O consumo e a produção de conteúdos criminais, conhecidos mundialmente como “True Crime”, têm vindo hoje a ganhar, cada vez mais, espaço e Cabo Verde não foge à regra mundial, despertando curiosidade, debates e preocupações.
Enquanto os criadores defendem que se trata de uma forma de resgatar a memória de crimes que marcaram o país, consumidores assumem sentir uma mistura de medo, prevenção e fascínio, ao passo que os especialistas alertam para riscos associados a uma exposição contínua a esse tipo de narrativas.
Numa investigação feita pela Inforpress sobre a expansão deste género e conteúdo em Cabo Verde, destacam-se os casos “Zé Catana” e “Monte Tchota”, que continuam a alimentar discussões e a inspirar documentários, vídeos e debates digitais.
O massacre de Monte Tchota, ocorrido na madrugada de 24 para 25 de Abril de 2016, foi cometido pelo soldado Manuel António Silva Ribeiro, conhecido como Antany, que foi condenado à pena máxima, 35 anos de prisão, e a uma pena acessória de expulsão das Forças Armadas, bem como o pagamento de uma indemnização de 11 milhões de escudos aos familiares das vítimas.
Foi condenado “por ter assassinato oito colegas militares” por ressentimento pessoal e três civis (dois espanhóis e um cabo-verdiano) que prestavam serviços nas antenas daquele centro de telecomunicações.
Após os assassinatos, Antany fugiu, fez reféns e foi capturado dois dias depois pela Polícia Nacional na Cidade da Praia.
Em contrapartida, o caso Zé Catana, José Victor Fortes, conhecido como Zezinho Catana, foi condenado a 25 anos de prisão pelo homicídio agravado, ocultação e atentado contra a integridade de cadáver do colega de quarto, José Anjos.
O tribunal rejeitou a alegação de insanidade mental, considerando-o lúcido e reincidente. A vítima já havia cumprido pena anterior e é suspeito de outros homicídios nas ilhas de São Vicente e Santo Antão.
À Inforpress, o criador de conteúdos digitais João Pires, conhecido como Jap Pires, considera o interesse pelo “true crime” em Cabo Verde “inegável”, pois para ele, não se trata apenas de entretenimento, mas também de memória e informação.
“É uma forma de manter viva a lembrança de casos de grande noticiabilidade. Mas há limites para o que se pode publicar”, explicou, sublinhando que no documentário que produziu sobre o caso “Zé Catana” deixou de fora informações sem respaldo jornalístico.
“A credibilidade depende do recurso a documentos oficiais e reportagens verificadas. Quando se trata apenas de suposições, o público precisa ser informado disso”, acrescentou.
Entre os consumidores, o impacto é ambivalente, fascínio, sim, mas também alertou.
Já a jovem social media Darlyn Estrela confessa que o caso “Monte Tchota” a deixou em choque, mas que também lhe trouxe maior consciência sobre a segurança.
“Foi traumatizante, mas ao mesmo tempo fascinante tentar compreender a mente de um agressor”, contou.
O psicólogo clínico Olivar Estavan reconhece que o “true crime” não cria criminosos do nada, mas pode servir de gatilho para pessoas vulneráveis.
“Existem três mecanismos de risco, a aprendizagem por observação, quando técnicas são mostradas; a saliência de ideias, que reforça predisposições já existentes, e o cultivo, em que a exposição contínua molda crenças e normaliza a violência”, explicou.
Segundo o especialista, o consumo frequente pode não transformar qualquer espectador em agressor, mas pode reforçar tendências perigosas em indivíduos predispostos.
Apesar dos riscos, criadores e consumidores concordam sobre a importância do “true crime” em Cabo Verde, sobretudo porque muitos casos nacionais tiveram pouca cobertura jornalística.
“Enquanto existem milhares de produções sobre figuras como Ted Bundy, aqui casos como Zé Catana ou Monte Tchota contam com apenas um ou dois registos”, observou Jap Pires.
O desafio, no entanto, é não transformar criminosos em protagonistas maiores que as próprias vítimas.
“O respeito às famílias e à memória das vítimas deve estar no centro. Caso contrário, corremos o risco de vitimizar em nome do entretenimento”, sublinha o criador.
Entre memórias resgatadas e dilemas éticos, este tipo de conteúdo continua a expandir-se no país, reflectindo não apenas a curiosidade colectiva, mas também a forma como a sociedade encara os seus medos, a sua história e as suas vulnerabilidades.
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