Carta aberta ao PR. O silêncio das instituições e o custo da verdade
Ponto de Vista

Carta aberta ao PR. O silêncio das instituições e o custo da verdade

Quando um sistema prefere silenciar o mensageiro em vez de corrigir a mensagem, confessa a sua fragilidade moral. Cabo Verde não precisa de instituições que se protejam da verdade, mas de instituições que se alimentem dela. A coragem de quem desafia o trono não deve ser um convite ao martírio civil ou jurídico, mas o ponto de partida para uma renovação ética nacional. Em nome da diáspora cabo-verdiana e de todos os que acreditam num Estado de Direito vivo e imperfeito - porque humano - rogo a Vossa Excelência que use os poderes morais e constitucionais do seu cargo para promover a reavaliação deste caso. Não para condenar, mas para ouvir. Não para interferir, mas para iluminar.

 

Oslo, Natal de 2025

Excelentíssimo Senhor

Presidente da República de Cabo Verde

Dr. José Maria Neves,

 

Com o devido respeito pelas leis e pelas instituições da República, dirijo-me a Vossa Excelência em nome de muitos cabo-verdianos da diáspora e de amplos setores da sociedade civil que acompanham, com crescente inquietação, o caso do advogado Amadeu Oliveira.

Não escrevo movido por impulso, nem por desconsideração para com o sistema judicial cabo-verdiano. Pelo contrário: escrevo precisamente porque acredito que nenhuma democracia se sustenta sobre a ideia de um sistema infalível. A infalibilidade não é atributo de instituições humanas; é, isso sim, a máscara mais recorrente da autopreservação dos sistemas que perderam a capacidade de se ouvir a si próprios.

A leitura do livro O Inferno da Não-Justiça, de Germano Almeida, deixa uma imagem clara e inequívoca: Amadeu Oliveira encontra-se privado da liberdade em circunstâncias que levantam sérias dúvidas quanto à justiça do processo, à proporcionalidade das decisões e à motivação subjacente à sua persecução. Mais grave ainda, instala-se a perceção — interna e externamente — de que o sistema jurídico poderá estar a agir não por zelo institucional, mas por imunidade defensiva, num movimento em que a crítica é confundida com ameaça, e a denúncia com afronta pessoal.

Excelência, por diversas ocasiões ouvimos as suas declarações públicas no sentido de que o Presidente da República não deve imiscuir-se nos assuntos dos tribunais. Compreendemos a prudência dessa posição. No entanto, quando essa prudência se transforma em silêncio absoluto perante sinais persistentes de disfunção, cria-se a impressão perigosa de que existe um sistema de justiça perfeito, imune ao erro — algo que não existe em nenhuma democracia madura, em nenhum ponto do mundo.

O papel do Presidente da República não é substituir-se aos tribunais, mas garantir que as instituições funcionam quando falham, e que são escrutinadas quando perdem credibilidade. Vetar, solicitar reapreciações, promover inquéritos ou recomendar análises independentes não enfraquece o Estado de Direito — fortalece-o. Abrir um inquérito sério e transparente às denúncias feitas por Amadeu Oliveira não seria um ato de ingerência, mas um gesto de liderança ética. A credibilidade do sistema jurídico aumentaria, e Cabo Verde elevar-se-ia a uma plataforma mais alta no concerto das nações democráticas.

A História ensina-nos que os sistemas tendem a reagir com dureza àqueles que os obrigam a olhar-se ao espelho. Sócrates foi condenado à morte por “corromper a juventude” e “desafiar os deuses da cidade”, quando, na verdade, apenas ensinava a pensar. Amílcar Cabral e Thomas Sankara não foram combatidos por serem inimigos dos seus povos, mas por exporem as fragilidades dos sistemas que pretendiam reformar. Também em Cabo Verde, a visão reformista de Renato Cardoso encontrou resistência num aparelho político incapaz de aceitar a crítica como instrumento de evolução.

Amadeu Oliveira insere-se nessa mesma linhagem desconfortável. Ele não deve ser lido como inimigo da nação, mas como o seu potencial salvador institucional — aquele que, ao apontar falhas estruturais, oferece ao país a oportunidade de se regenerar. A crítica é o oxigénio da democracia; sem ela, as instituições asfixiam lentamente na sua própria autopreservação.

Excelentíssimo Senhor Presidente, o seu silêncio, ainda que juridicamente cauteloso, começa a ser interpretado como conivência sistémica. Não por intenção, mas por efeito. E, na política e na História, os efeitos pesam tanto quanto as intenções. Um Chefe de Estado não é apenas um observador do funcionamento das instituições; é o último garante de que a justiça não se transforma em vingança, nem o poder em surdez.

Quando um sistema prefere silenciar o mensageiro em vez de corrigir a mensagem, confessa a sua fragilidade moral. Cabo Verde não precisa de instituições que se protejam da verdade, mas de instituições que se alimentem dela. A coragem de quem desafia o trono não deve ser um convite ao martírio civil ou jurídico, mas o ponto de partida para uma renovação ética nacional.

Em nome da diáspora cabo-verdiana e de todos os que acreditam num Estado de Direito vivo e imperfeito - porque humano - rogo a Vossa Excelência que use os poderes morais e constitucionais do seu cargo para promover a reavaliação deste caso. Não para condenar, mas para ouvir. Não para interferir, mas para iluminar.

A luz da verdade nunca destruiu uma nação. O que a destrói, lentamente, é o medo de a acender.

Com elevada consideração,

domingosdidi@gmail.com

Domingos Barbosa da Silva é uma figura ativa da comunidade cabo-verdiana em Oslo e autor de textos em prosa e versodedicados à emigração, à memória e à identidade cabo-verdiana. Licenciado em Farmácia pela Universidade de Oslo, exerceu como farmacéutico e colaborou como correspondente do jornal Terra Nova na Noruega. Coautor de várias obras sobre a diáspora, publicou também ensaio e romance, afirmando-se como escritor atento às raízes, às travessias e às vivências do seu povo. Reside em Oslo, onde se dedica à escrita e à leitura.

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