EU, O JOSÉ
Cultura

EU, O JOSÉ

CENA I

NHAMINA, JOSÉ E LUIZINHA

NHAMINA (trajada de viúva) - Depois de amanhã faz um ano que o corpo do teu pai foi dado à terra. (Passa a mão pelos olhos) Ele foi enterrado dia 24 de Julho, véspera de Nhu Santiago.

JOSÉ - Era Sábado… estávamos a preparar para a festa.

Limpa os olhos com a ponta da camisa.

NHAMINA - Sábado de Nossa Senhora… dia da feira de Santa Catarina. Dia que nunca mais vou esquecer enquanto tenho fôlego.

JOSÉ - Havia muito movimento aqui na zona. As casas do Claudino, do Raulinho, do Quimquim Cacho Torto e do Luciano Brazão estavam apinhadas de gente à espera que lhes fazem roupas e sapatos novos, que lhes cortem o cabelo ou para comprarem carne para a festa.

NHAMINA - Estávamos combinados ir a Assomada no sábado seguinte comprar milho e feijão para virmos correr o lugar.

JOSÉ - Papai morreu de repente! Sem febre nem dor de cabeça… não disse "ui" nem "uai".

NHAMINA - Ele estava pronto. Acabou de jantar, foi amarrar o cabrito e o bezerro, preparou o seu rapé e encheu no tabaqueiro, rezámos o terço e ele foi para a cama deitar… não acordou.

JOSÉ - Deve ter apanhado alguma atacação, ou indigestão enquanto dormia.

NHAMINA - Atacação… talvez. Mas indigestão… não creio. Ele tinha jantado tarde cedo! O teu pai era um homem muito manso. Dizem que os mansos morrem cedo… se calhar é verdade.

JOSÉ - Então é melhor sermos maus!

NHAMINA - Os mansos são chamados cedo para o Céu. Deus não os deixa aqui a sofrer. É por isso que o teu pai morreu rápido. Se ele fosse mau, padecia em cima da cama, penitenciava e pagava a sua culpa.

JOSÉ - Também ele deve estar na glória entre os Anjos e Santos!

NHAMINA - Ao lado do Nosso Senhor, juntamente com Jesus Cristo e Virgem Maria, a rezar e pedir por nós.

JOSÉ - O pai sempre gostava de rezar. Não faltava a missa nem um domingo.

NHAMINA - O seu terço então!… Por isso é que o Espírito dele deve estar na glória. Só os espíritos de quem fez boas obras na terra é que vão para o céu.

JOSÉ - E quem fez maldade vai prestar contas ao Diabo no inferno.

NHAMINA - É verdade. O nosso corpo será enterrado porque ele é carne… ele é pecador. Mas a nossa alma vai prestar contas: no céu ou no inferno.

JOSÉ - Por isso que eu faço tudo direito. Não faço nada errado, para eu poder ir ao céu quando morrer.

NHAMINA - Peça a Deus que te ajude, meu filho. O fogo do inferno é muito quente!

JOSÉ - Eu não quero ir para o inferno. Não quero que o Diabo vá atiçar lume na minha alma.

NHAMINA - Para irmos ao céu temos que fazer muito boas obras.

JOSÉ - Quando eu morrer quero que Deus faça a minha cama junto a do pai.

NHAMINA (levanta a saia e tira uma moeda do bolso) - Toma este dinheiro e vai marcar uma missa em Santiago à alma do teu pai. Passa também por uma taberna e compra vela, bolacha, açúcar, e café para o repasto no dia da missa.

José mete o dinheiro no bolso, apanha uma caneca de água e lava os pés, os braços e a cara despede-se da mãe e sai.

JOSÉ - Adeus, mãe.

NHAMINA - Deus te acompanhe, Santa Virgem te proteja. (Nhamina vai para dentro, Luisinha chega e vai descarregar, no quintal, um feixe de lenha) Luisinha, corre rápido e diz ao José para passar pelo Sr. Administrador e dizer-lhe para o incluir na lista de ir para Angola. Para lhe dizer que já vai fazer 16 anos, que o vosso pai, que era o sustento da casa, Deus tomou-o… (Limpa os olhos) depois de amanhã faz um ano.

LUIZINHA (sai a correr e a chamar) - JOSÉ! JOSÉ, UHUUU! (José para e vira a cara) Mamã disse para tu passares pelo Sr. Administrador e dizer-lhe para assentar o teu nome na lista para ires a Angola. Para lhe dizeres que já vais fazer 16 anos e que o papá que nos sustentava morreu, já tem um ano.

José põe-se novamente a caminho e Luisinha volta para casa.

JOSÉ [V. O.] - “Eu, o José, ainda sou pequenino, mas tenho fé em Deus e esperança em Cristo, que me hão-de dar vida e saúde, para quando eu for grande, me sentar na soleira da minha porta, debaixo da sombra do meu teto, comer dos proventos do meu trabalho, da força dos meus braços e do suor da minha testa”.

Ajoelha-se, eleva a mão para o céu e pede a Deus com devoção.

JOSÉ - Oh meu Deus do céu, perdi o meu pai aos 15 anos de idade, a minha mãe já me mandou falar com o Sr. Administrador para me incluir na lista de contratados para Angola… (Limpa as lágrimas) Mande-nos chuva por favor, não me deixe separar da minha mãe e da minha irmã pequenina.

Põe-se novamente a caminho.


CENA II

NHAMINA E JOSÉ

José chega a casa já de noitinha, todo encharcado. Ajoelha diante da imagem de Santo António e reza.

NHAMINA (entra) - O que é isso, meu filho? Todo encharcado desta maneira?

JOSÉ - Quando sai para vir, já estava a escurecer. De repente fez um temporal e apanhei com uma valente chuvarada!

NHAMINA - Felizmente Deus é grande, acompanhou-te até chegares a casa. Agora vai despir a camisa e põe sobre as pedras do fogão para enxotar.

JOSÉ - Também, quando pus os pés dentro de casa, a primeira coisa que fiz, foi rezar e agradecer-Lhe.

NHAMINA - Isso mesmo. Deus não gosta de quem é ingrato. De quem não lhe reconhece. É por isso que se costuma dizer: “Assim na terra como no céu”.

JOSÉ - Então quando eu morrer vou-me encharcar assim também?

NHAMINA - Não, José. “Assim na terra como no céu”, quer dizer que se fizeres bem na terra, Deus te recompensará no céu quando morreres. Se fizeres maldade, Satanás te fará maldade no inferno.

JOSÉ – Eu vou para o Céu.

NHAMINA - É preciso que rezes muito e peças a Deus para te livrar das tentações do Demónio.

JOSÉ - Se Demónio tentar possuir-me, esconjuro-o e mando-o para o raio que o parta.

NHAMINA - Marcaste a missa ao teu pai?

JOSÉ - Marquei. E também falei com o Sr. Administrador.

NHAMINA - O que é que o Sr. Administrador te disse?

JOSÉ - Que já não há vaga.

NHAMINA - Já não há vaga, meu Deus?! Então quer dizer que remédio é fazer cruz na boca e dormir?

JOSÉ - Estava lá muita gente à espera para se inscrever. Muitos não conseguiram vaga.

NHAMINA - Meu Deus! Já não há vaga? Devia ter-te mandado há mais tempo.

JOSÉ - E agora… o que é que vamos fazer?

NHAMINA - Meu filho, a solução é sentar e confortarmo-nos. Embora, confortar-se sem nada, não dá para criar os filhos.

Senta-se e põe a mão no queixo.

JOSÉ - Deus há-de nos ajudar para que a chuva não pare de cair. Com mais três chuvadas seguidas, iguais a esta… não precisamos de sair da nossa terra para nenhuma outra. Mesmo que o milho e o feijão não forem abundantes.

NHAMINA - Isto é verdade. Se Deus não faltar com a sua chuva, engordamos porcos, criámos animais… as hortaliças baixam de preço… o petróleo, a banha e o açúcar baixam de preço… a situação se resolverá.

JOSÉ - Mas é preciso que a chuva não pare de cair.

NHAMINA - Deus há-de olhar para seus filhos. Maldade e castigo estão a comandar o mundo, mas Deus há-de nos perdoar.

JOSÉ - Se a chuva voltar a cair amanhã como caiu hoje, marco a monda para a próxima semana.

NHAMINA - Com esta chuva que caiu hoje, as sementes nascerão. Eu e a Luisinha vamos correr o lugar e tu juntas as mãos com os colegas. Quando eu acabar de correr o lugar, nos dias em que não temos monda, vou vender no pelourinho.

JOSÉ – Eu vou comprar as verduras para você ir vender.

NHAMINA - Depois da missa do teu pai, dou-te vinte e cinco escudos, vais comprar hortaliças em Jaracunda.

JOSÉ – E vamo-nos desenrascando conforme Deus quiser.

NHAMINA - Tu juntas as mãos com os colegas, a Luisinha cuida da casa, eu procuro algum tostão para comprarmos temperos, petróleo, café e açúcar.

JOSÉ – Acorde-me antes de amanhecer. Antes que o sol abrase como hoje.

NHAMINA - Deixa-me trazer-te o jantar e vais deitar. (Traz-lhe um prato de cachupa) Não tem peixe, mas não ligues. Nhabinha passou com um balaio de peixe, mas, tirando estes vinte e cinco escudos, só tinha mais dois e quinhentos… reservados para comprar sal, petróleo, açúcar, café e temperos até o fim do mês quando a galinha levantar do choco e começar a pôr, para eu vender ovos.

JOSÉ - Mesmo assim está gostosa. Cachupa sem pinto é que não sabe bem.

NHAMINA - Se tivesse um rabinho de peixe… ficava mais gostosa. Mas José, cachupa amolecida também… mesmo que tenha feijão!

JOSÉ - Também só quem é descuidado é que deixa cachupa amolecer. O que é que andam a fazer para não atiçarem lume ao fogão?

NHAMINA (da um sorriso) - Pensei que não tinha cá feijão, fui revirar a despensa e encontrei este bocado de sapatinha. (Aperta o lenço e bebe uma caneca de água) A Luisinha já demudou as cabras e foi assistir ao terço em casa da sua madrinha Liminha. Eu também vou dar farelo e água suja aos porcos e vou lá tresnoitar um pouco. Quando o falecido morreu, durante sete dias que estivemos com a esteira no chão, ela não arredou daqui os pés.

JOSÉ - Os filhos dela estavam cá todos, a ajudar a cochir, a tirar o milho da água e pilar.

NHAMINA - E esse então que morreu… não foi ele que rachou toda a lenha com que cozinhamos?!

JOSÉ - Você pode ir. Quando eu acabar de comer vou prender os cabritos e bezerros antes de eu ir pra cama.

NHAMINA - Não te esqueças de apagar o candeeiro para o petróleo não secar.

Com a boca cheia, José assente com a cabeça. Nhamina faz o sinal da cruz com a cara virada para Santo António e sai.


CENA III

LÁLA E NHU FIDJINHO

No consultório do Curandeiro Nhu Fidjinho, com todos os preparativos necessários.

LÁLA - Quero que me ajude a resolver um problema.

NHU FIDJINHO - Qual problema?

LÁLA - Estou apaixonado por uma mulher, quero que me arranje algum feitiço que a ponha louca por mim.

NHU FIDJINHO - Tens que trazer duas coisas íntimas dela. Uma tem que ser fotografia.

LÁLA - Desconfiei que me ia pedir a fotografia, roubei-lhe uma e trouxe. (Tira do bolso de casaco) Toma.

NHU FIDJINHO - A fotografia já temos. Agora falta: ou um pedaço de unha dela, ou um pouco do cabelo… mas se conseguires cabelo dos outros sítios, como do sovaco ou daquele outro sítio mais a baixo…

LÁLA (arregala os olhos) – Oh, pá! … Isso é difícil conseguir. Talvez fio do cabelo eu possa conseguir. Mas tenho que espreitar quando ela se penteia… e tentar.

NHU FIDJINHO - Tu é que sabes como é que fazes.

LÁLA - Não pode ser outra coisa?

NHU FIDJINHO - Pode ser uma calcinha velha ou um soutien.

LÁLA - Calcinha também trouxe uma. Roubei-a no estendal. (Tira uma calcinha do bolso e dá-lha) Está aqui.

NHU FIDJINHO (deita as cartas e mexe com o beiço como se está a rezar) - Há quanto tempo é que se conhecem?

LÁLA - Há bastante tempo!

NHU FIDJINHO - E há quanto tempo gostas dela?

LÁLA - Depois da morte do meu compadre… depois que ela diminuiu o luto.

NHU FIDJINHO - Depois da morte do teu compadre?! Qual compadre?

LÁLA - O marido dela.

NHU FIDJINHO - O marido dela batizou-te um filho?

LÁLA - Eu é que lhes batizei um filho, o José.

NHU FIDJINHO - Então vocês são compadres?!

LÁLA - Sim. Mas eu estou tão apaixonado que não consigo dormir.

NHU FIDJINHO - Costumas dizer-lhe que gostas dela?

LÁLA - Nunca. Não sinto coragem. Ela é muito séria, e gostava muito do seu marido. Por isso que vim ter consigo, para ver se há alguma coisa que se possa fazer para ela ficar apaixonada por mim.

NHU FIDJINHO - Ela vai a missa?

LÁLA - Todos os Domingos. E às vezes vai também ao Sábado.

NHU FIDJINHO - Usa rosário… ou alguma coisa no pescoço que leve cruz?

LÁLA - Creio que nem quando vai para a cama, ela tira o seu rosário de osso e a sua cruz de vime do pescoço. Usa-os sempre. Como se ela é Rebelada.

NHU FIDJINHO - Sendo assim, não podemos fazer nada. Nada se pode fazer contra as viúvas. Principalmente as que cumprem lei do mandamento… que não faltam a missa e que nunca andam sem uma cruz ou um rosário!

LÁLA - Então não há nada a fazer?

NHU FIDJINHO - Não há feitiço que lhe afete. O rosário que ela não tira do pescoço, livra-lhe de todo o mal deste mundo.

LÁLA - Nem se eu tentar retirar-lhe o rosário do pescoço?…

NHU FIDJINHO - E como irás conseguir?

LÁLA - Finjo que estou bêbado, passo perto dela e simulo tropeçar-me. Agarro-lhe no rosário e fá-lo partir.

NHU FIDJINHO - Seja como for! Ela tem outra coisa que a protege. Ela vai a missa, confessa e cumpre os mandamentos. Ela anda sempre com Deus no coração. Bruxaria só se pega nas pessoas que não acreditam em Deus… que vão à missa apenas para se darem nas vistas.

LÁLA - Bom… a minha comadre por acaso!…

NHU FIDJINHO - No entanto, há uma solução que poderás tentar.

LÁLA - Qual?

NHU FIDJINHO - Lembras-te ainda bem do teu compadre?

LÁLA - Como se ele estivesse aqui e agora a minha frente!

NHU FIDJINHO - Lembras como ele falava?

LÁLA - O meu compadre?! Desde quando ele era vivo, eu imitava a voz dele e ninguém descobria que não era ele.

NHU FIDJINHO - Então pode ser que resolva.

LÁLA (ansioso) - Como?

NHU FIDJINHO - Como disseste que a tua comadre gostava muito do seu marido, acho que não há nada que ela não faça por ele.

LÁLA - Não há nada que a minha comadre não seja capaz de fazer pelo meu compadre. Quem a quiser ver zangada, fala-lhe mal do defunto!

NHU FIDJINHO - Quando for meia-noite, ficas de baixo de sua janela e imitas a voz do teu compadre. Finges que estás a gemer e falas com ela como se fosses o teu compadre. Diz-lhe que ainda não viste a face de Deus por causa dela que deixaste desamparada. Que Deus mandou-te pedir-lhe para ela namorar com o vosso compadre, o único homem capaz de tomar conta dela e… (pergunta ao Lála) eles têm filhos?

LÁLA – Têm sim. José e Luisinha.

NHU FIDJINHO - O único homem capaz de tomar conta dela e dos vossos filhos, José e Luisinha.

LÁLA - Vou lá já esta noite.

NHU FIDJINHO - Se fizeres assim… acredito que não falhará.

LÁLA - Muito obrigado. Quanto lhe devo?

NHU FIDJINHO - Pelas cartas que te deitei pagas vinte escudos. Pela consulta pagas trinta e, se conseguires, vens pagar-me mais setenta escudos e trazes-me um bode capado.

LÁLA (tira dinheiro e paga) - Toma. (Guarda a carteira) Tenho a certeza de que brevemente arrastarei um bode capado e trago-lho juntamente com os setenta escudos. E oferecer-lhe-ei, ainda, um pé de mandioca caianinha.

Despedem-se com um aperto de mãos.

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