Política de História, Memória e Identidade em Cabo Verde - Parte I
Ponto de Vista

Política de História, Memória e Identidade em Cabo Verde - Parte I

Este artigo vai debruçar sobre alguns aspetos referentes ao projeto de escrita da “História Geral de Cabo Verde”, com enfoque na sua historiografia (temas articulados e elaborados), algumas críticas e o impacto da mesma historiografia no atual sistema de ensino e na configuração da identidade caboverdiana. Sendo assim, o artigo está dividido em: Parte I: Projeto de História Geral de Cabo Verde; Parte II: Historiografia: omissões e assuntos silenciados; Parte III: A política educacional de mestiçagem em Cabo Verde; A Luta Contra o Branqueamento de História de Cabo Verde.

Introdução

A nossa história tem sido contada através de uma filosofia e ideologia luso-tropicalistas, ou seja, por via do branqueamento. A metodologia de contar tal história está baseada num suposto “encontro civilizacional”, sem nunca se fazer referência à violência, opressão e/ou exploração. Outrossim, ignora-se, amplamente, a resistência levada a cabo pela franja populacional maioritária, constituída de escravizados, forros e libertos (oriundos do continente Africano, particularmente da “Alta Guiné”). A fonte para escrever a nossa história tem sido totalmente dependente do arquivo colonial, cujo acesso continua sendo restrito e limitado por estar localizado em Portugal, antiga metrópole. O recurso ao arquivo colonial tem viabilizado e perpetuado o silenciamento da agência e das vozes Africanas.

No livro O Meu Compromisso Com Cabo Verde, Vol II:2006-2011, o antigo Combatente Pedro Pires afirma que um grupo de intelectuais da Martinica “alertam para o risco de se confundir a nossa história com a história da nossa colonização” (2011, p.82). Na mesma esteira, Amílcar Cabral certeiramente havia afirmado: “Os colonialistas dizem que eles nos fizeram entrar na História. Nós agora demonstramos que não: Eles nos fizeram deixar a história, a nossa própria história. Hoje vamos retornar à nossa História, pelos nossos próprios pés, os nossos próprios meios, os nossos próprios sacrifícios. Nós, povos de África, fomos capazes de fertilizar os nossos esforços.”

Este artigo vai debruçar sobre alguns aspetos referentes ao projeto de escrita da “História Geral de Cabo Verde”, com enfoque na sua historiografia (temas articulados e elaborados), algumas críticas e o impacto da mesma historiografia no atual sistema de ensino e na configuração da identidade caboverdiana. Sendo assim, o artigo está dividido em: Parte I: Projeto de História Geral de Cabo Verde; Parte II: Historiografia: omissões e assuntos silenciados; Parte III: A política educacional de mestiçagem em Cabo Verde; A Luta Contra o Branqueamento de História de Cabo Verde.

Parte I: Projeto de História Geral de Cabo Verde

Tudo indica que a nossa história está sendo contada a partir de uma perspectiva centrada na história da nossa colonização. Talvez por este motivo que, dia 19 de janeiro de 2022, na TVA, o Presidente de Instituto do Património Cultural (IPC), Jair Fernandes, disse que “o projeto História Geral de Cabo Verde deverá ser retomado com alterações”. Aquele dirigente critica a unilateralidade das fontes utilizadas na elaboração da História Geral de Cabo Verde.  Acrescentou ainda: “pondera reeditar História Concisa de Cabo Verde, a obra, de utilidade pedagógica, revela-se muito importante para a comunidade acadêmica e estudantil cabo-verdiana.”

Realmente, a obra História Geral de Cabo Verde (HGCV), editada em três volumes, foi uma iniciativa do governo de PAICV, em julho 1986, com o pedido formulado pela Direcção-Geral do Património Cultural de Cabo Verde (DGPC), e este ao Presidente do Instituto de Investigação Científica Tropical de Portugal (IICT). Em julho de 1987, o IICT confirmava o convite para esta cooperação, depois de ponderação, apesar de “tanto da parte da DGPC como do IICT havia a consciência clara da importância, das implicações e mesmo de alguns riscos que um projeto do gênero acarretava” (HGCV, vol. I, p. XII, 2ª edição).  Foi constituída uma equipa mista de caboverdianos e portugueses para iniciar a elaboração do projeto e, na sequência, a equipa começaria a busca pelos documentos, maioritariamente em Portugal.

Em junho de 1988, os dois governos oficializaram esta parceria com um Programa de Cooperação e o Primeiro-Ministro de Portugal, Aníbal Cavaco Silva, entregou documento do 1.º volume do Corpo Documental ao Presidente da República de Cabo Verde, Aristides Pereira. A cooperação com Portugal foi justificada pelo fato de terem tanto a posse os documentos como o know-how. Durante aquele período, alguns cidadãos preocupados sobre este projeto discutiram sobre a possiblidade de escrever uma verdadeira história sobre Cabo Verde ao invés de uma história sobre portugueses em Cabo Verde.

Ademais, é “De se destacar que este projecto contou sempre com total apoio, não só do MICD (Ministério da Informação, Cultura e Desportos), como sobretudo do Conselho do Ministros de Cabo Verde, que, na sua sessão do dia 8 de Setembro de 1988, ‘tendo ponderado a importância (do mesmo)...  e a sua natureza, recomendou a prossecução dos respectivos trabalhos, alertando para a necessidade de se continuarem a desenvolver todas as condições, com vista a garantir não só a boa qualidade científica da obra, mas também, sob o ponto de vista político-ideológico, a mais correcta visão, assumpção e interpretação dos factos e acontecimentos ligados à História de Cabo Verde.’” (HGCV, vol. I, p.XII-XIII, 2ª edição)

Infelizmente, com todas as preocupações respetivas ao tipo de história, riscos e ponto de vista político-ideológico, parece-me que as perguntas que foram colocadas foram exclusivamente a partir da tão propalada “expansão marítima portuguesa”. Portanto, as perguntas colocadas foram as dos portugueses. As respetivas respostas encontram-se nos três volumes.

Parece-me que os volumes de História Geral de África, organizados pela UNESCO, não foram sequer consultados na elaboração da obra supramencionada. Nomeadamente, o primeiro volume foi editado pelo ilustre professor e historiador Joseph Ki-Zerbo, tendo inclusive um capítulo específico sobre línguas africanas, dimensão fundamental quando se fala sobre um povo, sua história e identidade. No entanto, a História Geral de Cabo Verde não tem um único capítulo sobre a língua caboverdiana.

No meu entendimento, a falta da visão linguística releva-se como resultado de um “ensino “latificado”, que atribui o monopólio de pensamento ao homem branco ocidental, participa de forma substantiva na reprodução de hierarquias das humanidades, inclusive hierarquias linguísticas, inventadas desde a chegada das velhas caravelas, canhoes, espadas.”[1]

Sobre a matéria linguística duas notas breves creio que merecem um destaque neste momento. Primeiramente, conforme os resultados de uma sondagem elaborada e apresentada pelo Afrobarometer, mais de 68% dos caboverdianos desejam que a nossa língua materna seja formalmente oficializada. No entanto, vê-se que o Estado continua desrespeitando o desejo do povo caboverdiano.

Em contrapartida, este mesmo Estado permite que a Escola Portuguesa, uma entidade estrangeira, viole sistematicamente a Constituição da República de Cabo Verde na matéria dos direitos linguísticos, no seu artigo 9º, número 2, porquanto não permite que os estudantes caboverdianos falem a sua língua materna mesmo nos intervalos. Como bem disse o nosso grande poeta e escritor mais premiado de Cabo Verde, José Luiz Tavares: “A República, que em matéria relacionada com a língua nacional cabo-verdiana se tem pautado por gritante laxismo e imperdoável omissão, inclusive constitucional, terá a moral, sobretudo a coragem para tomar a atitude que se impõe, dado que a autorização concedida para a instalação da Escola Portuguesa não implica a violação descarada e altaneira de um direito humano básicos das crianças e dos jovens cabo-verdianos: o de falarem, sem qualquer mordaça supremacista neocolonial, a sua língua materna, esteio e veículo da sua identidade primeira?”[2]

Enfim, o espírito da libertação foi traído porque ainda não assumimos uma posição verdadeiramente independente desde independência jurídica e o projeto de História Geral de Cabo Verde é sintomático desta dependência mental.

O historiador burkinabé, Joseph Ki-Zerbo, que era simultaneamente um grande admirador de Amílcar Cabral e amigo do Presidente Aristides Pereira, poderia ter sido um excelente conselheiro sobre este projeto para Cabo Verde. Outrossim, em 1984, os intelectuais guineenses, liderados pelo Carlos Lopes fundaram o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) da Guiné-Bissau. Contudo, aparentemente, o INEP não foi convidado na qualidade de conselheiro acadêmico. Mesmo a SORONDA-Revista de Estudos Guineense, que teve o seu arranque em 1986, poderia ser uma boa parceira. Citamos tais exemplos porque é devidamente sabido que Cabo Verde tem uma forte ligação com a “Costa da Guiné” (de Senegal até Serra Leão), como foi bem escrito pelo etnógrafo e historiador António Carreira.

Apesar de ser um investigador conhecedor profundo da história de Cabo Verde, Dr. Carreira recusou o pedido de Dr. Manuel Veiga para ser parte de equipa caboverdiana em 27 de agosto de 1987. As razões de tal recusa poderão ser encontradas no livro António Carreira, Etnógrafo e Historiador, de João Lopes Filho, entre elas porque não tinha boa relação com o presidente do IICT ( p.78). Outras razões foram apresentadas:

O simples enunciado das quatro fases previstas e a não indicação do número de pesquisadores e do seu grau de experiencia como paleógrafos, impossibilitam-me de dar uma opinião sobre o possível andamento de cada fase, o que de resto não me foi pedido... ( p.77)

....Ora em tal posição o Instituto [IICT] não aceitaria a minha eventual actuação junto da equipa   de Cabo Verde... O que me parece evidente é a sua falta de competência no campo específico da evolução do processo histórico de Cabo Verde e rios de Guiné- onde trabalho há mais de 26 anos. (p.78, grifo nosso)

Em suma, Carreira recusou participar naquele projeto. A ideia original desse projeto é semelhante à proposta que António Carreira havia enviado ao governo de Cabo Verde em 1981. Carreira continua a justificar tal recusa:

Como estamos a tratar de um mesmo assunto, atrevo-me a recordar duas situações ocorridas há poucos anos. Em 1981 sugeri ao Governo de Cabo Verde a elaboração de uma série de estudos conducentes à recolha de dados destinados à estruturação da História do país, seja no sentido amplo da matéria, seja no campo específico da história económica e social. Foi assinado um contrato em Outubro de 1981, contrato que fui forçado a denunciar por incumprimento de algumas das cláusulas por parte de Cabo Verde. Em 1984, aquando da minha estada nas ilhas a convite do Ministro da Educação e Cultura, apresentei um plano sucinto para o início das investigações e a subsequente feitura da História, num período de seis anos (salvo erro). Nunca tive qualquer resposta. Admito entretanto que razões insuperáveis concorreram para a não concretização das iniciativas (p.78-79)

O espírito de solidariedade pan-africanista, também, não foi mobilizado, apesar do governo de então (PAICV) tinha uma diplomacia pan-africanista com os países de África. Por exemplo: Senegal, com uma enorme experiência acadêmica, via Universidade Cheikh Anta Diop, não foi solicitado para trocar ideias e até buscar fontes escritas e orais nessa instituição, que poderiam contribuir para a reescrita da nossa história.

*Doutorado em História Africana

[1] Descolonizar Cabo Verde-Para Além da Remoção Das Estátuas. É preciso questionar o mapa cognitivo imperial e os legados do colonialismo, por Cooperativa Educacional Lilica Boal para a Renascença Africana, 9 de setembro de 2021, Santiago Magazine.
[2] “Uma selvajaria civilizacional. [o caso da Escola Portuguesa da Praia]”, em 21 de fevereiro de 2023 no Santiago Magazine

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