O Rádio Hitachi do Papai Velho tinha uma menina que morava lá dentro.
Eu nunca a tinha visto. Mas sabia já que seus cabelos eram crespos e os solhos pretos como a noite. Podia ver, no escuro, sua carinha de sapeca e seu semblante de encantada. Sentia, na voz dela, que estava sempre feliz. Quando eu fechava os olhos, ela sempre vinha com um vestido às flores e umas sandálias brancas, que tinham duas borboletas, uma ao lado da outra: a borboleta azul se chamava Clara e a borboleta rosa se chamava Mário.
No meu coração, eu sabia que bem bonita era ela. Sentia-a a sorrir um riso doce de amizade, que me secava os olhos, quando eu estava triste. Podia estar sozinha, doente, ou mesmo no quarto escuro… e até na madrugada em breu. Seus dentes brancos de marfim soltavam gargalhadas sonoras, que me escorregavam dos ouvidos até o peito e traziam um brilho novo para o meu dia. A Menina tinha um olhar que abraçava as crianças. Meninas e meninos de todas as cores.
Todas as manhãs de sábado, juntávamos no quintal enorme da minha infância. Ela chegava e dizia, de dentro do Hitachi:
_ Olá Meninos!
Olá Meninos é um programa da RCV, transmitido todas as manhãs de sábado…
E assim nós respondíamos, muito alegres e sabidos, cantando… bem afinadinhos:
- Olá! Tu que estás aí, dentro desse rádio; Vá lá, sai e vem aqui, para eu te ver!
E assim seguia uma série de lindas histórias, adivinhas, conselhos e boas regras da educação. A manhã ia longe e nós continuávamos juntos. Naquele bairro, eram quase 30 crianças, sentadas nas esteiras que os rabelados vendiam. As mães arrumavam no chão as esteiras, para que todos pudéssemos olhar para o Rádio Hitachi; e para que todos nos sentíssemos mais confortáveis.
Foi então que a palavra confortável chegou aos meus ouvidos, pela primeira vez. A Professora disse: _ O mais importante é que as crianças se sintam confortáveis.
Dizendo fazendo, ajeitou a última esteira, ligou o rádio e foi se sentar na sua máquina de costura, enquanto nos observava, de longe. Todos os esforços dos adultos serviam para que nós nos sentíssemos confortáveis.
O Hitachi não era um rádio assim tão grande. Mas se as pilhas estivessem novas, ouvia-se muito bem. Porque, durante todo o tempo que demorava o Programa Olá Meninos, não se dava nenhum piu. Ficava tudo yam pedra. Desde o Rodrigo que tinha dois anos, até os meninos mais sabidos. Olá Meninos tinha essa magia.
- Meninos hoje vamos falar do Alvará 2/945 e dos estatutos da Rádio Clube de Cabo Verde. A seguir, vamos cantar os parabéns para a Rádio.
As mães deixavam as esteiras, arrumavam a mesa com o pouco que cada família pudesse trazer. Quem não tivesse nada para dividir, num sábado, poderia trazer num outro sábado. Ou quando Deus quisesse. Ninguém nunca ficou sem o matabicho, nos sábados da nossa infância.
Quando à noite eu fechava os olhos, após apagarem as luzes, eu via a Menina do Rádio, e era uma criança igualzinha a mim. Ela muito andava e pouco se calava. Andava de lá para cá, e de cá para lá. As sandálias da Menina eram iguais às minhas: serviam para andar, saltar e até correr. Podia levá-las para onde bem quisesse. Era certo usá-las de manhã, quando ia para a escola, e aos domingos e feriados, nas festas de função. Se não fizesse frio, podia ainda calçá-las, nas noites de Natal, e em todas as celebrações de Galo que a família me levava. Porque era preciso pôr-se bem bonita. E foi assim que aprendi que as sandálias da Menina Do Rádio eram confortáveis.
_ Que significa confortável?
Perguntei ao meu avô, que estava atento a consertar as redes. Ele fez aquela cara de espanto e depois sorriu:
_ Tu sabes bem que eu não sou muito bom a explicar essas palavras dos livros. Onde ouviste isto?
_ No Hitachi, Papai Velho. Ouvi a Gilda a dizer, dentro do Rádio, que os sapatos Socal são confortáveis. É verdade? Que quer dizer confortável?
_ O que eles querem mesmo é vender sapatos. Fica ciente nisso. Querem só que tua Mamã e teu Papá te comprem sapatos. Mas o que eu aprendi, na lida, é que confortável é uma coisa que não é muito cara e que nos serve bem: ou no corpo, ou na casa, ou no trabalho. Mas só que uma coisa confortável tem que ser também muito útil e tem que durar um monte de anos… Bem, eu acho que é isso. Mas depois pergunta à Professora.
Então sim.
A nossa Professora em tudo parecia com a Menina do Rádio. Antes de dizer “Bom dia”, fazia um sorriso grande e dizia:
_ Olá Meninos!
Depois olhava para cada um de nós e perguntava se tínhamos dormido bem. Eu ficava em silêncio, a menos que ela perguntasse diretamente para mim.
Não se podia dizer propriamente que eu era uma criança medrosa, só porque, à noite, eu insistia em não ir para a cama sozinha. Não era medo. Era um pouco a solidão e um pouco o silêncio que me causavam certa impressão. A impressão, sim, podia trazer consigo um medinho de nada.
Assim era, quando eu estava só e fosse a hora de dormir. Uma noite em que as ondas cantavam até a janela do meu quarto, ouvi uma linda voz a sussurrar:
_ Olá!
Era ela. A Menina Do Rádio era a brisa fresca e o mar azul, se fizesse calor. Ou o afago quente, com cheiro a canela, se estivesse frio. Como a nossa Professora, ela tinha um abraço enorme, que me acalentava. E, de mansinho, ia dizendo, todas as noites, a mesma frase do Vitinho:
_ Sonhos lindos, adeus e até amanhã.
Eu não dava conta de mais nada. Dormia logo e, dizendo fazendo, já era de manhã.
- Pão quente de farinha boa!
É a Maria a bater ao portão. Sapatinha. Hora de levantar.
Fim (MG)
(Fim deste conto, mas a história continua com “Meu Amigo Vitinho”)
Programa Olá Meninos
Olá Meninos é um Programa para as Crianças feito com crianças de tipo generalista e que mescla a vertente pedagógica e a lúdica, promove a boa disposição e povoa o mundo imaginário com histórias, anedotas, adivinhas, e ainda conselhos úteis a ela e aos pais. A boa música infantil acompanha este espaço de diversão para as crianças.
Tipo: Generalista
Género: Magazine Infantil
Emissão: Sábados, às 08:00
Duração: 60 mn
Periodicidade: Semanal
Grupo Valor: Educacional/Social
Apresentador/a: Nelson Neves
(Fonte: Site da RCV in http://www.rcv.cv/ )
GLOSSÁRIO
Sapeca – agitada, brincalhona
Ficava tudo yam pedra – Todos ficavam em silêncio/total
Não se
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