PAULITO (continuação – 8ª parte)
Cultura

PAULITO (continuação – 8ª parte)

 

XLVI CENA

TOTINHO – Mamã, vou dar uma voltinha com o António para lhe mostrar a zona. Depois vamos dar um giro até Mangue para vermos um pouco a festa. (Para Nhu Seis) Sabes que conjunto vai tocar no Polivalente?

NHU SEIS – Não, não sei.

TOTINHO – No Polivalente vai estar o conjunto Finason. Também na Esplanada Graciosa é Tulipa Negra que vai tocar. Dizem que Nhu Puxin vai contar as suas anedotas em casa da Tatá de Álvaro. Sabes que eu adoro ouvir as piadas de Anastácio Lopes?

NHA MANÉZIA – Com tanta festa que hoje há por aqui, o que é que tu vais buscar na Vila? Por que não divertes aqui na vizinhança com o rapaz que veio passar a festa contigo? Sabes que no dia como hoje, Mangue fica aborrecido e atrapalhado com movimento de pessoas? Ou já esqueceste que dia é hoje?

NHU SEIS – Estou de acordo com Nha Manézia, Totinho. Que brincadeira é que há hoje por aqui, Nha Manézia?

NHA MANÉZIA – Já aqui em casa de Nha Tudinha, Codé de Dona vai tocar gaita; no fundo da ribeira há uma despedida de solteiro, porque Naninha, neta de Nhu Serafim, vai casar amanhã. Nha Guida Mendes, Bebinha Cabral, Nácia Gomi e Tcheca Libera vão lá pôr batuque. Em casa da Pudoca, dizem que dois tocadores de clarinete, um de Praia Maria que se chama Calim e o outro de Porto Santiago conhecido por Lalá ou Irmão, vão tocar clarinete. Anda há rezas de terço e ladainhas em quase todas as casas dos vizinhos. E a meia-noite há missa na capela.

TOTINHO (para Nhu Seis) – Achas que não vale a pena irmos à Vila?

NHU SEIS – Eu acho que não vale a pena, se cá na beira há todas essas festas que a D. Manézia disse. Mas… tu é que sabes.

NHA MANÉZIA – Vocês é que sabem, mocinhos. Vocês já são adultos… não quero intrometer-me no vosso assunto. Simplesmente vos disse na qualidade de mais velha.

NHU SEIS – Acho que D. Manézia está sendo democrática connosco, Totinho. Ela não quer criar-nos Handicap.

Totinho pensa que a palavra Handicap é holandesa, exibe então o seu francês.

TOTINHO – Oui, monsieur, ça va? Je crois que il c'est ça. Donc nous avons qui débrouiller cet affaire. Ça vas pas non?

NHA MANÉZIA – Por favor, deixem de falar esta língua de porcaria e falem que todos nós percebamos. Totinho sabe que eu não tenho escola e que nunca me embarquei nem para Sul.

TOTINHO – Desculpa, mamã. Sabes… o meu amigo exibiu o seu holandês, mostrei-lhe também que Francês é comigo. (Para Nhu Seis) D'accord, mon ami Antoine? Ou pensas que estou a déconner?

NHU SEIS – D. Manézia tem toda a razão. Devemos falar essas línguas lá para o estrangeiro. Peço desculpa, D. Manézia, porque fui eu que comecei primeiro.

Abraçam-se e, entre gargalhadas, Totinho serve um grogue, Nhu Seis um ponche e Nha Manézia uma laranjada.

TOTINHO (coloca o seu copo em cima da mesa) – Vou à casa de Nhu Serafim ver cara da Naninha no assento de noiva. Do jeito que ela chacota aos outros?! Com quem ela vai se casar, mamã?

NHA MANÉZIA – Ela vai casar-se pela procuração. O noivo está em Lisboa. É filho de Nhu Casimiro de Chão Bom de Mangue. Oh! Como é o nome do homem?! Casimiro tem muitos filhos!… É aquele que está em Lisboa!

TOTINHO – Não me digas que é com Dominguinhos que Naninha vai se casar?!

NHA MANÉZIA – É com ele mesmo. Sabes… Nhu Casimiro tem 64 filhos!

NHU SEIS – Quantos filhos?!

NHA MANÉZIA – Isto é, 64 são os que ele assumiu. Pois, é o Dominguinhos que vai casar-se com a Naninha de Nhu Serafim. Naninha já namorava, uma data de tempo, com Zeca de Catrina. Mas… coitado do Zeca. Só sabe pescar e trabalhar as águas!… E por mal dos seus pecados, o mar está cada vez mais bravo e a chuva já não cai há alguns anos. Dominguinhos mal chegou de Lisboa, Naninha krapu nele… vão casar-se pela procuração e ele vai mandar buscá-la. Até cochichavam por aí em como a Naninha não era virgem. Mas dizem que ela deu provas ao Dominguinhos e que foi Dominguinhos quem a desflorou… quem tirou-lhe os três vinténs. E há suspeita de que ela está grávida. E se calhar é verdade porque Susana disse que viu roupa de noiva que veio de Lisboa, que não trouxe o véu e é cor-de-rosa. As rapariguinhas que estão virgens não casam sem véu, nem com roupa cor-de-rosa. Casam-se de branco e com véu a arrastar-se pelo chão.

TOTINHO (dá uma gargalhada) – Quase que Zeca pensou que Naninha era sua irmã. Também Dominguinhos já lhe ensinou. Paciência, meu Deus. Naninha trocou Zeca, rapaz novo, bonito, trabalhador, por um homem velho que pode ser seu pai?! Feio, desdentado, careca, coxo!… Não percebo! Por isso que Zeca anda muito triste por esses dias! Como quem esteja possuído por maus-olhados ou amaldiçoado pelas bocas peçonhentas! Encontrei-me ontem com ele na subida de Achada Moita, levava um feixe de palha à cabeça, camisa toda rota, calças esburacadas no traseiro, pés descalços… como quem esteja assombrado ou que uma coruja pousou por cima. (Pausa) Vou sair, quando a Susana chegar de Assomada manda-lhe arranjar a cama no meu quarto para duas pessoas (Para Nhu Seis) Vamos, António.

XLVII CENA

Na sala, Nhu Seis está sentado e Totinho de pé.

TOTINHO – António, a festa estava bué fixe. Não achas?

NHU SEIS – Muita fixe! Aquela noiva é muita bonita!

TOTINHO – Naninha?! Ho rapaz! Como ela diz-se debote. Quando ela tinha entre 14 e 15 anos de idade… parecia uma santa. Aqueles olhos redondos como a lua cheia; cabelo comprido até as nádegas que nem uma sereia; bunda redonda, rebolando quando ela passava por nós, deixava-nos a todos com água a parir na boca. Sabes, ela e eu somos quase da mesma idade.

NHU SEIS – E por que a deixaste escapar? Uma moça bonita daquela?!

TOTINHO – Ela não era colher para qualquer prato, rapaz. E nem bocado para todas as bocas. Antes de me embarcar, que moça é que se interessava namorar comigo?! Eu tinha os pés cheios de pulguinha e coceirinha por todo o corpo! Zeca de Catarina a conseguiu porque dizem que fez-lhe porcaria. Que roubou incenso ao Sr. Padre, comprou um bolo e meteu debaixo do sovaco até se ensopou de suor, misturou-o com incenso e deu a Naninha. Que quando ela comeu o bolo ficou doida nele.

NHU SEIS – Aquela moça que estava a dançar com o rapaz de escovinha dança funaná espetacularmente!

TOTINHO – É Lumena de Juventina. Ela é de Porto Santiago. Vem todos os anos à festa de Pega-Burrinho e hospeda em casa de Nha Tuda, sua madrinha.

NHU SEIS – Ela dança que é uma maravilha.

TOTINHO – Não reparaste como é que aquele estupor do Bujú ficou a olhar para o rabo dela? Ele estava a tocar ferrinho, mas não tirava os olhos das nádegas de Lumena. Ele tem mau feitio!

NHU SEIS – Eu reparei. Ele estava como feiticeiro quando quer comer criatura. (Pausa) Totinho, eu não estou com muita vontade de sair mais.

TOTINHO – Porquê? É por causa do Bujú? Ele não vai mexer contigo. Nem se lhe pagarem. Se ele ousar tocar-te, faremos chacina à carne dele que servirá amanhã para o almoço.

NHU SEIS – Medo porquê? Sou homem uma vez porque só se faz uma vez. Não quero sair, mas não é por causa de nada.

TOTINHO – Então, quando sentires sono, o quarto é aquele que te mostrei há bocado. Sobes a cama e deitas-te. Eu vou dar uma voltinha aqui ao redor e volto lá pela madrugada. Faz de conta que estás em tua casa. Deixa-me chamar a mamã e a Susana para virem acompanhar-te enquanto não sentires sono. (Chama) Mamãe…

NHA MANÉZIA – Diz, Totinho.

TOTINHO – Anda cá. Tu e a Susana. (Apanha a garrafa e serve um grogue) Mamãe, António disse que não lhe apetece sair. Acompanhem-no aqui na sala enquanto ele não sentir sono. Susana, já arranjaste a cama no meu quarto?

SUSANA – Já, sim.

NHA MANÉZIA – Sr. António não gosta de festas ou é de nós que não gostou?

NHU SEIS – Gosto de festas, gostei da vossa casa e gosto muito de vocês. Mas não sei o que me aconteceu naquela festa do casamento, fiquei tonto, entorpecido e os meus olhos ficaram turvos.

NHA MANÉZIA – Não bebeu nada, nem comeu nada por lá?

NHU SEIS – Beber… não bebi, porque não sou muito de bebidas alcoólicas. O que lá comi foi um bocadinho de cabidela e um pedaço de torresmo.

TOTINHO – Vens já começar com as tuas coisas de acreditar em asneiras.

NHA MANÉZIA – Acreditar em asneiras, não. Queres fingir que não sabes como é aqui? Mas o rapaz que veio passar festa connosco… eles não vão comê-lo, nem vão entregá-lo ao Diabo em pagamento das suas promessas!

TOTINHO – Não leves em conta as coisas da mamã, António.

NHA MANÉZIA – Senhor António, não vai atrás da conversa do Totinho. Espere que já lhe vou ferver um chá de arruda. Se o senhor não ficar bom, aí agora… faço-lhe remédio a sério. (Para Susana) Susana, vai trazer-me aquela saqueta que tem folhas de tamarino e raiz de nbulda na despensa. Vê la se consegues apanhar uma barata e trazes-me.

TOTINHO – Vens tu com essa mentalidade ultrapassada, que basta uma pessoa adoecer a culpa é das bruxas; se morrer… é o Diabo que o matou ou feitiço que lhe fizeram. Já ninguém pode morrer de doença, nem Deus pode matar!

NHA MANÉZIA – Cala a boca e não me fazes sentir fastio de ti. Estás no estrangeiro, mas foste foi daqui. Foi aqui que nasceste e criaste. Ou queres ignorar? Tu eras ainda pequenino, mas deves estar a lembrar quando a Guidinha de Romana morreu. Não te lembras que ela morreu de parto? Pois, o finado veio dizer que foi uma comborça que a matou. Uma sumera que andava com o marido dela, e ela, inocentemente, pensando que eram amigas, ia sempre a casa dela. E sempre que ela lá fosse, a nanprésta punha-a sentar-se em cima de um pilão. Guidinha estava grávida. Quando a comborça soube que ela estava em trabalho de parto, virou o pilão com a boca para o chão, Guidinha ficou a ímpar mas o menino só lhe subia para o estômago. Desesperou-se com a dor até que morreu. E quem foi que matou o Mano de Bastiana? Não foi Nhu Serafim, o pai da Romana, mãe da Naninha que vai-se casar amanhã com Dominguinhos? Quando não se sabe uma coisa é melhor ficar calado. Nhu Serafim é pactuado com o Diabo. Todos os anos ele tem que pagar o pacto, entregando uma criatura, para manter a sua riqueza. Ele deu um grogue ao Mano e mandou-o levar uma carta em Biscainhos. Pelo caminho, Satanás atacou o coitado do Mano. Lutaram e, a sua sorte foi porque apareceram três rapazinhos. Satanás tem medo de três coisas: da colisão de pedras, de bufa de mulher parida e de rapazinho. Quando o Demónio viu os rapazinhos, soltou o Mano e fugiu. Mano foi dizer Nhu Serafim, ele negou, jurou e chorou. Um mês e tal depois, Mano foi encontrado morto numa lapa em Monte Graciosa. O finado veio e encarnou na Djéna de Quina, contou tudo.

SUSANA (volta da despensa) – Já pus as coisas todas na cozinha, mamã.

NHA MANÉZIA – Obrigada. (Para Totinho) E sai da minha frente. Sai e vai à tua corrida, deixa o rapaz aqui connosco.

TOTINHO – É melhor assim. Deus nos dê boa noite.

NHU SEIS, SUSANA E NHA MANÉZIA – Que nos amanheça em paz.

Totinho sai por um lado, Nha Manézia por outro. Susana e Nhu Seis ficam na sala.

SUSANA – O que é que você tem que não quer ir à festa?

NHU SEIS – Não tenho nada.

SUSANA – Olhe lá se já não lhe embruxaram. As bruxas daqui não têm vergonha. Elas comem até os próprios filhos.

NHU SEIS – Deve ser cabidela que comi e não me soube bem no estômago.

SUSANA – É bem capaz. Vocês que moram na Praia estão habituados a comer coisas finas como arroz, bife, massa macarrão… quando vêm para fora não conseguem comer a nossa cachupa, cabidela, tenterem, requeijão, etc. Lá, o vosso pequeno-almoço é Nescafé com pão ou bolacha com manteiga inglesa; enquanto nós que moramos na fora enchemos o estômago com cachupa-de-ontem ou uma caneca de chicória com cuscuz ou camoca.

NHU SEIS – Vivi pouco tempo na Praia. Sou emigrante há bastante tempo.

SUSANA – Ainda por cima… vocês que estão no estrangeiro!…

NHU SEIS – Nós que estamos no estrangeiro, como?

SUSANA – Você compara estrangeiro com Cabo Verde? Estrangeiro é sempre estrangeiro! Não sei quando é que ponho lá os pés.

NHU SEIS – É fácil se tu quiseres. Basta falares com o teu mano, ele te leva. Ele tem possibilidade disso. Tem lá boa vida, tem casa própria, bom emprego…

SUSANA – Quem lhe enganou que ele vai-me levar? Totinho?! Se for por ele… apodreço aqui. Quantas vezes lhe tenho botado piadas, ele finge sempre que não entende! E se lhe der para me responder, diz-me que quando eu arranjar marido, que o marido me leva.

NHU SEIS – Ele não te disse nada mariado. Se tens fé…

SUSANA – Fé em quê, Sr. António?

NHU SEIS – Deixa-me dizer-te uma coisa, mas por favor não me leves a mal.

SUSANA – Pode dizer. Não me zango tão rapidamente.

NHU SEIS – Não me trates por você. Dá-me a sensação de que me estás a considerar um velho.

SUSANA – Está bem. Passo a tratar-te por tu. Pois, conforme estava a dizer-te, essa fé quase que é impossível.

NHU SEIS – Impossível porquê?

SUSANA – Os rapazes daqui, são contados pelos dedos, aqueles que conseguem embarcar. E quando chegam lá, juntam-se com brancas, escrevem a família e mandam dizer que só vêm à terra se forem comidos pelos pássaros e defecados cá. Achas que devo ter esperança em algum deles?

NHU SEIS – Tu não sabes! Ninguém sabe do seu futuro.

SUSANA – Então eu estou a adivinhar.

NHU SEIS – Por que então é que a tua vizinha vai casar-se com emigrante?

SUSANA – Oh rapaz! Tu não sabes quem são os familiares da Naninha?! Ela é neta de Nhu Serafim, dono de todo o Colonato! Que tem casa em Chão Bom, tem sobrado na Vila, prédios na Praia e em Assomada. Ele tem carro na estrada e horta em Santiago. É proprietário de sequeiro e de regadio. Desde que eu era criança ouvia dizer que Nhu Serafim era contratado com Diabo. (Faz o sinal da cruz) Não me compares com Naninha por amor de Deus, António.

NHU SEIS – Porquê? Tu achas que ela é melhor do que tu, só porque a família dela é rica?

SUSANA – Tu não conheces os emigrantes daqui! Nós que andamos com pés descalços, eles não nos passam cartão. Se Dominguinhos não estivesse velho, certamente não casaria com Naninha, mesmo sendo neta de Nhu Serafim.

NHU SEIS – Por que é que não casaria com ela?

SUSANA – Deixa-me parar de falar mal de emigrantes. De roer a carne em cima dos ossos.

NHU SEIS – Porque estás a dizer assim?

SUSANA – Estou a brincar. Tu és emigrante mas não és parecido com eles. Tu tens outra aparência.

NHU SEIS – Outra aparência como, Susaninha?

SUSANA – Porque é que me chamas Suzaninha? Ou desprezas o meu corpo? Ele tem pouca carne, mas idade já tem que chegue. Vou fazer 17 anos.

NHU SEIS – Desculpa-me. A minha intenção não era de te magoar. Foi pela confiança que te chamei Susaninha. É um nome mimado… de estimação. Se há coisa que podes considerar demais nesta palavra Suuzaaniiinha, é a doçura que lhe tempera a pronúncia. Nada mais. Mas Susana, que remédio, depois deste pecado que cometi? Parece-me que a única solução é confessar-te que vejo as portas do Inferno escancaradas, o rei no trono a atiçar lume, esperando que a minha alma vá hospedar-se no seu enorme caldeirão. Pois, estes sentimentos de admiração, de mimo e estimação, estiveram comigo desde primeira hora que te vi. Se queres condenar-me, peço-te, por favor, que não canses. Porque essa palavra, Suzaninha, é para mim, a partir de agora, a palavra mais doce que alguma vez a minha boca pronunciou.

SUSANA – António, tenho apenas quarta classe, mas pensas que não percebi que me estás a fazer poesia? Se queres saber, eu adoro poesias. Não sei fazê-las, porque não tenho escola suficiente, mas sei ler e gosto de ouvir. (Levanta-se) É verdade… dá-me licença, vou buscar uma coisa para te vir mostrar. (Sai e volta com um envelope na mão. Tira uma folha e dá-lha) Toma. Este é de um rapaz que há muito corre atrás de mim. Tenho-o guardado há dois anos.

NHU SEIS – Teu conquistador ou teu namorado?

SUSANA – Meu conquistador. São muitos que correm atrás de mim, mas nunca dei trela a nenhum.

Nhu Seis sorri e coloca o papel na posição de leitura.

NHU SEIS [V. O.] – Susana meu amor / Paixão da minha vida / Não me importo subir ao Céu / Ainda que não tenha escadas / Se me aliviasse o sofrimento.

Levanta a cara, olha para Susana e faz um sorriso aprovador.

SUSANA – Toma mais este. É de um outro rapaz da minha idade, que estuda 9º ano em Assomada. Ele vem ao Tarrafal só aos fins-de-semana.

NHU SEIS [V. O.] – Ah Susana Nha Manézia / Se soubesses desta carestia / Pelo que passo todos os dias / Sei decerto que me explicarias / Por que é que já não me dizes bom dia.

SUSANA – Que tal? Estás a gostar?

NHU SEIS – Gostei. Afinal aqui há muitos poetas.

SUSANA – Poeta, ou pateta. Havia um que eu brincava com ele, dizia-lhe: És um poeta pateta, que não presta, senão para pôr o cabresto.

NHU SEIS – Tu também percebes! Disseste uns versos que até rimam.

SUSANA – Não me troças. (Dá-lhe mais uma folha) Toma só mais este e tchau.

NHU SEIS [V. O.] – Senti um cheiro vir de longe / Abri os olhos e observei o tempo / Deu-me vontade de chorar / Que até mesmo fingi. // As lágrimas banharam-me a face/ Pensei logo em ti, Suzy / Percebi que o mundo não é atoa / Que pra mim és a ideal pessoa. // Compreendi, pois, que aquele cheiro / Não era cheiro de nenhum chiqueiro / Mas, perfume de nha kretxeu / Que Deus me enviou de lá do Céu.

NHU SEIS – Agora guarda os teus papéis e dá-me resposta à minha pergunta.

SUSANA – Qual pergunta?

NHU SEIS – Explica-me por que é que eles não são como eu.

SUSANA – Tu pareces sério.

NHU SEIS – Pareço sério… ou sou mesmo sério?

SUSANA – Não sei. Conforme dizem, dentro de alguém é que é alguém.

NHU SEIS – Por acaso… falaste bonito. Costuma-se dizer que a cara não determina o perfil da pessoa. Nós vemos a cara mas não vemos o coração.

SUSANA – Ok. Eu já contei-te dos meus conquistadores e dei-te as cartas deles para tu leres. E tu… não tens namorada? Aliás, não tens mulher?

NHU SEIS – Tinha uma mulher da qual tenho um filho. Mas agora… pelo que ela me fez… nem quero lembrar se ela existe.

SUSANA – O que foi que ela te fez? Não me tomas por atrevida.

NHU SEIS – Atrevida porquê? Ok. Já que queres ouvir, escuta-me.

SUSANA (chacoteando) – Deixa-me então abrir bem os ouvidos.

Sorriem

NHU SEIS – Quando começamos a namorar, ela trabalhava na Brigada Estrada a carregar baldes de massa para ganhar doze escudos por dia. A mãe dela era pobre, o pai coitado e a família toda miserável. Os irmãos estavam ainda pequenotes. Levei-a para Holanda e… sabes o que ela me fez?! Não me vais acreditar de certeza! Em menos de um ano que ela pôs os pés na Holanda, fugiu com um traficante e deixou-me com um filho de três meses.

SUSANA – Ave-maria… meu Deus! Ela teve coragem de fazer-te isso? Eu não tenho essa sorte. Tenho tanta vontade de embarcar, que se um homem me levar, lavo-lhe os pés e bebo a água.

NHU SEIS – Dizes assim porque ainda ninguém te levou.

SUSANA – Deus há-de dar-me pior dos castigos.

NHU SEIS – Então queres dizer que se eu quiser levar-te, tu ias?

SUSANA – Estás a gozar. Não acredito que estejas a falar a sério!

NHU SEIS – Garantes-me de que se te levar não me irás fazer como ela?

SUSANA – Julgas que sou mal-agradecida? Se me tirares desta terra… nem sei o que te vou pagar. Só sei que te pagarei bem.

NHU SEIS – O que é que me darias?

SUSANA – O que tu quiseres… o que me pedires.

NHA MANÉZIA (chama) – SUSANA…

SUSANA – Sim, mamã.

NHA MANÉZIA – Anda buscar chá e levas Sr. António. Depois vens lavar a loiça para amanhã, porque já está muto noite, temos que ir deitar. Lembra-te de que amanhã vamos a missa cedo. Anda depressa porque estou cheia de sono.

SUSANA – Vou buscar chá na cozinha para ti. Depois vou lavar a loiça rápido e volto para concluirmos a nossa conversa. Não demoro.

NHU SEIS – Mas… diz-me primeiro se concordas com o que falamos.

SUSANA – Espera quando eu voltar eu digo-te.

NHU SEIS – Não… diz-me primeiro. Assim fico descansado.

SUSANA (tapa a mão na cara) – Sinto vergonha.

NHU SEIS – Então vem dar-me um beijo para ter a certeza que gostas de mim.

SUSANA – Náaa! Então vem tu.

Nhu Seis vai para ela, segura-a com as duas mãos nas dela, destapa-lhe a cara e dá-lhe um beijo na boca. Susana liberta-se e foge a correr para o quintal.

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