Stribilin (59ª parte)
Cultura

Stribilin (59ª parte)

CCXLV CENA

No Gabinete do Diretor.

DIRETOR – Então, reclusos; vocês andam revoltados contra a Cadeia, os guardas e o Diretor? Confirmam ou não?

JOÃO LUÍS E PEDUCA – Não, senhor Diretor. Foi o Dário que nos meteu coisas na cabeça, mas estamos arrependidos!

RUI – Por acaso quem fez tudo foi o Engenheiro. Eles estavam simplesmente a ouvir-lhe a falar.

JOÃO LUÍS E PEDUCA – É verdade, senhor Diretor. Estamos arrependidos.

JOÃO LUÍS – Senhor Diretor, preciso de uma licença para ir ver a minha mãe que está doente.

DIRETOR – Como? Não entendi bem, ou quê? Não te importes de repetir?

João Luís não atreve.

RUI – Por acaso a mãe dele está doente sim, senhor Diretor. Encontrei-me hoje de manhã com a irmã do João Luís e ela disse-me que ia ao Hospital marcar uma consulta para a mãe dela.

DIRETOR – O Dário vai ficar 30 dias na cela disciplinar. Nos primeiros 7 dias só terá direito a 1 litro de água e 1 pão por diário. Depois vai ter 13 dias com direito a 2 refeições diárias, à vossa escolha, e 3 litros de água. Nos restantes 10 dias vai ter direito a 3 refeições normais, e tomar um banho por semana. Depois de cumprir estes castigos, vai permanecer na cela, sem direito a apanhar Sol durante 60 dias. Só deve sair da cela para o refeitório.

RUI – E se por acaso precisar de ir ao hospital?

DIRETOR – Só se estiver quase a morrer. Também não pode receber visitas, nem telefonemas, nem correspondência durante 6 meses. Concluído este prazo, as suas correspondências, as que saem ou as que entram, continuam a ser abertas e lidas primeiro. Qualquer coisa que ele tiver que receber deve ser revistada a pente fino. Não se esqueçam que estamos perante um delinquente perigoso. Quanto aos outros, como reconheceram e estão conscientes de que erraram, estão arrependidos, vão ter castigo mais suave. Vão escolher entre uma semana de cela disciplinar ou um mês sem visitas. Qual é que preferem?

TODOS – Cela disciplinar! Uma semana de cela disciplinar.

CCXLVI CENA

DIRETOR – Senhor Dário, a sua mãe de filha telefonou e disse que a vossa filha está doente e encontra-se internada no Hospital. (Dário limpa as lágrimas) Apesar de ter já cumprido o seu castigo, eu não posso autorizar a sua saída para fora da Cadeia. Porém, para que não pense que tenho algo contra si, para ver que sou humano e generoso, vou ligar ao senhor Diretor-geral e você vai falar com ele.

DÁRIO – Muito obrigado.

DIRETOR (disca o número de telefone) – Ora, muito bom dia!

VOZ DO OUTRO LADO – Bom Dia.

DIRETOR – Daqui fala o Diretor da Cadeia Central de São Vicente! Podia passar-me a chamada para o gabinete do senho Diretor-geral, se faz favor?

VOZ DO OUTRO LADO – Só um momento.

DIRETOR-GERAL [V. O.] – Bom dia!

DIRETOR – Bom dia, senhor Diretor-geral.

DIRETOR-GERAL [V. O.] – O que se passa?

DIRETOR – Desculpe-me ter-lhe ligado assim tao cedo.

DIRETOR-GERAL [V. O.] – Então… o que se passa?

DIRETOR – Liguei-lhe para comunicar uma situação com um Recluso.

DIRETOR-GERAL [V. O.] – E qual situação?

DIRETOR – É para lhe comunicar que um Recluso deste estabelecimento tem uma filha internada no Hospital. E conforme dizem ela está em coma profunda.

DIRETOR-GERAL [V. O.] – E daí? O que é que ele quer que eu faça?

DIRETOR – Quer que o deixe ir visitá-la. A miúda vai ser operada e necessita de sangue para a transfusão. O seu grupo sanguíneo é raro, mas é o mesmo que o do pai.

DIRETOR GERAL [V. O.] – Passa o telefone ao Recluso. (Dário ao telefone) Então Recluso, o que é que se passa?

DÁRIO – Foi o que o senhor Diretor acabou de lhe dizer.

DIRETOR GERAL [V. O.] – Eu ouvi o que o senhor Diretor me disse. Não sou surdo. Quero ouvir agora da tua boca.

DÁRIO – É a minha filha que está doente.

DIRETOR GERAL [V. O.] – A tua filha está doente?!

DÁRIO – Sim, senhor Diretor-geral!

DIRETOR – Agora é que tu lembras que tens uma filha? Quando fazias mal aos outros não pensaste na família? Aliás… por que estás preso? O que é que fizeste? Roubaste, mataste, ou violaste mulher?

DÁRIO – Não, senhor. Eu…

DIRETOR-GERAL [V. O.] – Senhor?! Quando é que fomos colegas, seu atrevido? Exijo que me trates por senhor Diretor-geral, ou então, senhor Doutor. Percebeste?

DÁRIO – Desculpe, senhor Doutor. Também, por favor, quando me chamar, tenha o cuidado de dizer: Senhor Engenheiro, ou Engenheiro Dário Silva.

O telefone desliga estupidamente e volta a ligar pouco depois. O Diretor apanha o auscultador, cheio de medo.

DIRETOR-GERAL [V. O.] – Diretor?!…

DERETR – Sim, senhor Diretor-geral.

DIRETOR-GERAL [V. O.] – Isola, de castigo, imediatamente esse atrevido.

O telefone desliga abruptamente.

DIRETOR – Diretor-geral mandou isolá-lo na cela disciplinar.

DÁRIO – Já estava à espera. Aliás, já estava achá-lo demorar.

DIRETOR (ao telefone) – Senhor Carcereiro, mande aqui um Guarda por favor. (Mário bate a porta, entra e fecha-a de novo) Leve o Dário para cela dele para arrumar as suas coisas e condu-lo para cela disciplinar.

MÁRIO – Está um carro lá fora à espera dele para ir dar o sangue à filha que vai ser operada urgente.

DIRETOR – A ordem veio da Praia. Do Diretor-geral. Temos que acatar.

MÁRIO – Dizem que a filha precisa urgente de ser operada, senhor Diretor.

DIRETOR – Podes deixá-lo levar alguns livros, desde que não sejam policiais, nem código civil ou penal, ou livros que abordam sobre o suicídio, crimes ou motins nas Cadeias. Jornais ou revistas também não podem. Deixe-lhe a luz acesa e a porta da cela encostada. Feche só a porta principal.

Mário e Dário saem juntos.

CCXLVII CENA

DIRETOR (ao telefone) – Um Guarda que venha aqui, rapidamente. (Pousa o telefone. Rui bate a porta e entra) Telefonaram-me a dizer que a filha do Dário faleceu. Vá busca-lo à Alpina e trá-lo cá. (Rui sai e pouco depois entra com Dário) Senhor Dário, infelizmente as notícias que tenho para lhe dar, que são duas, nem todas são boas. (Dário começa a chorar) Vou começar pela notícia boa. Pois… vou conceder-lhe uma hora de licença para ir à casa.

DÁRIO – A minha filha piorou? Se ela já piorou pode dizer-me claro.

DIRETOR – Tenha calma. Temos apenas um problema. Não estamos com Guarda disponível neste momento para o acompanhar. Se tem boas relações com algum dos Guardas que esteja de folga, diga-me, eu telefono e ele vem-lhe buscar. Também temos outro problema, eu vou precisar do carro para ir ao aeroporto buscar o meu pai que chega hoje de Santo Antão. Tem dinheiro para pagar um táxi?

DÁRIO – O meu cunhado tem carro e vem-me buscar. Quanto aos guardas… não sei! Dou-me bem com todos. E qual é a má notícia? Se não é a minha filha que piorou, quer dizer que quando voltar vou continuar no Segredo?

DIRETOR – Se fosse só isso!… É da sua filha, sim.

DÁRIO (desesperado) – Minha filha?! O que lhe aconteceu mais?… Ela piorou?

DIRETOR – Infelizmente… ela morreu. Morreu ontem de manhã no hospital.

Dário chora desesperadamente. Marcolino empurra a porta e entra.

MARCOLINO – Senhor Diretor, o cunhado dele já falou comigo e eu disse-lhe que o acompanhava se o Senhor Diretor lhe desse licença.

DIRECTOR – Muito bem. Vocês têm uma hora para regressarem.

MARCOLINO – Sim, senhor Diretor. Vamos então, senhor Dário. (No corredor da prisão) Senhor Engenheiro está com dinheiro?

DÁRIO – Tenho. Para quê?

MARCOLINO – Não! Não é para nada. É só para saber. O senhor Engenheiro sabe que eu estava na minha folga…

DÁRIO – Não há problema. O que é que o senhor Marcolino quer?

MARCOLINO – Senhor Engenheiro sabe como é que a situação está… que vida está difícil! Sou pobre… coitado… com família para sustentar!… ganho pouco!

DÁRIO – Quer que lhe arranje algum dinheiro, é isso?

MARCOLINO – Não, não é isso. Embora quinhentos paus dava-me muito jeito. Mas não se preocupe.

DÁRIO – Não se deve ter receio em pedir uma coisa quando dela se precise. A decisão depende de quem dá ou não. Precisa de 500$00?

MARCOLINO – Preciso… mas não mos dá aqui. Os presos podem ver e vão ficar a mandar bocas. Dá-mos lá fora, às escondidas até de sua família. Dá-mos despercebidamente. Quando estivermos a caminho, dá-mos e diga que é para lhe comprar “aquela coisa”.

DÁRIO – Ok. Então vamos porque tenho vontade de ver a minha filha lá fora pela primeira e última vez, infelizmente dentro de um caixão.

CCXLVIII CENA

Em casa dos pais da Diana durante o velório da filha do Dário.

MARCOLINO (olha para o relógio) – Senhor Dário, já viu para o relógio?

ZORAIMA – O quê? Ele nem entrou em casa que há mais de dois anos não punha os pés à soleira, e agora, na morte de sua única filha, não tem direito a assistir ao funeral? Não acredito! Afinal… que justiça é que temos? Que humanos é que somos?

DÁRIO – Minha querida, fico contentr por este teu gesto, mas tem calma. Já só me faltam 6 meses para sair daquele Inferno. Passam rápidos.

ZORAIMA – Senhor Marcos, você então cobrou ao meu irmão mil escudos para trazer o Dário só por 10 minutos?

MARCOLINO – Dez minutos não, Zoraima. Uma hora.

DIANA – Zú, o Marcolino está a cumprir as ordens do seu patrão.

MARCOLINO – Pois… eu só estou a cumprir as ordens. O senhor Dário ouviu o que é que o senhor Diretor nos disse. Que só lhe dava uma hora.

DIANA – Não estou a perceber por que é que ele vos deu só esse tempo. Eu fui pessoalmente falar com o Procurador e ele garantiu-me que ia autorizar a saída do Dário, mas não me disse que era por 50 minutos.

DÁRIO – Ok. Vamos embora.

Despede dos familiares, abraça o caixão e sai.

CCXLIX CENA

Dário já está em liberdade há alguns dias. Está sentado na sala com um jornal na mão a ler.

DÁRIO [V. O.] «”ANÚNCIO!” O Ministério da Agricultura, através do Gabinete de Sua Excelência, senhor Ministro, abre concurso para uma vaga de Técnico Superior de 3ª classe, para prestar serviços na Delegação do Mindelo, coordenando toda a região norte do país, ou seja, todo o Barlavento. Oferece-se remunerações compatíveis, bom ambiente de trabalho e progressão na carreira. Exige-se: ser licenciatura em Agronomia, idade superior a 25 e inferior a 35 anos, sexo indiferenciado, nacionalidade cabo-verdiana, disponibilidade imediata. Documentos obrigatórios: - Certificado de habilitação literária, certidão de idade, Atestado Médico, Registo Criminal e Curriculum Vitae. Dá a preferência ao detentor do Certificado e habilitações literárias com a melhor nota». (Muito feliz) Agora é que as coisas me vão correr bem. O lugar é seguramente meu. Se aparecer muita gente iremos ao concurso e eu não temo concursos. Vou já dizer a Diana! A coitadinha está farta de trabalhar por mim. Até que em fim! (Entra a Diana com um saco de compras na mão) Minha querida, estou feliz.

DIANA – O que é que se passa? Ganhaste no totoloto ou na lotaria?

DÁRIO – Quase, Diana! Há uma vaga no Ministério da Agricultura, para trabalhar aqui em São Vicente como coordenador da área de Barlavento. Pedem licenciatura em Agronomia! E não há muitos. Vou já fazer o meu curriculum e envio-o ainda hoje. (Pega numa folha de papel e começa a escrever. Depois dá a Diana para conferir) Verifica lá se não falta nada.

Diana vai deitar-se no sofá, com a cabeça no regaço do Dário e lê em silêncio.

DIANA [V. O.] – «”CURRICULUM VITAE”».

Nome: DÁRIO TUTE SIMOA DA CRUZ.

Filiação: João da Cruz de Alexandra e Helena Tute Simoa.

Nacionalidade: Cabo-verdiana.

Idade: 33 anos.

Estado Civil: Unido do Facto.

Bilhete de Identidade, nº 287392.

Morada: Monte Sossego, Rua 3, nº 86 – Mindelo, São Vicente.

Telefone nº 311828.

HABILITAÇÕES LITERARIAS:

Licenciado em Agronomia pelo Instituto Superior de Agronomia de Lisboa.

MÉDIA DO CURSO: 19 Valores.

CONHECIMENTOS DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS:

INGLÊS – Bom (5 anos no Liceu).

FRANCÊS – Bom (5 Anos no Liceu).

LATIM – Razoável (2 Anos no Liceu).

EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL:

ÁREA DO ENSINO:

Alfabetizador na Escola de Ribeirinha – São Vicente - Cabo Verde; Professor do Ciclo Preparatório em São Vicente – Cabo Verde. (Depois de leitura) Que bom meu amor! (Dário inclina-se e dá-lhe um beijo) Vais passar. Conseguir 19 valores na faculdade!… Não é para qualquer macaco.

DÁRIO – Vou ganhar muito dinheiro, vamos mobilar a nossa casa, o nosso próximo filho vai viver como um príncipe. (Quando ele diz «o nosso próximo filho», a Diana lembra-se da filha falecida e fica triste) Bem, vou tirar os outros documentos para juntar e envio ainda hoje. (Levanta e dá mais um beijo à Diana antes de sair) Até já, querida.

CCXLX CENA

Dário está sentado no sofá, contente com uma carta na mão.

DÁRIO [V. O.] (abre a carta e começa a ler em silêncio – «Delegação do Ministério de Agricultura do Mindelo. Exmo. Sr, Dário Delgado Silva. Vimos através desta informá-lo de que a sua candidatura para uma vaga de Técnico Superior de 3ª classe foi apreciada por nós e mereceu o nosso parecer favorável…».

Dá um pulo e deixa escapulir uma viva de contentamento. Diana entra na sala.

DIANA – Credo, Dário. O que foi?!

DÁRIO (continua com a leitura, já em voz alta) – «Houve quatro candidatos, mas as suas médias estão muito aquém da sua. Só para lhe dar uma ideia, a melhor nota depois da sua é uma de 13 valores. Pois, entretanto, é de lamentar, o Tribunal de Contas ter recusado o visto no seu processo, pelo facto de no seu Registo Criminal… (Pausa. Ouve-se voz off) …constar que esteve preso e condenado a pena maior. E como sabe, quem já tenha sido condenado pelos crimes descritos no seu RC, não pode ser admitido na Função Pública». (Arremessa a carta e levanta-se do sofá de um pulo) Droga!

DIANA – Então?!…

DÁRIO – Desgraçado! O que vai ser da minha vida?

DIANA – O que é que aconteceu, meu bem? Estavas agora tão otimista!

DÁRIO – Estamos perdidos. A minha condenação foi perpétua.

DIANA – Perpétua?! Desde quando em Cabo Verde isto existe?

DÁRIO – Apanha a carta e lê. Fui o melhor candidato… o único que apresentou um certificado com a média de 19 valores. Mas não me admitiram por causa do Registo Criminal! E agora? O que será da minha vida?

DIANA – Não desesperes, nem desanimes. Vou à casa dos meus pais e na volta passo pela dos teus. Ocorreu-me uma ideia que… possivelmente poderá ser alternativa. Vou pedir opinião aos nossos pais.

DÁRIO – Que alternativa? Que opinião? Eu não aguento viver assim? Se as coisas persistirem deste jeito, mato-me e tudo fica resolvido. Não vou roubar para voltar de novo à prisão… e desta feita como um criminoso!

DIANA (vai abraçá-lo e dá-lhe o conforto) – Reza e peças a Deus que te livre de tentações. Não penses fazer asneiras! O mais difícil já passou. Vai descansar no quarto enquanto vou à casa dos nossos pais. Não demoro.

Diana dá-lhe mais um beijo e sai.

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