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“Força e inspiração vêm do foco, da dedicação, das experiências e da fé”
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“Força e inspiração vêm do foco, da dedicação, das experiências e da fé”

Lívia Duarte, deputada estadual na Assembleia Legislativa do Pará, Brasil, esteve em Cabo Verde (regressou ao seu país esta manhã) e falou com Santiago Magazine, sobre como é ser mulher e negra na política brasileira, afirmando que “foi graças à consciência política que entendi que pessoas como eu não devem se conformar com a realidade em que vivem, não devem se conformar com a rua cheia de lama, a água que falta na torneira, o saneamento que não existe, a educação e a saúde ineficientes. E muito menos, que a minha condição de preta e periférica ditasse o meu futuro”. Confira!

Santiago Magazine - Lívia Duarte. Mulher, mãe, jovem, ativista dos direitos das mulheres e das mulheres negras, em particular, política, e atualmente Deputada Estadual na Assembleia Legislativa do Pará (Brasil). Este é o seu curriculum público. Mas, conta ao Santiago Magazine quem é a Lívia Duarte?

Lívia Duarte - Sou uma mulher preta que cresceu na periferia da Região Metropolitana de Belém, metrópole da Amazônia. Sou de uma família de três filhos, cujos pais vieram do interior do Pará - inclusive, tive um avô submetido à condição análoga à escravidão, ou seja, ele foi um trabalhador explorado em troca do pagamento de uma suposta dívida, sem direitos trabalhistas, mantido em situação subumana, em uma região inóspita, onde os olhos da segurança pública e da justiça não alcançavam à época - e a condição de classe média baixa da minha família só mudou quando o meu pai entrou para a universidade. A educação fez toda a diferença na nossa vida.

O socialismo foi a via natural da minha trajetória. Na juventude me filiei ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), uma legenda de esquerda constituída de aguerridos militantes, de atuação destacada nacionalmente pela defesa da justiça social e dos direitos humanos, do qual me orgulho muito.

Foi graças à consciência política que entendi que pessoas como eu não devem se conformar com a realidade em que vivem, não devem se conformar com a rua cheia de lama, a água que falta na torneira, o saneamento que não existe, a educação e a saúde ineficientes. E muito menos, que a minha condição de preta e periférica ditasse o meu futuro.

A minha missão na política é fazer diferente. Por um lado, despertar o desejo e a esperança em todos os pretos e pretas de que é possível ir além do gueto, de que também podemos ocupar espaços políticos. E, por outro lado, o meu propósito é avançar na transformação da realidade em que vivemos com proposições legislativas inovadoras, como o projeto de lei de minha autoria, que acaba de ser aprovado na Assembleia Legislativa do Estado do Pará, que institui a licença menstrual de três dias para servidoras públicas do estado que comprovem sofrer de graves males de saúde relacionados ao fluxo menstrual. Essa proposição ainda depende da sanção do governador do Pará. Essa aprovação foi inédita no Brasil, pois a discussão sobre o tema ainda é inicial no país, sendo objeto de um projeto de lei em trâmite na Câmara Federal, em Brasília. A licença menstrual já é realidade na Espanha.

Para além desse tema, que fiz um intenso trabalho em prol da dignidade menstrual em parceria com a Unicef, quando fui vereadora de Belém, capital do Pará, nos anos de 2021 e 2022, tenho atuado no atendimento das demandas de mães, como o projeto indicativo ao Executivo que cria a creche noturna para que mulheres que trabalham e estudam fora do horário comercial possam ter onde deixar os filhos em segurança; no combate ao racismo, como os projetos que prevêem a formação antirracista para servidores da Assembleia Legislativa e empresas privadas; o enfrentamento dos crimes de homofobia, com o projeto que obriga a informação da identidade de gênero e de orientação sexual em boletins de ocorrência policial, entre outros.

Na vida pessoal, sou mãe de dois filhos biológicos e tenho uma enteada, sou casada, curso Psicologia na Universidade da Amazônia, tenho dois cachorros, adoro poesia e literatura e simplesmente amo plantas.

Como surgiu essa oportunidade de entrar na política e ser deputada do Estado do Pará pelo partido PSOL?

Eu me filiei ao PSOL muito jovem e, por cerca de dez anos, fui assessora parlamentar do ex-deputado Edmilson Rodrigues, atual prefeito de Belém, capital do Pará, que é uma das principais lideranças nacionais do partido. Trabalhei com ele no mandato da Assembleia Legislativa do Estado e também na Câmara Federal. Nesse período, também presidi o Diretório Municipal do PSOL, onde fui a primeira dirigente feminina negra e fundei o Setorial de Mulheres do partido.

Em 2020, fizemos a primeira campanha política que me elegeu vereadora de Belém. Em 2021, fui eleita deputada estadual, assumindo em 2022 na Assembleia Legislativa. Tive duas campanhas vitoriosas porque não ando sozinha. Esses mandatos foram construídos com a participação de muitas pessoas de movimentos sociais e de aliados e aliadas políticos, que reconhecem em mim a representatividade dessa luta que encampamos juntos.

Então, quando se consegue unir forças, entender que caminhando juntos somos mais fortes e que o sonho de obter avanços é palpável, o projeto político coletivo se torna possível.

Entre várias existências e realidades que a Lívia vive, duas condições a caracterizam: ser mulher negra e política. Como é participar enquanto mulher e negra da política no Brasil?

No meu primeiro dia na Câmara Municipal de Belém, quando fui tomar posse como vereadora, um agente de segurança tentou me barrar de entrar no plenário porque não me identificou como vereadora eleita. Eu tive que dizer que era vereadora para entrar, mas não vi homens brancos sendo questionados sobre isso. Então, o racismo e o machismo impõem várias barreiras, que temos que ir derrubando aos poucos.

Na Assembleia Legislativa do Estado do Pará, sou uma das sete deputadas entre as 41 cadeiras existentes na Casa, e eu sou a primeira deputada autodeclarada preta. Pois, no meu país, conta muito a autodeclaração para identificar oficialmente a questão de etnia.

Para sermos vistas e ouvidas, não somente dentro do Parlamento, mas também fora dele, precisamos reafirmar a nossa força política todos os dias, ter presença nos espaços políticos e ter o dobro ou mais que o dobro da produção legislativa de um homem branco. Felizmente, eu e o meu mandato temos conseguido fazer isso. Não há uma sessão em que eu não apresente várias proposições. Na Câmara, fui a parlamentar de maior produção e, na Alepa, também tenho posição destacada nesse sentido.

O que tem impossibilitado as mulheres negras do seu Estado a participarem do espaço público e político no Brasil?

É complexo falar por outras pessoas, mas creio que a não superação do racismo e do machismo e a falta de empoderamento dessas mulheres respondam muita coisa sobre isso. É notório que no Pará e no Brasil, as mulheres pretas têm menos oportunidades de estudo e de trabalho. Somos a maioria das trabalhadoras domésticas, que recebem a menor remuneração do país e condições precárias de trabalho, somos mães-solo e também somos a maioria das vítimas de violência doméstica e feminicídio do Brasil.

Como convencer uma mulher negra que ela pode muito mais, quando mal consegue exercer a liberdade de consumo, pois é seguida pelo segurança do supermercado ou da loja porque a cor da pele já a torna suspeita de furto? Quando, no parto, a dor da parturiente branca vale mais para o sistema de saúde do que a dor dela? Quando os filhos são mortos nas periferias sem que a segurança pública dê respostas, sem que ninguém seja preso? A mulher negra no Brasil não é respeitada em diversos espaços sociais e ainda é invisibilizada em sua cidadania.

Reverter a “lógica racista” é imperioso e urgente. Infelizmente, dar o exemplo não é suficiente, precisamos não apenas de políticas públicas, mas também de formação política para as mulheres negras. Esse é um longo e importante caminho, no qual esperamos contribuir substancialmente.

Defendeu, desde muito jovem, as questões de igualdade e emancipação das mulheres. Como tem sido esta experiência numa sociedade como a brasileira?

A minha primeira experiência como mãe, foi a de mãe solo. Assim como eu, muitas mulheres desempenham a maternidade sem a presença dos pais de seus filhos no cotidiano e, muitas vezes, também sem o amor necessário e o auxílio financeiro para o sustento dessas crianças (pensão alimentícia), o que não foi o meu caso. Foi importante ter tido essa experiência para identificar as necessidades dessa condição.

Na sociedade brasileira, as mulheres, em grande parte, trabalham fora de casa e também estudam, enfrentando tripla jornada com afazeres domésticos e maternais. Defendemos que a mulher tenha a liberdade de estar com quem quiser, de casar e de se separar, conforme o desejo dela, porém, ainda enfrentamos casos de feminicídio (assassinato de mulheres) cometidos por ex-companheiros que não aceitam a separação.

Como analisa o trabalho dos sucessivos governos brasileiros quanto à promoção de políticas públicas nesta área de promoção da igualdade de género e dos direitos das mulheres?

Em 13 anos de mandatos presidenciais do Partido dos Trabalhadores, com Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff - ela sofreu impeachment em 2016 - tivemos muitos avanços no Brasil com políticas públicas de promoção da igualdade de gênero, além das políticas de enfrentamento do racismo e da homofobia. Inclusive, destaco a expansão das vagas de ensino superior e a criação das cotas em universidades públicas para negros, indígenas e estudantes oriundos do ensino público, além da criação dos auxílios financeiros institucionais às camadas mais pobres da população, que vigoram até hoje. Porém, o retrocesso veio com tudo na gestão de Jair Bolsonaro, que foi presidente da República entre os anos de 2019 a 2022, que extinguiu várias políticas voltadas a essas áreas, sem falar nas declarações públicas preconceituosas dele contra mulheres, negros, indígenas e homossexuais.

Com a volta de Lula, no início deste ano, retomamos a esperança de dias melhores. Já assistimos a políticas públicas para as camadas mais pobres da população, como a política habitacional que, em certa medida, prioriza as mães solo; o veto parcial ao chamado Marco Legal, que tentava restringir as terras indígenas ao território ocupado pelas etnias até a Constituição Federal de 1988.

Está em Cabo Verde por estes dias. Porquê Cabo Verde?

Na condição de vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Pará, estou integrando a I Missão Internacional Integrada de Cooperação Solidária Amazônia Paraense & Guiné-Bissau, que realizará uma agenda de cooperação nesse país. No entanto, lideranças do meu partido no Pará, como o próprio prefeito Edmilson Rodrigues, já possuem uma relação de diálogo e cooperação com pessoas de Cabo Verde, como o músico e ex-vereador Manuel di Candinho e o ex-ministro da Cultura Mário Lúcio, que já estiveram nos visitando em Belém. Nada melhor do que vir aqui e poder fortalecer e aproximar ainda mais esse laço de Cabo Verde com o Pará e a Amazônia.

Que projetos quer desenvolver em Cabo Verde?

Na minha conversa com a deputadas da Assembleia Nacional, Carla Carvalho, Paula Curado e Eveline Ramos; com a presidenta da Associação Caboverdiana de Luta Contra a Violência Baseada no Gênero, Vicenta Fernandes; e também com Candinho e os agentes culturais daqui, pudemos identificar desafios e necessidades comuns para um frutífero intercâmbio político, legislativo, social e cultural que possam trazer avanços para os dois países.

É mulher, profissional, mãe, esposa, ativista social, militante partidária. Onde encontra inspiração e força para fazer tudo o que já nos contou?

É verdade, é bem difícil conciliar tantos compromissos. Força e inspiração vêm do foco, da dedicação, das experiências e da fé. Mas, como disse anteriormente, vêm também das muitas pessoas que caminham ao meu lado nesse mandato coletivo de propósitos desafiadores.

Toda luta começa com a capacidade de amar. “No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover contra a dominação, contra a opressão. No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover em direção à liberdade, a agir de formas que libertam a nós e aos outros”, quem disse isso foi a escritora e ativista feminista norte-americana, bell hooks.

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