Os nós da solidão ou a infinita guerra das estátuas
Cultura

Os nós da solidão ou a infinita guerra das estátuas

(POEMA DE ERASMO CABRAL DE ALMADA)

                        

-QUARTA VERSÃO-

                   I

Dantes havia as estátuas

de navegadores descobridores negreiros donatários

capitães-mores capitães-gerais governadores missionários

e de outros heróis da cruz e da espada e de outros corsários

e de outros espadachins do missal e do rosário

e de outros entendidos nos mistérios dos céus

do mar alto nos enigmas do sextante e do astrolábio

e nas artes da navegação dos seus adversários

no manuseamento dos seus estranhos prodígios

sobreviventes dos temporais dos terríficos naufrágios

das batalhas travadas nos muitos estuários

das urbes estuantes em sangrentos presságios

regurgitantes de perversos obituários

Dantes havia as estátuas

de conquistadores pacificadores bispos e outros prelados

e de outros guerreiros da expansão da fé e do império

e de outros indefectíveis predicadores

e disseminadores da fé no império e no mar

e de outros inabaláveis sacerdotes

e catequistas da fé no império do mar

(por vezes também de vates médicos engenheiros

professores advogados e de outros beneméritos

e de outros curadores dos males do corpo e da alma

e das demais maleitas das criaturas das ilhas

e do mundo ancorado nas ilhas)

Dantes havia as estátuas

que de olhar impávido

sobre o oceano infindo

por vezes pouco límpido

na lonjura heróica e inesquecível

dos gloriosos feitos passados

se perfilavam verticais e impassíveis

na sua imperscrutável eternidade de bronze

Dantes havia as estátuas

que solenes e hirsutas

na sua metálica monumentalidade

festejavam

de olhar frio e severo

a sua hirta e lusa ancestralidade

e apascentavam

a enfática presença da submissão

no ralo verde das praças

no olhar nostálgico dos anciãos

debruçados sobre a memória das cheias

e a amnésia das fomes

e se rejubilavam

com a tímida e imberbe cumplicidade

dos namorados e dos seus beijos recatados

resguardados sob a austera

e precatada sombra dos plintos

abrigados sob a serena

e eufórica penumbra dos pedestais

e se regozijavam

com as brincadeiras das crianças

plenas de infância e ferocidade

e se acautelavam

com as bolas de trapos

salvas in extremis

de astúcia e alegria

à fardada repreensão

do polícia de serviço

                   II

Dantes havia os painéis

incrustados nos azulejos

inundando os corredores

dos liceus dos palácios do governo

e de outros edifícios públicos

e as suas azuis e oficiais figurações

da nobre e ínclita geração portuguesa

e das venturosas peregrinações

das caravelas e dos emissários

de El Rei de Portugal e dos Algarves

e dos aventureiros dos guerreiros

e de outros perigosos afazeres

do vate maior supremo lusitano

salvando das águas turbulentas

resgatando do naufrágio e do olvido

as páginas manuscritas d´Os Lusíadas

e as suas louvações da saga heróica

da Expansão Marítima Portuguesa

delineando-se nos monumentos

erguidos robustos e inamovíveis

defronte dos templos do saber e do poder

perfilando-se soberbos e soberanos

com o escasso e renitente verde

dos largos jardins e praças

         III

Dantes havia os colonos

que alvos e algarvios

defronte das estátuas

e dos demais monumentos

de aquém e além-mar

bebiam sequiosos

o suco da cana

o sumo da terra

a espuma do mar

e raivosos

mandavam-nos recolher

o bagaço sacarino

e as vértebras de outros restos

e em sarcasmo gregário

reluziam-se ao sol

e seduziam a nua

e tisnada virgindade

dos subúrbios

                 IV

Séculos depois

do prelúdio desse destino

então e ainda de todos nós

meio-milénio passado

sobre a chegada do descobridor

à primeira ilha descoberta

para o regozijo dos colonos brancos

e para o cativeiro e o indizível

sofrimento dos povoadores negros

década e meia depois

das festas celebrativas

do achamento

das nossas primeiras ilhas

ainda alvos e lusos

sob uma lua muito minguante

muito mais gregários e raivosos

do que dantes

por mor das colunas de fumo

que dos monumentos

se despenhavam

e despedaçavam o mar

por mor das efígies de bronze

que das penedias

da cidade tombavam

os colonos

e os seus próceres islenhos

os colonos

e os seus rebentos indígenas

atravessaram o mar

velejando um ódio

ainda mais amargo

e cada vez mais absentista

                     V

E ficámos sós

cogitando

sequiosos

sobre os nós da solidão

E ficamos sós

matutando e sumarando

sobre a nossa possível essência negra

E ficamos sós

reverberando

ansiosos

os signos da desolação

no sibilino assobiar

dos alísios sobre os montes

e o oceano de todos os dias

e a sua inútil ondulação

vazia de veleiros e de marinheiros

entre o cais de São Januário

na Cidade da Praia da ilha de Santiago

e a foz do Geba na Guiné-Bissau

entre a rua da Praia de Botes

na Cidade do Mindelo da ilha de S. Vicente

e o promontório do Cabo Verde em Dakar

no extremo ocidental do Senegal

                       VI

Ainda não se tinham sarado as feridas

depois da vitória alegre e insolente

sobre os nautas negreiros os minhotos

e a última maciça invasão de gafanhotos

ainda não se tinha sarado o sonho

resgatado em flor vociferante

cravada sobre o coração cansado

e os corpos siameses desfalecidos

da pátria africana sonhada na luta

ainda não se tinha a utopia

fenecido em cinzas da memória

ante o olhar humilhado da Cidade Velha

e a humilde e tétrica teatralidade

do seu pelourinho

já se edificavam ruínas

às portas de Madina do Boé

e resfolegantes

arrevesavam-se os ilhéus

na limpeza do rosto ruço de Sahel e bruma seca

mergulhando-o em sal atlântico e macaronésico

e depois despojando-o dos signos

do milho do búzio e do tambor

e das cores ouro-verde-rubra

da liberdade primordial desfraldada

com a estrela negra primeva

                       VII

Almas mestiças

– as nossas e as das vértebras da terra –

ansiando saudosas

a visibilidade de pontes para a Europa

corpos esfaimados viageiros incansáveis

demandando o sustento o mapa o mundo

ainda continuamos a resfolegar

dependurados deste límpido céu sem nuvens

sob o olhar terno e atento

dos nativos pastores das nossas

seculares desgraças e ansiedades

                       VIII

Naus sem rumo

ao largo do negro e ingente

do africano continente

velas sonâmbulas

insones caravelas

do sonho e da dolência

naus insulares

entre mar e céu naufragadas

sem chuva e sem efígies

despojadas dos silentes

bustos dos antigos colonos

carentes de estátuas

do corpo nosso imaginado

ainda resfolegamos

na semi-solidão

e inundados

de figuras de rocha e rochedo

na sua possível pupila de bronze

cismamos a propósito

dos litígios da viuvez e da orfandade

e exultamo-nos

incólumes

entre as pedras nuas dos caminhos

amnésicos

dos pés que os pisavam

dos cadáveres que os atulhavam

das grilhetas que neles ecoavam e se arrastavam

das estiagens que consumiam as escassas plantas

que parcas à beira deles vegetavam

dos corsários e piratas

que se rejubilavam

defronte das labaredas das cidades incendiadas

dos candelabros de ouro e de outros salvados

dos portos da memória e da rapacidade da liberdade

                            IX

Nestes tempos

os cooperantes

(aqueles

que crucificados

na alucinante doçura

da morabeza e da desertificação

por cá ficaram

com a nossa morna literatura rural

aqueles

que por cá se quedaram

embrenhados

na nossa oral ossatura)

testemunham o seu encanto

pelo canto de Sema Lópi

- sorridente entre o harmónio

os ferrinhos e as suas duas Rosas -

e deliciam-se

com a cava (des)afinação de Codé di Dona

reverente ante a lição de Anton Barreto

mais irreverente do que nunca

entre a ritmada reverência

dos urbanos rebentos do funaná

e a chã sabedoria da finason de Nha Bibinha Cabral

Nho Ntoni Denti di Oro Nha Násia Gomi e Nha Balila

Nestes tempos

os cooperantes

(aqueles

que amigos do ambiente

crentes no multiculturalismo

cientes das reciprocidades devidas

ao seu muito bem remunerado altruísmo

nos acompanham

nas peregrinações pelas achadas

e se desencantam

quando as nuvens assomam

súbitas sobre o Monte Birianda

e os altos regaços enregelados

das tardes tristes de frio)

ornamentam as salas de estar

e os quartos de dormir

com esteiras tecidas pelos artesãos de Sedeguma

com panos de terra e com outras texturas e tessituras

de algodão restaurados por Nho Damásio

e com as bonitas colchas de lã de carneiro

e com outros multicoloridos tecidos cerzidos

denominados calabedotches e outras

artes manufactureiras de Nho Griga

armazenam água fresca em potes de Fonte Lima

cobrem as mesas com tecidos bordados na ilha Brava

comem cachupa jagacida torresmo e feijão congo

apreciam moreia peixe frito e churrasco de pombos

enamoram-se das criaturas nativas dos seus dread-locks

das suas rascas idiossincrasias rasta dos seus

pés dançarinos dos seus torsos bailarinos

e das suas mãos finas massagistas e desempregadas

avessas à rotina de ofícios alienantes e mal-pagos

falam a língua da terra dançam o trau e o colá sanjon

amarram o lenço à moda das mulheres de Chã das Caldeiras

envolvem as suladas à volta dos ombros vaidosos

trazem pendurados ao pescoço o rosário e a cruz dos Rabelados

requebram as ancas brancas frenéticas e lascivas na dança do torno

embalam-se com a dolência lírica das mornas do mar azul

maravilhavam-se com os violinos de Travadinha

Nho Kzick Malaquias e os dois Rauis (o da Brava

e o do Fogo aportado na Ribeira da Barca)

bebem ponche de coco de púcaros da Boavista

saboreiam água de coco de recipientes

de barro polido pelas mãos oleiras de gentes

radicadas nas casas de Atrás dos Montes

degustam aguardente genuína de cana-de-açúcar

de garrafas de barro moldados por Tito Lívio

e pelos artesãos de São Domingos de Santiago

evadem-se nos sabores etílicos adocicados

de ponche de mel servidos em vasilhames

em cerâmica vitrificada do Atelier-Mar

deslumbram-se com os harmónios de Minó di Mamá

e cativam-se com o esplendor incandescente

obviamente ardente das erupções do vulcão do Fogo

                           X

Nestes tempos

os turistas

(aqueles

que deslumbrados

com a azul nudez do mar

só conhecem o calmo vagar

das nuvens vogando brancas

ante a viagem dos olhos)

ancoram-se nas areias

das praias de Chaves e de Santa Maria

e acocorados nos areais

da amarela cintura da terra

semicerram os olhos

sob os aclamados sóis

da Boavista do Sal e do Maio

e se houver tempo e transporte

da Baía das Gatas da Lajinha do Tarrafal de Santiago

da Quebra-Canela de Escuraletes e da Praia-Baixo)

extasiam-se com o atónito olhar

dos apanhadores de lagosta dos pescadores de atum

dos garimpeiros de sal dos pastores de cabras

deambulando pelos prados e pelas villas do Lácio

sonhando com os trigais com os olivais

com os portais das imponentes catedrais

dos postais enviados pelas suas mães-de-filhos

servindo sob os inclementes tempos

da criadagem e da imigração

Nestes tempos

os turistas

(aqueles

que obcecados

com os menus completos

dos complexos hoteleiros

só muito esporadicamente

se encontram com o djiguilangui

com os precipícios insulares

com as íngremes veredas

e o demais e usual e característico

relevo das ilhas montanhosas

com a flor de lys e o típico

e entranhado lixo da cidade)

consumam a tardia vendetta

do traficante de estórias e de rotas marítimas

o navegador veneziano Alvise Cadamosto

sobre os navegadores portugueses

Diogo Gomes e Diogo Afonso

e reiteram o fratricida desdém

em relação ao genovês António da Noli

e aos perfis indiferentes

dos declarados descobridores oficiais

das ilhas setentrionais orientais e meridionais

de olhar fixo sobre o Atlântico

e de costas voltadas para a ilha e as cidades

que verdianas os homenageiam

e de sobrolho franzido para a ilha e as cidades

que badias solícitas e apressadas

enviam pedreiros marceneiros e alegados arruaceiros

para as ilhas onde proliferam a cabra o sal

o gado asinino e o imaginado caraculo

para a construção de aldeamentos turísticos

resorts maravilhados áridos campos de golfe

e outros lugares de lazer e recreação

reservando-se para si a camaradagem

dos multifacetados e pouco amados Mandjacos

das rabidantes transnacionais e de outras mulheres

convertidas à sedentariedade conjugal das mercearias

dos ex-serviçais das ilhas do Golfo da Guiné

e de outros lugares do Sul-Abaixo

e seus descendentes equatoriais cansados

do estatuto de Tongas e do excesso

de chuva e de verde penúria

e por vezes dos demais oficiantes

dos inúmeros e muito solicitados trabalhos manuais

tais os calceteiros de Santo Antão os carpinteiros do Fogo

os pintores de San Nicolau os barbeiros da Brava

os canalizadores de São Vicente os merceeiros do Maio

as varredeiras de Santa Cruz as lavadeiras da Povoação Velha

as cabeleireiras da Assomada os electricistas da Ribeira da Bote

os muito raros pescadores de Santa Luzia e dos Ilhéus Desertos

nos andaimes nas tabernas nas esquinas nos bancos de ori

nas bancas do desenrascanço nas mesas das confabulações

da confidencialidade da bisca da facada da quatinha do trinta-e-um

do sete-e-meio na sorte e no azar das rodas da inimizade

e dos jogos da batota nos balcões dos botequins

nos rumores nos boatos nas riolas e nas confidências

em decrépitas barracas alongando-se à beira das praias

longe das esquadras da polícia das povoações da civilidade

e do orgulhoso recato das populações indígenas da ilha

e dos seus provedores de papel selado em riste

às portas das conservatórias de registo predial

das emudecidas ruínas dos prédios seculares

das réstias das profecias de Nho Naxo

(hão-de vir tempos

em que nem para remédio

se encontrará a urina do branco)

dos resquícios do sonho de amanhã de António Nunes

das suas leiras de terra que deveriam ter sido nossas

dos frutos do nosso suor das filhas do nosso esforço

que por amor à terra almejamos ainda serão nossas

               XI

Nestes tempos

os estrangeiros

(aqueles que investem

nas nossas almas híbridas

e na sua incólume morabeza

na sua fiável amorabilidade

na sua fatal cordialidade

e nos amamentam

com a sua chuva colorida

metálica e cosmopolita)

disputam-nos e aos pétreos

Adão e Eva do Pico de António

a génese da ilha e do banho

baptismal nestas plagas

e declaram-se primogénitos

e legítimos donos da distância

que vai da ourela do mar

ao cume do monte mais alto

e do suor que a História

durante tantos séculos

fez escorrer nestas ilhas

e agora nus edénicos e hedónicos

(quase adâmicos)

se transfiguram

em corpos bronzeados

dourando-se sob o sol

e os ridentes céus do Sahel Insular

                       XII

Cá vamos pois

excêntricos e oceânicos

filhos pródigos bailando ao vento

criaturas bastardas açoitadas pelos tempos

e pelos temporais das encruzilhadas

de oceanos e continentes

crioulos afro-latinos recolhidos

no recôndito e prodigioso cerne do harmatão

Cá vamos pois

órfãos acolhidos pelos tempos da mudança

tremeluzindo sobre a atroz ausência

do útero continental primordial

e da sua flor tricolor primeva

e a enfática premência da mãe-terra

e da sua omnipresente placenta

embebida da azul ondulação

do mar navegante das rotas

da Europa e das Américas

Cá vamos pois

devidamente nativizados

com as azuis e pressagas

profecias de Nho Naxo

tremeluzindo com as rotas incertas

do mar caribe do Atlântico

das novas cores da bandeira

e dos avatares europeus

e das jangadas de pedra

suas almejadas irmãs antilhanas

Cá vamos pois

cada vez mais cientes

e devidamente enraizados

nas famigeradas ambivalências

incrustadas sobre as vértebras soberanas

de pequeno povo crioulo

descendente dos povoadores afro-negros

deportados da terra firme vizinha

desterrados e sedimentados no meio do mar

e nas antiquíssimas ambiguidades

incrustadas sobre a fronte bastarda

de pequeno povo mestiço

descendente dos colonizadores europeus

à cata dos prodígios do prestígio e da riqueza

em liça esgrimindo pelo engrandecimento

do nobre povo da nação valente imortal

dessas ambivalências e ambiguidades

tempestivamente assinaladas

na insólita coabitação

entre os heróicos nomes negro-africanos

de liceus aeroportos e salões nobres

de escolas secundárias e palácios de governo

e a memória dos seus nomes coloniais

e o ressurgimento dos velhos nomes imperiais

nos muitos e súbitos signos

nos muitos e ressabiados sinais

de revanchismo e saudosismo coloniais

despojando os ecos dos montes

esvaziando as artérias das urbes

das muitas entoações e das muitas ressonâncias

dos plúrimos e múltiplos nomes de Amílcar Cabral

inundando as capitalinas ruas da cidade da Praia

dos conterrâneos nomes dos Heróis de Mucaba

e de outros soterrados heróis coloniais

da expansão do império da fé cristã e ocidental

e do mundo colonial de odor luso-tropical

que o português criou ou inventou

dessas ambivalências e ambiguidades

devidamente consagradas

nos muitos e visíveis prenúncios

da multissecular subserviência

erigidos nas estátuas ressurrectas

recuperadas dos escombros da memória

de Diogo Gomes de Diogo Afonso

e dos demais veros ou falsos descobridores

e dos demais rememorados governadores

do arquipélago do Cabo Verde

depois transmutado em arquipélago

da fome da miséria e da penúria

e dos seus ilustres e letrados émulos islenhos

                       XIII

Eis-nos pois

ubíquos e aglutinantes

concêntricos no ralo ventre do pão e do suão

palmilhando as décadas superando os séculos

atravessando os fins e os inícios dos milénios

em tempos pretéritos de outrora

sempre prostrados

resignados todavia subsistentes

ante o estatuto de abandonados

pela incúria colonial portuguesa

no isolamento e na imensidade

da azul nudez do mar-oceano

em tempos mais recentes

nos tempos hodiernos de agora

sempre postados

esperançosos e alerta

nas rotas dos oceanos e continentes

nos interstícios dos ventos dominantes

com o sol e o suor

e as suas sombras

sobre os ombros

e as suas certeiras e sombrias aparições

e as suas incontinentes expressões

derramando-se sobre as espáduas insulares

do Sotavento e do Barlavento nossos

Eis-nos pois

finalmente reconciliados

com a História toda e completa

repleta das miragens e alucinações

do povo das ilhas e diásporas

Eis-nos pois

plenos inteiros e verticais

nas nossas muitas fisionomias

de nação crioula soberana

nas nossas muitas dilacerações

de pequeno país africano insular

depois devidamente testemunhadas

nos muitos sinais de resistência

erigidos nas novas e firmes estátuas

de Abel Djassi e dos outros nomes

de Amílcar Cabral do seu indelével Estatuto

do mais heróico de todos os Mortos Imortais

de mais que sonante e amado Herói do Povo

de Demiurgo da Nação Africana Forjada na Luta

e de Pai-Fundador da Nacionalidade

da Pátria Africana do Meio do Mar

nos muitos congeminados bustos

de Matias Pereira Domingos Lopes

e de outros Valentes de Julangue

de Lázaro Gervásio Narciso e Ambrósio

e das populações alevantadas nos Engenhos e na Achada Falcão

e das destemidas populações do extinto Concelho do Paúl

e das aguerridas mulheres de Ribeirão Manuel

depois devidamente celebrados

nos muitos símbolos da identidade nossa nativa

disseminados pelos nomes de escolas de hospitais

de liceus de universidades de praças de ruas de avenidas

                             XIV

Eis-nos pois

enternecidos com a insular melancolia

da morna da mazurca das rezas das tristes

toadas do colá-boi do funaná-samba

(também chamado funaná lento

pelos Praienses pelos Sanvicentinos

e por outros recém-convertidos

à música dos Badios de Fora)

Eis-nos pois

deslumbrados com o áfrico frenesim do batuco

da talaia-baxo da coladera da colexa do brial do pilão

dos ritmos do colá sanjon do carnaval da tabanca

incrustados na imensidão das ilhas e diásporas

deambulando entre o Cacém e a memória de Cassanaia

Eis-nos pois

embevecidos pelo korá pelo balafon e pelo Alcorão

esquivos à hostilidade dos guardiães das conta-correntes

das lojas chinesas do comércio tradicional das sucupiras

dos minimercados e dos centros comerciais

efusivamente saudados e festejados

pela apressada e caótica modernidade das urbes

Eis-nos pois

envergonhados latejando às portas dos mercados

entre as mãos negras muçulmanas animistas

pagãs clandestinas mal -vindas

dos recém-arribados Mandjacos

postados quais estátuas à amnésia

erigidas ante os despojos ambulantes

dos escravos finados em Alcatrazes e San Filipe

prosternados sobre o sagrado e térreo chão

da Grande Mesquita de Tira-Chapéu

Eis-nos pois

Badios e Sampadjudos

todos muito cools e impostores

ufanos de bazófia e egolatria

alegremente convictos da necessidade

de preservação das nossas seculares

e muito peculiares idiossincrasias

mormente das singularidades de cada ilha

de cada cidade de cada vila de cada aldeia

de cada povoação de cada achada de cada fajã

de cada cutelo de cada ribeira de cada ruela

de cada esquina de cada pardieiro abandonado

sem receio algum das advenientes (afinal triviais) rivalidades

e sobretudo das cíclicas e sadias altercações tribais

entre os seus artistas deputados autarcas arruaceiros

tribunos de rua doentes mentais e jogadores de futebol

sem todavia (assevera o Mito plástico e cartoonista)

descurar a necessidade da multiplicação

da híbrida urbana e pan-arquipelágica descendência

de pós-coloniais e muito perspicazes Sampadios

e da igualmente híbrida e pan-crioula corte de poetusas

sempre desassombradas na sua agitada miscelânea

de feminismo socialismo patriotismo e palavroso radicalismo

docemente engajadas com a incansável sensualidade

dos seus corpos esbeltos bronzeados e emancipados

sempre terra-longinquamente comprometidas

com os habituais versos telúricos e choralutistas

dilacerados pelo engasgamento hídrico e pela comiseração social…

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