Cabo Verde precisa muito de aviões. Mas, precisa também de autonomia logística, engenharia financeira estratégica e coragem institucional para romper com a dependência. O leasing financeiro com opção de compra não é apenas uma cláusula. É uma declaração de soberania. Enquanto alugarmos asas, continuaremos a cair no vazio da servidão aérea. É hora de voar com rumo, e com rumo próprio. O leasing que voa sem pousar na verdade é o leasing que prende. Nada impede de chamá-lo de meia frota a condizer com o meio boeing!
Em setembro de 2025, dois ATR 72-600 aterrissaram em Cabo Verde com pompa institucional e pintura nova. A TACV celebrou o reforço da frota, o Governo aplaudiu a conectividade inter-ilhas, e a marca “CV Sky” foi lançada como símbolo de renovação. Mas enquanto o país festejava com comunicados vagos e fotos aéreas, a imprensa internacional, mais precisamente o site AirPro News, revelou o que não foi dito em casa: os aviões são alugados, usados, e operados sob contrato estrangeiro com cláusulas que ninguém viu.
O contrato que voa, mas não pousa no Boletim Oficial
Segundo a notícia publicada fora do arquipélago, os dois ATRs foram entregues à TACV por meio de leasing operacional de longo prazo com a empresa holandesa TrueNoord. Isso significa que os aviões não pertencem à TACV, não constam como ativos nacionais, e serão devolvidos ao final do contrato, a menos que se renegocie, se pague mais ou se reze por uma cláusula de compra que não existe.
Enquanto isso, os comunicados internos falam em “reforço da frota” e “expansão da conectividade”, sem mencionar que a frota é alheia e a expansão tem prazo de validade. O leasing operacional é apresentado como solução moderna, mas na prática é uma teia financeira sem retorno patrimonial, onde o país paga para voar, mas não constrói soberania logística.
Aviões com passado: ex-IndiGo, agora CV Sky
Outro detalhe revelado pela imprensa estrangeira, e cuidadosamente omitido pelas autoridades locais, é que os ATRs foram anteriormente operados pela companhia indiana IndiGo. Ou seja, não são aeronaves novas, mas sim reaproveitadas, reconfiguradas e repintadas. A origem técnica dos aparelhos levanta questões sobre valor residual, estado de conservação e custo-benefício, que não foram abordadas em nenhuma entrevista oficial.
A marca “CV Sky”, lançada com entusiasmo institucional, pode ser apenas uma personalização cosmética aprovada pelo locador, sem autonomia real sobre sistemas internos, configuração de cabine ou identidade técnica. Em leasing operacional, até a cor da poltrona precisa de autorização. Voamos com nome próprio, mas asas alheias e, contrato opaco.
Quanto custa voar sem saber?
Embora o valor exato do contrato não tenha sido divulgado, a notícia internacional contextualiza que o preço de mercado de um ATR 72-600 novo gira em torno de US$ 16,5 milhões, e que as taxas mensais de leasing variam entre US$ 110 mil e US$ 130 mil. Isso permite estimar que o custo anual por aeronave pode ultrapassar US$ 1,5 milhão, sem incluir manutenção, seguro, combustível ou operação.
Nenhum desses números foi apresentado ao povo cabo-verdiano. Não há publicação oficial do contrato, nem debate parlamentar, nem prestação de contas pública. O leasing voa, mas a transparência continua em terra.
Estratégia ou dependência disfarçada?
A notícia estrangeira apresenta a entrega dos ATRs como parte da estratégia da TrueNoord para expandir sua presença em África, aproveitando o crescimento do turismo e da aviação regional. Cabo Verde é tratado como mercado emergente, não como parceiro soberano. A narrativa internacional foca no sucesso da empresa europeia, enquanto a narrativa interna omite os termos da dependência contratual.
A operação dos voos domésticos será transferida para a nova companhia estatal LACV, enquanto a TACV se concentrará em rotas internacionais. Essa divisão operacional, revelada lá fora, não foi amplamente explicada cá dentro, embora tenha implicações diretas na gestão de recursos, na autonomia logística e na engenharia financeira nacional.
Cá dentro, fomos todos surpreendidos pela “CV Sky”, uma marca fantasma para um leasing discreto, como símbolo de renovação. Porque a ausência de clareza não é um simples detalhe. É deliberado, é sintomático e, neste caso em particular é expediente: em contratos de leasing operacional, a pintura e o branding da aeronave devem ser aprovados pelo locador, o que restringe a autonomia estética e técnica da companhia. A ausência de modificações profundas na cabine, nos sistemas internos ou na configuração técnica pode indicar que a personalização é superficial e condicionada. A escolha do nome “CV Sky” cabe bem à tentativa de rebranding institucional sem autonomia real, já que os ativos continuam sob controle externo. Em outras palavras, voamos com nome celeste, mas asas alheias.
Leasing com verniz não é soberania
Por que Cabo Verde continua a voar com asas alugadas, sem construir soberania aérea? Por que o Estado cabo-verdiano não optou por um leasing financeiro com opção de compra? A resposta está nas amarras invisíveis da fragilidade institucional e da engenharia financeira dependente.
O leasing operacional é, em essência, um contrato de aluguel de aeronave. A companhia aérea paga mensalidades para utilizar o avião, sem assumir propriedade, sem registar o ativo no balanço, e sem direito automático de compra ao final do contrato. Essa modalidade oferece vantagens aparentes, como menor exigência de garantias, flexibilidade contratual e possibilidade de devolução em caso de crise. No entanto, seus efeitos estruturais são preocupantes: não há construção de frota nacional, perpetua-se a dependência de empresas estrangeiras, acumulam-se custos sem retorno sobre o ativo, e a companhia perde controle sobre cláusulas estratégicas como manutenção, seguro e metas de utilização mínima. Na prática, o leasing operacional configura uma teia financeira sem retorno, onde o país paga para voar, mas nunca pousa na autonomia.
Para que uma empresa como a TACV possa aceder a um leasing financeiro, é necessário que apresente um balanço contábil sólido, comprove fluxos de caixa estáveis, ofereça garantias reais ou estatais e demonstre governança institucional confiável. Após anos de interrupções operacionais, passivos acumulados e dependência de subvenções públicas, a companhia não atende a esses critérios. A ausência de auditorias regulares, transparência fiscal e planejamento estratégico impede que arrendadores internacionais ofereçam contratos com cláusula de compra, relegando a TACV a contratos de curto alcance e baixa soberania.
Para reverter essa dependência, é necessário que o Estado intervenha com engenharia financeira soberana. A criação de um Fundo Nacional de Aviação Regional, com participação da diáspora e garantias estatais, permitiria a emissão de títulos verdes ou sociais para financiar leasing financeiro com cláusula de compra. Parcerias com bancos multilaterais como o BAD, BID ou Banco Mundial poderiam garantir contratos com retorno patrimonial e cláusulas de reversão social. Além disso, é urgente reestruturar institucionalmente a TACV, com auditoria independente, publicação de balanços, plano de viabilidade operacional e formação técnica de quadros locais para gestão de ativos aeronáuticos.
A adoção de um modelo híbrido, com cláusula de reversão, permitiria que o leasing financeiro fosse acompanhado de mecanismos de proteção: se o Estado não cumprir, o ativo retorna ao locador, mas com transparência e sem penalidades abusivas. A participação comunitária na manutenção e operação dos aviões geraria emprego, capacitação e corresponsabilidade logística.
Cabo Verde precisa muito de aviões. Mas, precisa também de autonomia logística, engenharia financeira estratégica e coragem institucional para romper com a dependência. O leasing financeiro com opção de compra não é apenas uma cláusula. É uma declaração de soberania. Enquanto alugarmos asas, continuaremos a cair no vazio da servidão aérea. É hora de voar com rumo, e com rumo próprio.
O leasing que voa sem pousar na verdade é o leasing que prende. Nada impede de chamá-lo de meia frota a condizer com o meio boeing!
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A equipa do Santiago Magazine