A peça 'Coração de Lava' foi baseada a partir do homónimo livro de José Luís Tavares e Duarte Belo, e ilustra vários instantâneos, etapas e momentos das gentes de Txan das Caldeiras, na ilha do Fogo, nos dias em que antecederam e depois da última erupção vulcânica, e a tragédia dos dias que se seguiram. Uma iniciativa da fundação Calouste Gulbenkian que contou com o apoio do Centro Cultural Português da Praia – CCP.
No princípio tudo era fogo
As cenas são um tratado sobre o enigma do amanhã e do destino, a condição humana, apelando mais para a razão do que emoções. São momentos de muita aflição, perseveração e entreajuda realçando o nosso espirito do «djunta mô» que perante a eminência de catástrofe sempre prevaleceu presente, sobreviveu no ontem, no hoje e sobrevirá no amanhã.
São estes ingredientes que a coreografia e dramaturgia contemporânea de Mano Preto faz evidenciar numa pura matriz Cabo-verdiana, cuja linguagem corporal nota-se as formas simplificadas dos dançarinos que ocupam todo palco, em padrão rítmico de movimentos expressivos sincronizados. Não há movimentos abstratos, ao contrário, a chemestry, (química) a técnica e a precisão dos bailarinos de Raiz de Polon, - Mano Preto, Rosy Timas e Edu Guedes - nos faz experimentar que de facto no princípio tudo era fogo.
Sob a direção musical do maestro Tó Tavares -Tottavares Fortes, distingue-se o calibre do músico Djoy Amado, a possante voz de Rhaya Monteiro, o timbre serenatado de Raquel Monteiro, e o tenor agudo de Nhofe Fibra, que fazem com que o dedilhar dos acordes ao vivo dos dois guitarristas (Tó Tavares e Djoy Amado) entrelaçam-se, trançam em lavas de som que enroupem em melodias cuja tonalidades se misturam entre o talaia baxo, e um bolero kriol, entre o fogo e as cinzas, entre o tumulto e o stribilim, e quiçá entre a morna e a coladeira, de ritmo pausado da qual a dança e o som guia-nos por entre os labirintos das incertezas da vida que, no entanto, libertam aquela sensação de esperança no amanhã que hoje lacrimejamos.
Acredito que estamos perante um magno Opus que ficará na memória da plateia que de pé exaltou o CCP, nos dois dias 02 e 03 de fevereiro, e que durante os 35 minutos do Coração de Lava ocasionalmente fizeram chover os aplausos que não eram para estimular os artistas mas sim de satisfação pessoal com a exibição. E não era para menos. A energia contida em meio de ação é passada ao espetador por meio de contornos sinuosos de gestos que não nos deixa piscar o olho, pois os movimentos fugazes fazem com que o olhar mantenha-se concentrado na obra intencionalmente simples e rica em expressões artísticas.
No final tudo vira cinzas e pó
Pudera, Coração de Lava é nada mais, nada menos a prova que a magia do enlace de diferente formas de arte, como a dança, poesia, música, e o teatro fazem efervescer como fogo, que derrete e consome a pedra, a esperança, os café e os padjigal, onde os olhos apavorados e pasmados mergulham no sono da desgraça, e a tragédia da natureza consagra-se numa das mais belas peças de arte que nos leva a explodir de emoções por dentro, como o vulcão que faz vibrar, chorar, conquistar, porque acima de tudo é preciso saber escutar o renascer e o palpitar da terra, porque no final cada um de nós temos o destino traçado imprescindivelmente nas cinzas. Afinal todos nos somos strumos para a terra.
Ficha Técnica
Coreografia, direcção artística e dramaturgia
Mano Preto
Direcção Musical
Tó Tavares
Intérpretes
Edu Guedes
Djoy Amado
Nhofe Fibra
Mano Preto
Rahya Monteiro
Raquel Monteiro
Rosy Timas
To Tavares
Fotografia
Helder Paz Monteiro
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