarei por Santa Luzia e o meu banco é azul – disse o Sábio.
Aplausos vieram de todos os lados.
Feito o acordo, eis que vocês estão aqui, cada um da sua ilha. Chamaremos um a um, de Santo Antão a Brava, passando pela diáspora. E cada ilha terá um voto.
Assim começou o duelo. Ora um, ora outro, desafiava.
Os homens todos se achavam hábeis e astutos. Os do Sul falavam muitas línguas dos seus vários irmãos africanos; eram fortes e destemidos. Os do Norte se gabavam da muita instrução e de serem donos do Conhecimento e do Poder. Outras virtudes e outras querelas dos dois lados.
Havia quem tivesse o sangue do Norte e o umbigo no Sul e não sabia bem para que lado virar.
Então, os dois homens tinham que se encontrar numa encruzilhada, que agora era a Santa Luzia. Chamavam-se um ao outro de paxere, que era como cada rei entendia que o outro era: apenas um passageiro, nestas terras de Cabo Verde, que um dia ia sair daqui, para que ele, o rei maior, pudesse mandar sozinho. E o outro fazia o mesmo: chamava de paxere ao rival, porque além de achar que não seria ele o digno dono da terra, achava ainda que o adversário era tão néscio, que nem sabia dizer seu próprio nome “Passageiro”. Pois que não sabia sequer usar a língua erudita. Paxere era a forma mais perfeita de excluir e insultar.
- Paxá, Paxere – um dizia, para que o outro, néscio, o entendesse melhor.
- Paxá, Paxere – respondia o outro, por razão igual.
E se estancaram os dois. Um na frente do outro. Um impedindo o outro de seguir viagem. Começaram ali mesmo, em plena encruzilhada, a discussão.
- Passe e me deixe passar, Paxere - Me deixe passar, porque ouvi que na tua terra, sete burros subiram ao Céu. Ao que o Outro responde:
- Sim, passa tu, Paxere, porque isso que dizes, nunca ouvi dizer, nem vi, nem fiquei sabendo. Mas, desde que tem havido chuvas de selim e cheias de albarda, creio que os burros subiram ao céu.
E continuaram, trocando de posição:
- Deixa-me passar, Paxere – deixa-me passar, porque ouvi que, na tua terra, o mar pegou fogo. E o Outro disse:
- Paxere, eu nunca ouvi dizer, nem vi, nem fiquei sabendo. Mas desde que pescadores têm voltado do mar, com peixes meio-crus, meio-cozidos, creio então que o mar pegou fogo.
- Deixa-me passar, Paxere, porque ouvi que na tua terra, há um pássaro que está a atravessar o céu, desde há sete anos, e só agora se viu o bico. Mas que, ainda, é preciso esperar mais sete anos, para se ver a cauda.
- Paxere, eu nunca ouvi dizer, nem vi, nem fiquei sabendo. Mas, desde que, durante sete anos, sete companhias de homens estão tentando abrir, com uma serra de sete pontas, um único ovo, sem nunca terem chegado na gema, creio, então, que é desse pássaro.
- Paxere, deixa-me passar, Paxere, porque ouvi que na tua terra, uma mulher pariu uma criança com sete braços…ai que horror!
- Paxere, eu nunca ouvi dizer, nem vi, nem fiquei sabendo. O certo é que se encontrou, na ribeira, uma mulher lavando uma camisa de sete mangas… quero crer que é daquele menino.
E assim continuaram por horas e horas, sem nunca convencer o outro da sua astúcia. Foi aí que o Gigante Ranhoso de Santa Luzia acordou. Somou e disse:
- UAAAAAÁÁÁ! CALEM A BOCA. SAIAM DA FRENTE!
- Agora passo eu, pois está chegando o Basalisco, aquele menino preto de olhos vermelhos, que, ao passar, apanha o caminho e mete no bolso…
Quando Dibididó fez menção de empurrar os dois, cada um para o seu lado…eles levaram um susto:
- Sim! _ Responderam, cheios de medo, ao mesmo tempo. E olharam-se, pela primeira vez. E, pela primeira vez, puseram-se de acordo. Falaram ao mesmo tempo:
- Assim tu ficas sem ir e eu fico sem chegar! Depois disseram, ao mesmo tempo, de novo:
- É verdade. Tu tens razão!!!! Nu baiiii…
E deram no pé. Picaram a mula. Saparam a achada. Correram feito loucos. Corre, Corre, Corre, Corre, Corre, Corre, Corre, Corre, Corre, Corre…
SÓ QUE NÃO!!!
Como estavam tão desesperados, com medo do Gigante e do Basalisco, esqueceram do seu caminho. Indo como estavam, foram uuuuuma na força, nuuuuuma sacada. Mas só que, na direção contrária.
Oh Mundo ingrato: o do Norte foi parar no Sul e o do Sul foi parar ao Norte.
Os coitados dos reis continuam, até hoje, à espera dos seus servos… que nunca mais voltaram! Todos os dias, mandam refazer a festa. No banquete de cada reino, tem até bife, na manteiga, para o Cão Tejo e lagosta suada para a Gata Marela. Grão-de-bico para a Pata Mansa e Caviar para o Galo Garnizé. A Vaca Milagre tem sua boca fina na alface e no repolho, temperados com salsinha. E a Cabra Pintada, depois de satisfeita, faz sobremesa de uva e toma sumo de ananás com menta. E assim é que vai…
Ainda ontem passei por lá. A Mesa estava posta, mas ninguém comia. Ninguém bebia, à espera dos servos.
Decidam logo quem ganhou, para a festa começar. O servo do Rei do Norte ou o servo do Rei do Sul?
- Quem souber mais, QUE PENSE MELHOR!
[i] Ou de como as crianças precisam saber que a divisão de Cabo Verde entre badios versus sampadjudos não interessa nem mesmo ao Gigante Ranhoso de Santa Luzia. Conto de auto-ficção.
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