Homicídio de Cidadela. O Estado de Direito ainda não morreu
Editorial

Homicídio de Cidadela. O Estado de Direito ainda não morreu

É admissível que as instituições democráticas ignorem a permanência de um individuo sob investigação criminal no Governo? É admissivel que as instituições democráticas e a sociedade civil em geral continuem de olhos e ouvidos vedados, numa espécie de letargia coletiva, face ao silêncio do Governo, sendo certo que é de absoluto interesse público o esclarecimento deste assunto? Porque é que o chefe do Governo insiste em esconder o seu ministro de Administração Interna, ao ponto se revelar publicamente irritado sempre que confrontado com o nome do antigo espião no Governo de José Maria Neves? É possível acreditar na PJ a partir deste momento? O que é feito dos princípios éticos que vinculam as instituições do Estado? Enfim, questões legítimas que devem ser colocadas e que os cabo-verdianos têm o direito de ver devidamente esclarecidas, cientes de que o Estado de Direito ainda não morreu.

O pano sobre a suposta perseguição do Ministério Público aos órgáos de comunicação social e aos jornalistas já está fechado. Foram vários dias de fastidiosa lenga-lenga sobre este assunto, que já ninguém se lembrava que a questão que requer a mobilização da atenção social é outra, e é esta: um crime cometido há 7 anos, envolvendo altas patentes da Polícia Judiciária, em que uma dessas patentes é hoje ministro da República; e um Ministério Público e Governo vinculados ao processo, por duas ordens de razão: o primeiro porque não ouviu nenhum dos implicados em 7 anos, e faz questão de dizer isso mesmo para todo o mundo ouvir, e o segundo porque esconde no seu seio alguém indiciado de participar num crime considerado violento pelo médico legista.

Cabo Verde deixou de ser um país sério. Governo abriga suposto assassino, Ministério Público o protege, oposição democrática mete a cabeça na areia e a sociedade civil festeja ao ritmo dos faits divers promovidos precisamente para entreter as mentes e aniquilar o senso crítico.

Na verdade, como escreveu um nosso amigo, se Supremo Tribunal já foi Super, este PGR é Hiper - admite que não constituiu ninguém arguido num processo com 7 anos de vida, e nem se lembra que os principais protagonistas do susposto crime são conhecidos e inclusive laboram no governo, na investigação, na segurança e na ordem pública.

Surreal, dirão alguns. Mas factos são factos. Sempre!

Efetivamente, neste momento circulam tranquilamente no nosso país vários oficiais da Polícia Judiciária indiciados de crime de homicídio de um cidadão, ocorrido em 2014, no Bairro de Cidadela, na cidade da Praia. Circula também uma pessoa – pode ser mais do que uma - que matou uma mulher indefesa, no bairro de Calabaceira, eventualmente a mando de grupos envolvidos com o tráfico internacional de drogas.

Poucos crimes violentos em Cabo Verde são desvendados. Os matadores profissionais têm no nosso país um paraíso “laboral”, aqui trabalham sem stress, porque as autoridades normalmente não os descobrem. Aqui conseguem realizar as suas obras, seguindo depois para novas encomendas sem grandes atropelos ou dores de cabeça. Tudo tranquilo.

A investigação criminal em Cabo Verde é, no limite, uma banalidade. País com pouco mais de meio milhão de pessoas, pode-se perfeitamente admitir que aqui o crime compensa, porque recorrentemente as autoridades policiais e judiciais navegam entre a incompetência e a cumplicidade, num ambiente de descaso e desresponsabilização tão constrangedor quanto ignóbil.

Consta que existe um documento da Direção de Emigração e Fronteiras da Polícia Nacional a informar que o homem assassinado pela PJ em outubro de 2014, havia entrado no país um dia após a consumação da barbarie do Bairro de Calabaceira. Se assim for, ou seja, se essa informação da DEF for verdadeira, o assassinato daquela mulher continua por esclarecer. Afinal, até agora a identidade do autor ou dos autores daquele ato criminoso continua desconhecida.

Tal como este caso, muitos outros crimes violentos ocorridos em Cabo Verde continuam no segredo dos deuses, e as autoridades públicas responsáveis pelas investigações agem como se isso tudo fosse normal e aceitável, numa intorável atitude não só de naturalização do crime, como também, e sobretudo, de legitimização da incompetência profissional de entidades criadas pelo Estado para o efeito.

Enquanto os criminosos continuam a sua vida sem grandes solavancos, na última semana assistimos um país inteiro impaciente no consumo da encenação do Ministério Público em constituir os jornais Santiago Magazine e A Nação, e os jornalistas Hermínio Silves e Daniel Almeida, arguidos num processo de crime de desobediência qualificada, apenas porque tiveram acesso às informações de um crime, que se veio a considerar-se em “segredo de justiça”, e partilharam com a sociedade.

Conforta-nos saber que realmente se os jornais e os jornalistas em causa cometeram crime de desobediência qualificada, como é o entendimento do Ministério Público, as investigações ora abertas e os tribunais irão provar em tempo oportuno. É a justiça na sua marcha natural para o esclarecimento da verdade e a responsabilização de infratores!

Tudo enquadrado no binómio causa e consequência. Sem dramas ou votos de pesar. Sentimento esse extensivo ao comunicado do Ministério Público, segundo o qual ainda ninguém foi ouvido ou sequer constituído arguido no suposto assassinato oficioso de Zezito Dente D'oru, que se espera não venha a cair no bau de esquecimento, com a culpa morrendo solteira. Certo?... Sobretudo agora que, no jornal da TCV, de 2 de fevereiro, o PGR José Landim, acabou admitindo que a vítima teria sido crivada de balas nessa operação policial. Ou seja, um crime bárbaro.

Dos factos que se seguiram e que a imprensa vem divulgando ressalta-se que entre os indiciados está o ministro da Administração Interna, homem de confiança do chefe do Governo, Ulisses Correia e Silva, ao ponto de ter pontuado e garantido aos cabo-verdianos, logo após a noticia de Santiago Magazine, que vai manter total confiança no seu ministro da Polícia.

E de confiança em confiança, estratégica e irresponsavelmente o governo remeteu-se ao silêncio, enquanto o Ministério Público reserva-se o papel de promover faits divers para entreter os cabo-verdianos com alegados crimes de violação de segredo de justiça e desobediencia qualificada, e assim relegar para plano secundário o ponto sulcral deste dossier - um governante e altas patentes da PJ envolvidos num suposto crime de homicípio. Já ninguém fala disso. Nem mesmo a oposição, que como o avestruz, enterra a cabeça na areia fingindo que não vê, não ouve e não sente.

Muito estranho, demandando a atenção de todos os cabo-verdianos. É admissível que as instituições democráticas ignorem a permanência de um individuo sob investigação criminal no Governo? É admissivel que as instituições democráticas e a sociedade civil em geral continuem de olhos e ouvidos vedados, numa espécie de letargia coletiva, face ao silêncio do Governo, sendo certo que é de absoluto interesse público o esclarecimento deste assunto? Porque é que o chefe do Governo insiste em esconder o seu ministro de Administração Interna, ao ponto se revelar publicamente irritado sempre que confrontado com o nome do antigo espião no Governo de José Maria Neves? É possível acreditar na PJ a partir deste momento? O que é feito dos princípios éticos que vinculam as instituições do Estado?

Enfim, questões legítimas que devem ser colocadas e que os cabo-verdianos têm o direito de ver devidamente esclarecidas, cientes de que o Estado de Direito ainda não morreu.

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