Novamente, Lala está no consultório do Curandeiro.
CURANDEIRO – Então? Resultou ou não?
LALA – Não! Estava quase, mas não resultou!
CURANDEIRO – Por que é que não resultou? O que foi que falhou?
LALA – Coisa estranha, senhor!
CURANDEIRO – Ah, eh?! Que coisa? Estranha porquê?
LALA – A comadre levou-me para o quarto, eu já nunpriti e com o candeeiro apagado, senti chicote a vergastar-me nas costas e na mama-cadeira… sai assim como estava e corri como um doido.
CURANDEIRO – O finado do teu compadre cascou-te?
LALA – Só pode ser ele, senhor.
CURANDEIRO – Espera aí… (olha para as cartas e finge verifica-las) Já vi porquê.
LALA – Porquê?
CURANDEIRO – Não devias ter ido para o quarto que já foi dele. Quando se destouca uma viúva, pela primeira vez não se deve entrar no quarto dela, nem usar a cama onde ela e o marido se deitavam.
LALA – Então porque não me avisou naquele dia?
CURANDEIRO – Não me disseste que ias entrar no quarto. Eu mandei-te experimentar falar com ela, mas não fazia ideia de que ias conseguir tanto.
LALA – E agora?…
CURANDEIRO – Agora tens que ir falar de novo com ela. Inventa lá uma desculpa qualquer.
LALA – Já sei como lhe vou dizer.
CURANDEIRO – Como?
LALA – Vou dizer-lhe que, como ela se recusou ficar nunpriti, o compadre se chateou.
CURANDEIRO – Muito bem! Já vi que és perito em destoucar viúvas!
LALA – Já destouquei mais de não sei quantas!
CURANDEIRO – Também o Lala não é feio… nem é mariadu! Dificilmente uma viúva consegue resistir a esses teus olhos carambolados!
LALA (ri-se) – Até me apelidam de Larachado. E João Cirilo pôs-me na gaita: Filho amaldiçoado / Destoucador de Viúvas / Homem sem piedade / Homem sem consciência / Viúvas, ele reservou para ele / Os vizinhos expulsaram-no.
CURANDEIRO – Valeu! Mas agora já sabes: no quarto dela e em cima da cama onde ela dormia com o teu compadre, só depois do terceiro encontro.
LALA – Agora já sei. Vou levá-la para trás da cocheira onde amarro o burro.
CURANDEIRO – Mais uma coisa: quando estiverem a matar o porco… não a deixes chorar antes de ti.
LALA – Para não deixar que ela chore antes de mim?! Então eu tenho que chorar?!
CURANDEIRO – Tens… tens!
LALA – Mas porque é que eu tenho que chorar? Chorar sem mágoa?!
CURANDEIRO – Se ela chorar antes de ti, voltará a ficar viúva outra vez.
LALA – Credo, senhor! Ela voltará a ficar viúva?! Morrerei?
CURANDEIRO – Como dois mais dois são quatro. Destoucar uma viúva não é coisa de brincadeira.
LALA – Mas eu já destouquei tantas… não chorei e ainda não morri!
CURANDEIRO – E elas choraram?
LALA – Algumas… sim.
CURANDEIRO – Então não deve ter sido tu o primeiro. O caminho já havia sido, certamente, desbravado.
LALA – Fui eu, sim. Elas juram que fui eu que as destouquei!
CURANDEIRO – Diz-me o nome de uma, por exemplo, para eu ver nas cartas.
LALA – Tantarutxa, Rixéla, Xipiróta, Maria Poi-Tudo, Tché, Fatona…
CURANDEIRO – A Rixéla disse-te que foste tu que a destoucaste?
LALA – Disse. E é uma das que me dá remoque sempre que me encontra. Mesmo agora que ela vive com outro marido, sempre que encontra comigo, desafia-me: mofino! Tiraste-me o véu da viúva e nem responsabilizaste. Quando a destouquei o marido dela ainda não tinha um ano morto.
CURANDEIRO – Coitado! A Rixéla andava com o meu irmão, quando o marido ainda era vivo. E no dia que ela enterrou o marido, o meu irmão dormiu em casa dela. Como é que ela pode dizer que foste tu que a destoucaste?
LALA – Ah, é! Então ela é mentirosa?
CURANDEIRO – Mentirosa e grande bandida. E não é só ela! Todas as outras que também estavas convencido de que destoucaste, são Pixinguinhas. Grandes bandidas. Tu encontraste sempre foi korkoróta no fundo da caçarola.
LALA – Mas a comadre Nhamina eu tenho a certeza que ela ainda está viúva. Ela é muito séria. Muito religiosa. E a ela vou destoucar de certeza.
CURANDEIRO – De qualquer maneira, põe-te a pau. Fica ciente. Tens que abrir mais as pestaninhas! Este mundo não é de macacos. É para macacos.
LALA – Você já me meteu medo. E já me pôs no trabalho a sério!
CURANDEIRO – Se não queres ir morar para a Casa Para Todos, faz como te disse. Senão vais ficar vizinho do teu compadre, e é aí que ele vai chicotear-te.
LALA – Credo! (Riem-se) Ok. Com a comadre vou tentar chorar. É claro que não quero morrer! A Casa Para Todos que fique para quem a fez ou para quem quer aproveitar-se dela para o proveito próprio.
CURANDEIRO – E deves levar uma faca, antes de começares o açougue, aplica sete golpes ao colchão.
LALA – Para quê?
CURANDEIRO – Para espantares o espírito do falecido.
LALA – Tá bem. Muito obrigado.
Levanta-se e despede.
CENA CLXVI
O Curandeiro, a mulher e os filhos, o Bodona e o Pedro Sabininha estão na sala de jantar, sentados à mesa a almoçar guisado de mandioca e massa de milho com carne de capado acompanhado com xerém. Para beber, têm vinho, grogue, sumo de Calabaceira e Tamarindo. Enquanto vão comer, vão conversando.
BODONA – A fama do tio está a correr o mundo. Todos estão a dizer que é um grande mestre.
CURANDEIRO – Eu já dei provas do meu trabalho, sobrinho! (Para Pedro Sabininha) E o Sr. Juiz que o diga! (Para Bodona novamente) Ele sabe.
PEDRO SABININHA – Então não sei?! Eu sou testemunha.
CURANDEIRO – Ainda bem!
PEDRO SABININHA – Bebia que nem um funil… não foi você quem me curou?…
BODONA – O papá contava-nos, também, que havia um tal Mulatinho Preta de Achada Grande, que era muito bom.
CURANDEIRO – Conheço muito bem a estória do Mulatinho. Era funcionário da Imprensa Nacional e tinha manias de ler livro de Santo Cipriano. Ele só praticava magia negra para conseguir mulheres.
PEDRO SABININHA – Tenho ouvido algumas estórias dele e confesso-vos que me metem medo.
CURANDEIRO – Muitas coisas que dizem sobre ele não é verdade. Ele era farompeiro, sim, as pessoas acreditavam nele.
BODONA – O papá costumava contar-nos que, certo dia, dois pescadores estavam no alto mar a pescar, que fazia muito calor e um deles resolveu dar um mergulho para refrescar-se. Que mal cai à água, voltou assustado ao bote, a dizer: - «Vi o Mulatinho Preta no fundo do mar, deitado de costas, a ler o livro de Santo Cipriano!»
PEDRO SABININHA – Ele não era limpo, certamente!
O Curandeiro ri-se.
BODONA – E contou ainda, que o meu avô lhe contara, que uma vez o Sr. Fernando Sousa, que era branco e tinha um navio que fazia viagens para Lisboa, cruzou-se com Mulatinho Preta no Rossio. Que Mulatinho esticou-lhe a mão para o cumprimentar, mas que o Fernando Sousa o deixou com a mão no ar, e disse-lhe que não ia sujar a sua mão na pele de um negro.
PEDRO SABININHA – Também costumo ouvir essa estória. Dizem que Mulatinho era preto, mas que tinha a pele brilhante e textura fina. Que o cabelo também era negro, liso e que ficava ondulado quando o untava com vaselina.
CURANDEIRO – Estilo de pessoas impostoras.
BODONA – O meu pai disse que Mulatinho virou-se e disse ao Fernando Sousa: - «Este Preto ainda há-de fazer com que o Branco deixe de ser enxergado». – Que três dias depois, Fernando Sousa arrancou o seu navio ruma a Cabo Verde, que já nas águas do arquipélago o navio deixou de ser visto. Que esteve três dias à deriva, com barcos e aviões à sua procura, sem sucesso. Que a Rádio Clube de Cabo Verde não parava e nem se cansava de noticiar o facto.
PEDRO SABININHA – Credo! Ele não era limpo, não.
CURANDEIRO – O navio não tinha desaparecido nada. Já me contaram isso várias vezes e já lhes disse que era no mês de Dezembro e que fazia nevoeiro.
BODONA – Mas o meu pai acreditou. Ele disse-me que uma irmã do Fernando Sousa, que assistira a cena no Rossio, pediu aos familiares na Praia para que fossem pedir desculpas ao Fernando Sousa e pedir-lhe de esmola que retirasse o feitiço ao navio do seu irmão. E contou-lhes o que se passara em Lisboa. Que o Mulatinho disse aos familiares, que tal dia, às tantas horas, o navio haveria de aparecer em tal sítio. E que no timing estabelecido, a Rádio Clube de Cabo Verde anunciava insistentemente que o navio do Fernando Sousa havia aparecido no local anunciado, e que toda a tripulação se encontrava bem.
O Curandeiro serve mais uma rodada para todos, bebe o dele de um só gole e levanta-se.
CURANDEIRO – Vocês dão-me licença. (Vai dar ao Pedro uma palmadinha no ombro) Anda cá, Sr. Juiz.
BODONA (levanta-se) – Não, tio.
CURANDEIRO – Não, porquê?
BODONA – Nós é que saímos. Vocês ficam aqui, nós é que vamos para sala. Vamos ouvir um pouco de música. (Para a mulher e os filhos do Curandeiro) Vamos, tia! Primos vamos ouvir música na sala.
CURANDEIRO – Obrigado, meu sobrinho!
Saem todos, ficam o Curandeiro e o Pedro Sabininha. O Curandeiro serve um grogue para ele e um sumo de Tambarinas para Pedro. Apanha dois nacos de carne, dá um ao Pedro e come o outro.
CURANDEIRO – Pois, Sr. Juiz, preciso de um apoio seu.
PEDRO SABININHA – Com certeza, evidentemente, off course.
CURANDEIRO – Os clientes estão a fugir de mim…
PEDRO SABININHA – Porquê?
CURANDEIRO – Dizem que um fanfarrão que veio de São Tomé e Príncipe…
PEDRO SABININHA – Ah, eh?!
CURANDEIRO – Está a armar-se em mestre e as pessoas agora vão quase todas para ele.
PEDRO SABININHA – Acho que já ouvi falar desse mestre. Não é aquele que trabalha com espíritos?
CURANDEIRO – Exatamente. Mendinho. Chama-se Mendinho Mendes. Mas é mentira, Sr. Juiz. Ele bebe grogue e cerveja, fica bêbado e engana as pessoas.
SABININHA PEDRO – Dizem que ele encarna um espírito que se chama Mobinga, espírito de um médico, que bebe uma caixa de cervejas e fuma sete cigarros de uma vez só antes de começar o trabalho.
CURANDEIRO – Tudo montagem… Sr. Juiz. Ele está a enganar as criaturas.
PEDRO SABININHA – Um primo meu disse-me que foi lá, por causa de uma menina por quem ele estava apaixonado, e que o homem trabalha com sete finados que encarnam nele.
CURANDEIRO – Sete mentiras saindo da boca dele. Por isso mesmo é que me lembrei, agora que estamos a falar do Mulatinho Preta de Achada Grande.
PEDRO SABININHA – É precisamente o espírito desse Mulatinho Preta de Achada Grande que o meu primo disse que o homem invocou para tratar do seu assunto.
CURANDEIRO – É um grande mentiroso!
PEDRO SABININHA – Ok. Então… em que é que eu lhe possa ajudar?
CURANDEIRO – Quero que arranjem forma de o prender… de estorvar-lhe de me concorrer.
PEDRO SABININHA – Irei estudar o caso e verei o que fazer. (Olha fixamente para o Curandeiro) E para isso irei precisar do apoio do seu sobrinho. Do Comandante Bodona.
Neste momento Bodona chega com o seu copo vazio.
BODONA – Desculpem-me. Vim só encher o meu copo.
Pega na garrafa e serve no seu copo.
CURANDEIRO (seca também o dele e pega na garrafa) – Já agora… mais uma peça que leva.
Ele enche o seu copo, pega na garrafa do sumo de Tamarindo e enche o copo do Pedro.
PEDRO SABININHA – Muito obrigado! (Para Bodona) Camarada Comandante…
BODONA – Em quê vos posso ser útil?
CURANDEIRO – Senta-te aqui. Por acaso já te íamos chamar.
PEDRO SABININHA – Camarada Comandante, o seu tio está a precisar de um serviço nosso.
BODONA – Onde está o problema? E qual é o serviço que de nós o tio está a pretender?
PEDRO SABININHA – Tenho uma tarefa a executar, quando regressarmos à base, mas espero contar com o seu habitual apoio.
BODONA – Com certeza, claro, evidente e off course. De que trabalho se trata?
CURANDEIRO – O sobrinho sabe daquele mestre, daquele impostor que veio de São Tomé e Príncipe há coisa de dois anos?
BODONA – De quem o tio está a falar?
CURANDEIRO – Chama-se Mendinho Mendes?
BODONA – Aquele que dizem que trabalha com os espíritos.
PEDRO SABININHA – Sim, senhor. É ele mesmo.
CURANDEIRO – Não sabias que ele anda por aí a enganar muita gente?
BODONA – Não!… Antes pelo contrário. Até tenho ouvido falar muito bem dele! E curiosamente, dizem que o espírito do Mulatinho, que há bocado estivemos a falar, também encarna nele!
CURANDEIRO – Mentiroso é o que ele é!
PEDRO SABININHA – Ele anda a ratoneirar as pessoas e já aldrabou todos os clientes ao seu tio. Ouvi dizer que a casa dele está sempre cheia de gentes.
CURANDEIRO – Ele está a concorrer-me descaradamente. Por isso acho que vocês devem ajudar-me a dar um jeitinho nele.
BODONA – Que jeitinho? De que maneira?
PEDRO SABININHA – O seu tio quer que o prendamos. Como acha o camarada Comandante?
CURANDEIRO – Todos os meus clientes agora só vão para a casa dele.
BODONA – Ok. Então se a solução está nas nossas mãos, o tio vai recuperar já os seus clientes.
PEDRO SABININHA – Então vou mandar os meus milicianos prendê-lo com toda a sua bugiganga.
BODONA – Apoiado.
CURANDEIRO – Aleluia. Deus te oiça, sobrinho!
BODONA – Até porque, existem queixas contra esse homem. Duas pessoas terão morrido quando regressavam da casa dele.
CURANDEIRO – Eu sei disso.
BODONA – Tinha dito que toda a gente gostava dele, mas agora me lembrei disso. Que é suspeito de dois homicídios.
CURANDEIRO – Disseram-me que o Hospital mandou desenterrar o corpo, retirou alguns órgãos para mandar examinar em Portugal.
BODONA – É verdade. E estão à espera dos resultados.
CURANDEIRO – Por favor arranjem uma forma de o prender. O senhor juiz não fica a perder comigo.
PEDRO SABININHA – Você pode ficar descansado. Como lhe disse, vou já ver como mandar prendê-lo, ele e todos os seus materiais.
CURANDEIRO – Muito obrigado. (Apanha a garrafa de aguardente) Vai mais um pé.
Brindem-se.
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