Um pescador mostra uma pequena garrafa com um líquido verde, quase azul, de cheiro forte e sabor amargo, garantindo que é uma cura para a hepatite e muitos outros males.
Sob anonimato, conta à Lusa que é fel, a bílis retirada do fígado de tartaruga, espécie protegida, mas que ainda é alvo de caça no arquipélago.
"Eu sei que é proibido capturar tartarugas ou vender qualquer parte que seja”, mas, “para criar a minha filha e resolver os meus problemas, prefiro arriscar", descreve, em crioulo.
Vende cada garrafa de 28 mililitros a 1.000 escudos (nove euros) e a crença de que se trata de um produto milagroso alimenta a procura doméstica e do exterior.
"Ainda há dias, enviei duas garrafas para o estrangeiro”, recorda, ao mesmo tempo que reproduz o seu discurso de venda: "Fel de tartaruga serve para tratar muitas doenças, como por exemplo, a ‘trisa’ (hepatite). E também tira dores de corpo”.
O pescador explica que, na localidade onde vive, "a única forma de sobrevivência vem do mar", mas nem sempre a pesca dá rendimento.
Chega a haver dias seguidos sem pegar um peixe, por isso, vender fel ajuda a cobrir as despesas.
Para a conservar, a bílis da tartaruga é misturada com grogue (aguardente tradicional de Cabo Verde) e, assim, pode levar anos a ser "consumida tranquilamente".
O país introduziu legislação para proteger as tartarugas marinhas, criminalizando o abate intencional, comercialização, transporte e consumo, o que faz com que a venda de fel aconteça às escondidas.
Um dos consumidores, também sob anonimato, disse à Lusa que é "o único remédio" que encontrou para curar a hepatite.
"Desde que nasci, sempre ouvi dizer que o fel cura a ‘trisa’, a anemia, tira dores do corpo. Antes de a tartaruga ser proibida para consumo, muitas pessoas sempre o tinham em casa”, recordou.
Acredita que foi graças ao fel que hoje se sente bem.
“Porquê esperar pelo tempo que um pobre demora até ter uma consulta num hospital? É esperar pela morte", apontou, apesar de estar consciente do crime em que incorre.
"Compro-o a rapazes que mergulham. Às vezes, vendem a 1.500 ou 2.000 escudos (entre 13 a 18 euros) por cada colher”, medida no local, despejada para a garrafa do comprador.
Samir Martins, técnico da organização não-governamental (ONG) cabo-verdiana Lantuna, que se dedica à proteção de tartarugas, descreve a utilização do fel como “uma crença” que não dispensa a consulta de um médico.
Desde a antiguidade, em que o acesso a medicamentos era "raro", o fel tornou-se numa alternativa de medicina tradicional, tendo passado de geração em geração, mas sem resultados comprovados.
"É uma crença que acham que cura", que se compreendia num contexto de difícil acesso a medicamentos, mas, hoje, as farmácias vendem produtos cientificamente comprovados a preços mais baixos – e sem ameaçar uma espécie protegida, salienta.
"Temos um grande problema com os emigrantes, porque incentivam a apanha de tartarugas e estão dispostos a pagar um valor alto", lamentou.
Todos os anos, a Polícia Marítima faz detenções nalgumas regiões da ilha de Santiago relacionadas com a morte e extração de órgãos de tartaruga, disse à Lusa o comandante Faustino Moreno.
Apesar de não indicar números, aquele responsável disse que, este ano, as detenções diminuíram e que os crimes mais comuns são a comercialização de carne, ovos e o transporte do animal.
Ainda ninguém foi detido, nem houve apreensão de amostras de fel de tartaruga, mas Faustino Moreno reconhece que “esse tráfico existe”, bem como a “venda desse produto”, concluiu.
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