Com homenagem evocativa a Antoninho di Pala,
assassinado, no imediato pós-25 de Abril de 1974,
pela repressão policial colonial em Vila Nova,
a Chico Chan e a outros protagonistas
dos sangrentos acontecimentos
do 19 de Maio de 1974, data por isso memorável,
e que se tornou com inteira justeza
Dia do Município da Praia
Lembras-te, Maika
dos rostos atónitos incrédulos
de Fernando Corvo e de outros
obscuros e de outros desalentados
e de outros acossados moços da Ponta Belém
sulcados das fissuras do abandono
e da prematura e súbita orfandade
costuradas e cerzidas nos sinais explosivos
deflagrando da calada pacatez e da serena compaixão
dos polícias nossos amigos nossos padrinhos
nossos tutores nossos progenitores nossos
distantes familiares nossos parentes próximos
protectores do sossego nosso e das nossas casas
da tranquilidade das nossas ruas e das nossas praças
desencantados com as arbitrariedades dos poderes estabelecidos
cansados com a quotidiana prepotência as diárias ofensas
os assíduos insultos o frequente rebaixamento
condenados à reclusão no Campo de Trabalho do Tarrafal
por crimes de injúria por delitos de agressão com arma de fogo
a superiores hierárquicos ademais oficiais metropolitanos
Todos nós éramos
observadores atentos
de olhar indómito
estirado sobre a virulenta postura
de Patxitxa Balenti Djaki Kubala Djangu
Kotepó Jaguar Ntoni Perdigon Altafina
Bodi Maroku Sankudja Bola Txui Kaloti
Morgadu Satadjadu Penha Xaxá Zé Kabelu
Zé Skandilha Tiago Fausto Santamaria
e de outros valentes de outros arruaceiros
de outras indomadas criaturas da cidade
e das suas mãos acutilantes desaforadas
desafiadoras dos abusos das autoridades
Todos nós éramos
testemunhas irónicas
de riso livre desfraldado
sobre as palavras desconexas
os ossos derruídos os sinais obscenos
os gestos provocadores as parábolas arruinadas
de Baíno Fumaça Nezinho Brasileiro
Toti Kadabra Kokó Giganti e de outras
figuras carismáticas da Praia marginal
quotidiana nas suas misérias e ousadias
assídua nas suas anedotas e imposturas
Todos nós éramos
tirocinantes da rebeldia
seguidores das lições de valentia
de Djon di Nha Bitina Gui Brito Mário Boka
Mandinho Bugo Camelo Boxeru Djás
e de outros mais velhos
e da sua saga de coragem
em favor dos mais fracos
no afrontamento dos abusos
de quem queria podia e mandava mais
tais os capatazes de obras públicas
os polícias militares e outros detestados
agentes da ordem e da autoridade
(…)
Todos nós éramos
desprevenidos acompanhantes
das mensagens subliminares
feitas circular em animadas festas de fim de semana
em ruidosas audições radiofónicas de relatos de futebol
em patrióticas palestras em louvor do histórico apego
do povo português à sua pátria ouro-verde-rubra
secularmente soberana e independente
em polémicas e conferências congratuladoras
das origens nobres das feições novilatinas
do idioma caboverdiano sempre vivaz
na boca sôfrega na quotidiana
elocução do povo das ilhas
Todos nós éramos
ouvintes afeiçoados
de conversas ardilosas sussurradas
nos automóveis de bem colocados
líderes da clandestinidade política
nos autocarros Sol-Atlântico deambulantes
entre a cidade alta e os seus silentes subúrbios
nos botequins tabernas bares e casas de pasto
na mercearia do Taninho no restaurante Avis
no café Cachito e suas janelas desconfiadas
auscultadoras e suas paredes emolduradas
pelo talento plástico de Luís Melo
frustrado arquitecto celebrado desenhador
projectista-mor dos mais nobres edifícios da cidade
e da sua dissecação mural e da sua pictórica indagação
da sangrenta genealogia do café da sua germinação
entre mãos negras servis em luxuriantes plantações do Sul-Abaixo
à sua torrefacção à sua cálida exalação no branco bem-estar
na sorridente satisfação dos seus habituais consumidores
dos dilectos dos circunspectos dos sorridentes
dos indiferentes clientes dos cafés das cidades
espalhadas pelo chamado mundo civilizado
Todos nós éramos
perscrutadores da audácia e da irreverência
acamaradados a Mariozon Zé Braga Tavares
Loxi Zé Maria Gigante Gordon Agnelo Nha Bodi
e a outros coveiros da cobardia
e a outros domadores da amofinada cautela
Todos nós éramos
íntimos de Chico Xan e Antoninho di Pala
confidentes de Mamede e do corcunda Seminário
e de outros intrépidos e infatigáveis
agitadores da Praia rebelde
e de outros fautores da Praia valente
intranquila nos seus lamentos
destemida nos seus tumultos
desaguando culminantes no 21 de Setembro de 1972
do povo conclamando a revolta acumulada
da juventude convocando as pedras da calçada
contra os bastões os land-rover os volkswagen
os unimogues da PIDE da PSP da Polícia Militar
da multidão libertando os medos seculares
contra as palavras apaziguadoras dos timoratos
das criaturas exortando as antiquíssimas frustrações
contra os discursos enganadores do Governador
e os olhares reprovadores dos seus sequazes
dos seus ouvidos auscultadores de galinhas
de bufos de esbirros da polícia política
em premonitória dissecação em certeira adivinhação
das arruaças das escaramuças das batalhas
que assolariam a Esplanada da Praça Grande
e o sossego dos seus clientes metropolitanos
e a tranquilidade dos seus convivas brancos da terra
e se espalhariam pelas ruas da Cidade da Praia
pelas travessas de Ponta Belém pelas ruelas
da Fazenda e de outros subúrbios
no futuro 19 de maio de 1974 no vindouro
dia do município da cidade-capital da rebeldia
de corpos verdianos crivados das balas da Polícia Militar
de rostos tugas cravejados da inesperada humilhação
infligida pela afiada imprudência das navalhas
pelos revoltosos e sibilinos estalos da juventude
veterana na inconformista demanda da coragem
no quotidiano toureio da temeridade na sua Praça maior
nas suas ruas nas suas pracetas nos seus largos
nos seus becos libertos de rusgas da polícia
livres das incursões das forças militares estrangeiras
entusiastas do Herói do Povo
da sua saga libertadora
das suas palavras proféticas
da sua praxis lendária visionária…
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