A narrativa ocidental dos conflitos bélicos nas diferentes geografias do Globo continua a enganar o curso da história. A guerra na Ucrânia é exemplar nesse quesito, mas agora veio a público o Níger. Ninguém falou, com repúdio, dos golpes de Estado no Burkina Faso, Costa do Marfim ou Mali, mas porquê o Níger? Simples, a França perdeu protagonismo económico e militar na região (fica sem o urânio nigerino que representa 75% da sua produção energética e foi obrigada a retirar suas 5 mil tropas da região), a Rússia cresceu sua influência. Sim, o Níger está passando por um conflito interno que pode ter repercussões continentais. Países da nossa CEDEAO estão muito próximos de se envolverem numa guerra, enquanto potências europeias como França e Rússia já estão no meio do caos.
O Níger, duas vezes maior do que a França em extensão territorial, tem 25 milhões de habitantes e o terceiro pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Planeta. E não tem mar, é aquilo que em geopolítica se chama de landlock state, um país fechado que depende de vizinhos para fazer suas trocas comerciais. De repente, a capital, Niamey, passou a fazer as manchetes em todo o mundo, por causa de um golpe de estado perpetrado no dia 26 de Julho por militares que eram próximos do presidente eleito, Mohamed Bazoum.
Ora, ciclicamente e frequentemente se depõem presidentes no continente africano que deixou de ser notícia ou quando o são aparecem como notas de rodapé – aconteceu recentemente no Sudão, mas a mídia ocidental nem ligou.
Sucede que no Níger, país localizado bem no centro do Sahel, o conflito interno ganhou repercussão além-fronteiras, com alguns países vizinhos a declararem poder intervir para manter Bazoum no poder e outros a endossar apoio aos militares golpistas. Por detrás, estão duas potências mundiais, a França, seu antigo colonizador, e a Rússia, através do grupo Wagner, de Prigozhin, como relata uma análise do site foreignpolicy.com, que até menciona interesses comerciais chineses e turcos, evidenciando a cresecente ligação de Ancara com África.
Para os militares que defendiam a casa de Mohamed Bazoum, eleito democraticamente, o presidente da República só se preocupa com interesses franceses, sendo visto como marionete do governo de Paris, que continua a dar as cartas nas antigas colónias interferindo nas políticas internas dos países. No Níger, longe de defender a democracia e a boa governação, a França precisa do seu urânio que representa 75% da produção energética do país europeu.
Nada que cause espanto, a França manipula líderes dos países africanos que eram sua colónia desde sempre. Sempre que lhe dão stop eclodem conflitos armados, veja-se o caso da Guiné Conacry, Mali, Chad ou Burkina Faso. Aliás, o presidente da Turquia Recep Erdogan referiu-se a isso no sábado, 5, quando comentou sobre o golpe no Niger e os tentáculos da França sobre suas ex-colónias.
A deposição de Mohamed Bazoum pela sua guarda pessoal, liderada pelo general Abdourahamane Tchiani é, evidentemente, um protesto contra o jugo francês, razão pela qual conta com o apoio explicito dos fronteiriços Burkina Faso, Guiné Conacry e Mali (Bamako, a propósito, expulsou todas as 5 mil tropas que Paris mantinha destacados no terreno), que reagiram rápido à ameaça da Nigéria, que lidera neste momento a CEDEAO, de uma intervenção militar a favor de Bazoum.
Emmanuel Macron, amputado militarmente na zona, veio com outra estratégia: acaba de suspender a ajuda ao Burkina Faso, cujo governo surgiu por via de golpe de estado, por estar a apoiar a Junta Miltar de Abdourahamane Tchiani - os atuais projetos franceses de ajuda ao desenvolvimento para o Burkina Faso totalizam 482 milhões de euros, enquanto a ajuda orçamental prevista para 2022 ascende a 13 milhões de euros.
Ora bem, sem os soldados franceses, que estariam na região para ajudar a conter o avanço de grupos terroristas, a Junta Militar que tomou o poder ganha mais força ainda contando com a ajuda russa, através do grupo mercenário Wagner. Um dos chefes da Junta reuniu-se no fim de semana com o líder do Wagner no Mali em busca de apoio dos seus 1.500 mercenários que o grupo russo mantém destacado no Mali, vizinho do Níger.
Como se processa? Os novos donos do poder em Niamey ofereceram em troca minas de urânio que estavam nas mãos de franceses ao grupo Wagner para exploração, conseguindo com isso dinheiro para armamento, segundo revela o Le Monde.
Nessa luta de protagonismo, a França está a perder face ao avanço da Rússia, mas poderá vir a contar com os americanos, não muito bem vistos nessa parte do Globo onde perderam feio batalhas sangrentas (assista o filme Black Hawk Down, sobre a trágica derrota dos EUA na Somália).
Ao Níger, contudo, se coloca o problema da sua sobrevivência, já que, sem acesso o mar e com vizinhos inimigos as trocas comerciais, ou seja, abastecer-se será muito mais difícil caso fecharam-se-lhe as rotas terrestres.
A sua salvação será utilizar os “amigos” de circunstância – a Guiné Conacry, que tem acesso marítimo ou o atalho burkinabé (também não tem mar) até chegar a Port-Nouveau, no Benin. Só que, vendo o mapa da região e as condições infraestruturais desses países parece bem difícil estabelecer essas rotas alternativas dada a vulnerabilidade da zona e a presença de vários grupos terroristas espalhados por esse mato.
Agora, para um país que tem o terceiro pior IDH do mundo, pode ser normal sobreviver com o mínimo. Haverá milhares de refugiados para alimentar e acolher noutros países.
Enfim, os países da nossa CEDEAO estão muito próximos de se envolverem numa guerra, enquanto potências europeias como França e Rússia já estão no meio do caos.
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