1. Uma das formas mais eficazes para avaliarmos uma liderança está em analisar a maneira como a instituição liderada perdura após o seu líder cessar funções. O que, no limite, inclui a própria possibilidade de desaparecimento dessa instituição, após o afastamento - voluntário ou forçado - desse líder. Costuma-se recomendar que um líder deva preparar a instituição que lidera a ponto de ele mesmo passar a ser um indivíduo dispensável a essa organização. É à luz deste princípio que Amílcar Cabral ganhou para sempre o estatuto de um líder extraordinário. Construiu o processo de libertação de Guiné-Bissau e Cabo Verde de tal forma que o alcançar desse objetivo de luta, a independência nacional – como se veio a comprovar – é um resultado que acaba por ultrapassar a própria existência física de Cabral. É que a concretização da independência ocorre dois anos e cinco meses depois do seu assassinato! Falhou o plano, seguramente, considerado infalível: eliminar o líder como forma de ditar o fim da luta pela independência nacional dessas duas, então, colónias de Portugal;
2. Em Conacri, há 46 anos, quando ocorre a fatídica noite de sábado, de 20 de janeiro de 1973, as ideias de Amílcar Cabral; o seu pensamento; e a sua forma de ver o mundo colonial de então; já lhe tinham ultrapassado, tendo-se multiplicados na alma e nas mentes de cada um dos combatentes – qual semente que germina e cresce, cada vez mais forte – a ponto de estar concluída a tomada de consciência de todos, tornando-se, assim, absolutamente ineficaz travar a luta através da eliminação do líder. Afinal, este já se tinha propagado em cada um, através das suas ideias, simultaneamente, revolucionárias e de base para a construção de uma nova Nação, constituída por homens livres da opressão colonial. Sim, nestes tempos de manipulações e redefinições de conceitos, em que nem escapa a noção de liberdade, é preciso lembrar sempre que Cabo Verde - em primeiro lugar - teve de ser liberto da sua situação de colónia, de cidadão de segunda!
3. Entre as várias ideias e reflexões de Amílcar Cabral – sem nenhuma pretensão de qualificar ou estabelecer qualquer hierarquia entre as mesmas – há uma que se destaca de um modo muito particular. É a máxima que, ao mesmo tempo, indica e ordena, sugere e vaticina, a única saída possível para uma Nação inteira. É quando Cabral afirma: “aprender, aprender sempre; pensar com as nossas próprias cabeças”. É nesta máxima que Cabral combina a total abertura em ouvir os outros com a imperiosa necessidade de, a partir dos saberes dos outros, construirmos os nossos próprios saberes. É um partir da humildade da abertura ao conhecimento dos outros para assumir a autonomia para a produção de um novo conhecimento do e para o país!
4. Este é o pensamento mais profundo alguma vez elaborado sobre o que é ser caboverdeano. Cria todas as possibilidades de ousadia. É uma proposta de partida, um ponto de arranque para um Estado que estaria a partir do nada, sem indústria e sem escolas superiores, o que equivale a dizer, sem centros formais de produção material, nem intelectual, sem fábricas, nem universidades. Assim, sob o risco imediato de importação de tudo, ideias e produtos, comida e pensamento. Então, Amílcar Cabral lança o desafiante caminho de proceder à importação sim, mas para agir sobre o importado. Para pensar sobre o importado. Daí o pensar com as nossas próprias cabeças;
5. Passados 43 anos da independência de Cabo Verde, estamos a fazer um retrocesso em relação ao cumprir Amílcar Cabral. As universidades depois de criadas - atingindo o seu ponto máximo de existência - ainda não produziram propostas de pensamento específico para as mazelas e mitos da sociedade caboverdeana e na sua relação com o mundo. Sem invenções, nem inovações, aprofunda-se o caminho da cópia de modelos importados. O Estado, cada vez mais fraco, vendido ao desbarato em processos de privatizações ruinosos para a construção de qualquer futuro onde poderia haver capacidade de inovar e enfrentar as receitas do FMI e do Banco Mundial. Assim, afastamo-nos de cumprir Cabral e damos mostras de, enquanto país, até ainda, não termos percebido o alcance do "pensar com as nossas próprias cabeças".
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