"Quando se esperava do Presidente da República uma intervenção no sentido de reduzir a tensão política e de promover o diálogo e a concertação entre as forças políticas, face ao diagnóstico que fez no qual identifica a existência de uma elevada crispação política, acontece, porém, o contrário: o Presidente da República preferiu apagar o fogo com a gasolina, lançando mais achas para a fogueira".
“…o princípio da separação de poderes não pode ser desfigurado pela arrumação constitucional específica das competências dos poderes soberanos em termos que envolvam a negação do seu “centro de gravidade”, o qual radica em 3 dos seus pilares axiológicos e objetivos funcionais: a partilha do poder político por uma pluralidade de titulares como forma de o limitar; a preclusão de uma concentração omnicompetente do poder “numa só mão”; e a proibição de ingerência de certos órgãos no objeto medular das competências de outros”.
(Curso de Direito Constitucional – Tomo I
Carlos Blanco Morais e Mafalda Luísa Condelipes Boavida)
Cabo Verde tem estado a viver um período complicado onde coabitam sinais contraditórios entre a retoma económica e superação da crise covid-19 e uma certa instabilidade política provocada pela ação e omissão de certos atores políticos.
Alguns sinais não deixam de ser preocupantes e revelam alguma degradação institucional em curso, com tudo o que isso implica em termos de desfocagem do essencial, migrando o esforço e a atenção dos responsáveis políticos de questões centrais do desenvolvimento do país para as de natureza marginal ou periférica.
Não se pode ignorar esses sinais de degradação, porventura, muitos visíveis para não serem identificados, e, eventualmente, combatidos ou neutralizados sob pena de se entrar num caos institucional, com tudo o que isso implica com relação à preservação da imagem, do poder e da autoridade do Estado, bem como do exemplo que as instituições estatais devem transmitir aos cidadãos quando se trata de resolver conflitos ou divergências entre os seus protagonistas.
Não é normal que uma entidade estatal ordene a colocação de placas de sinalização de obras ou de sinalização de espaços e outra entidade as mande derrubar com honras de transmissão pela televisão, sem que nada aconteça;
Não é da boa práxis institucional que uma entidade pública produza uma declaração à imprensa e uma outra entidade pública apareça de seguida em comunicado, de forma ostensiva, a desmenti-la, pondo inclusivamente em causa a sua esperada neutralidade e imparcialidade;
Não é ainda normal que o Estado Constitucional e de Direito seja suspenso, temporariamente, para dar lugar a um “estado constitucional de costumes”, num “protagonismo redentor” que não conhece limites, sem que ninguém com responsabilidades emita quaisquer sinais de questionamento ou preocupação com o que está a acontecer;
Como ainda não é normal que um governo entenda tomar medidas impopulares, eventualmente, sem a necessária ponderação, e passo seguinte, o mesmo governo venha a suspender as mesmas medidas, face à contestação então ocorrida.
Esses sinais indiciam uma certa degradação institucional, um grande défice de cultura e práxis democráticas e uma preocupante incapacidade de diálogo e de saudáveis relações institucionais, fruto de uma certa diluição neutralizante do poder do Estado, onde cada um, ao que parece, se assume como dono do seu quintal, e cada qual faz o que entender.
É nesse estado de ânimo que o país se encontra, e é nesse quadro que surge e se insere a última intervenção do Presidente da República, José Maria Neves.
A intervenção do Presidente da República pelo seu conteúdo, envolto num apurado diagnóstico e contundentes acusações, tinha todos os ingredientes para fundamentar a dissolução da Assembleia Nacional. Esta seria a consequência lógica de uma intervenção desse calibre, onde se revela e se assume uma certa rutura relacional com o governo, o que prenuncia nada de bom para o país.
Embora o Presidente da República tenha começado o seu discurso com uma forte crítica ao ambiente de tensão e de conflitualidade política que se vive no país quando afirma que se constata “um clima preocupante e persistente de excessiva partidarização do espaço público. Assistimos a uma disputa política permanente que sufoca a sociedade”. Ou quando ainda no mesmo tom acrescenta que infelizmente “presenciamos uma atmosfera de campanha permanente. Tal facto é extremamente corrosivo para o interesse nacional, pelo desperdício de energias e de capacidades, que são, importa sublinhá-lo, energias e capacidades da Nação”.
Nesta comunicação, o Presidente da República, na esteira do que havia proferido em outras ocasiões manifesta-se desconfortável com o comportamento dos atores políticos quando refere que a “crispação política é um vírus que leva à polarização, ao populismo, ao extremismo e à intolerância. Temos de ser argutos e previdentes. Urge poupar Cabo Verde de solavancos desnecessários, evitáveis. Assim, urge reduzir esta grande crispação política, aumentar a confiança entre os partidos e entre atores políticos, criando as condições para um diálogo salutar e produtivo. Insisto na necessidade do respeito pela diferença e na premência do diálogo e do consenso como ingredientes naturais da vida democrática”.
Não se pode estar mais de acordo com o Presidente da República sobre o diagnóstico que faz, embora é preciso pontuar, para se ser justo na análise, que esse fenómeno não é de caráter conjuntural, antes, ele é marcadamente de natureza estrutural. A partidarização da administração pública remonta ao tempo, concretamente a 1990, quando o governo do PAICV, aproveitando a transição do regime, transferiu o quadro privativo do PAICV, integrados por centenas de militantes, para os quadros da administração pública, sem concurso e sem respeitar as regras da administração pública.
Este foi o ponto de partida para tudo o que posteriormente veio a acontecer, tendo os partidos políticos gerido o aparelho do Estado de acordo com os seus interesses e no quadro da lógica clientelar, com tudo o que isso implica de negativo com relação a seleção dos melhores, dos mais capazes e experientes para o exercício de cargos de alta responsabilidade.
A partidarização da sociedade veio a seguir, os partidos políticos transformaram-se quase numa seita religiosa, e a divisão da sociedade se operou e se reforçou com base na negação: se não é por mim é contra mim. Essa partidarização da sociedade tornou-se patente no seio familiar, no convívio social, nos funerais, no relacionamento afetivo, enfim, em toda a dinâmica social. Deste modo, a sociedade e os partidos políticos tornaram vítimas e reféns de um relacionamento interesseiro e de dependência recíproca, cujo remédio para a sua superação não se vislumbra fácil de se encontrar, sobretudo num país onde praticamente tudo depende do Estado.
No entanto, a parte mais significativa da comunicação do Presidente da República ao país foi reservada ao governo, sem nunca o mencionar diretamente, com críticas, em alguns casos, e acusações fortes, noutros, com expressões com vão para além do expetável, sobretudo quando elas são dirigidas a um outro órgão de soberania.
Vejamos algumas delas:
“Na prestação de alguns serviços contratualizados, a qualidade tem sido dececionante, com reclamações generalizadas pela aparente falta de competência na garantia de serviços finais aos cidadãos, que chega tarde ou não chega, originando reações e alertas, da sociedade às mais altas autoridades políticas e religiosas”.
(…) “Aliás, não é por acaso que em vários setores temos vindo a perder competitividade, precisamente porque as decisões são tomadas de forma enviesada”.
Temos nestas afirmações do Presidente um misto de críticas e de acusações públicas, não deixando lugar para quaisquer dúvidas para quem essas duras palavras eram dirigidas, e, aparentemente, não se preocupando com todo o impacto e repercussão que essas palavras possam ter e tiveram na opinião pública e nos seus destinatários.
Mas o Presidente da República não ficou por essas afirmações hostis. Foi mais longe com outros pronunciamentos, não menos fortes, ao dizer que legitimamente “a Nação inquieta-se e indigna-se com o inegável retrocesso em setores vitais ao nosso Estado-arquipélago”. Para de seguida acrescentar que verifica com preocupação “que são tomadas decisões cujo propósito e cuja lógica não se entende, principalmente quando tudo levava a crer que medidas iam ser tomadas – e elas até já haviam sido anunciadas –, mas eis que as instituições públicas recuam e se apequenam. Essas mesmas decisões, que são tomadas num dia para se recuar no dia seguinte, sinalizam que as mesmas não foram suficientemente amadurecidas”.
Para encerrar as citações ao Presidente da República importa deixar essas passagens do texto, onde o presidente afirma que “Não podemos, de ânimo leve, assistir a discursos contraditórios e descoordenações a nível da formulação de políticas, revelando falta de maturação das medidas com vista à sua implementação. Cabo Verde não pode dar-se ao luxo da experimentação como método de gestão do interesse público”. (…) “É urgente recuperar o senso do justo e da Justiça, bem como evitar a privatização indébita do Estado a favor de interesses privados ou de grupos”.
Do resumo das palavras e expressões utilizadas pelo Presidente da República dirigidas ao governo temos os seguintes: (i) qualidade de (certos) serviços tem sido dececionante (ii) falta de competência na garantia de serviços finais aos cidadãos (iii) vários setores tem vindo a perder competitividade (iv) as decisões são tomadas de forma enviesada (v) inegável retrocesso em setores vitais (vi) as instituições públicas recuam e se apequenam (vii) Não podemos, de ânimo leve, assistir a discursos contraditórios e descoordenações a nível da formulação de políticas (viii) Cabo Verde não pode dar-se ao luxo da experimentação como método de gestão do interesse público (ix) evitar a privatização indébita do Estado a favor de interesses privados ou de grupos.
Não há memória na história de Cabo Verde democrático, um pronunciamento de um Presidente da República com este vocabulário e esse tom dirigido a um outro órgão de soberania com igual legitimidade democrática e cuja responsabilidade política, constitucionalmente estabelecida, é, claramente, perante o parlamento e não face ao Presidente da República, dizia, não há memória uma censura pública desse calibre, sem que se aponte uma saída para a situação tida como gravíssima.
O Presidente da República poderá, porventura, ter mil motivos para não estar satisfeito com o desempenho do governo, como muitos cabo-verdianos provavelmente não estarão, mas o papel que o nosso sistema de governo reserva ao Presidente da República, não é o de ser opositor, crítico ou apoiante do governo, nem de substituir ou neutralizar a oposição a quem compete criticar, opor-se, acusar as ações ou omissões do governo.
O papel reservado ao Presidente da República num sistema como o nosso, em que a luta e o confronto políticos ocorrem especialmente no parlamento entre o poder e a oposição, é o de moderar e de baixar a tensão e a conflitualidade políticas, sobretudo quando elas excedem determinados limites ou provoquem prejuízos para o país – como tão bem diagnosticou numa parte da sua comunicação – apontar caminhos e propor soluções, e não, simplesmente, se autorrealizar nas críticas e se esgotar nas acusações produzidas.
Ser moderador do sistema e promotor do diálogo político não se compaginam com intervencionismo excessivo ou protagonismo político gerador de confrontos com algum elo do sistema, sob pena de lhe deixar de reconhecer o seu papel moderador.
Com esta intervenção, o Presidente da República parece ter desistido de exercer a chamada magistratura de influência que consiste em utilizar a sua posição do mais alto magistrado da nação e de estar acima da luta e querelas partidárias para, estribado nessa posição de superior credibilidade, usar a força da sua palavra, porque escutado por todos, para influenciar decisões e soluções.
A magistratura de influência exerce-se num quadro de diálogo e cooperação institucional, e para que ela seja eficaz, deverá ser desenvolvida, na maior parte do tempo, intramuros ou em reserva absoluta com relação ao espaço público. Ora, isso foi tudo o que o Presidente da República não se cuidou em garantir, optando, antes, por partir a loiça.
Quando se esperava do Presidente da República uma intervenção no sentido de reduzir a tensão política e de promover o diálogo e a concertação entre as forças políticas, face ao diagnóstico que fez no qual identifica a existência de uma elevada crispação política, acontece, porém, o contrário: o Presidente da República preferiu apagar o fogo com a gasolina, lançando mais achas para a fogueira.
A intervenção do Presidente da República por carregar e ser portadora de mais força e impacto mediático, derivado da sua condição do mais alto magistrado da Nação, esvaziou por completo a intervenção do dia seguinte do principal líder da oposição que ficou sem espaço, e o seu posicionamento secundarizado. Aparentemente intui-se que não estava nas intenções do Presidente da República substituir o líder da oposição, mas, na prática, foi o que acabou por acontecer, e o confronto político ficou reservado ao MPD e ao próprio Presidente da República.
Ora, isso não pode acontecer, sob pena de se desvirtuar o próprio sistema do governo que focaliza o confronto político poder/oposição, reservando ao Presidente da República o papel de moderador. Agindo como agiu o Presidente da República, corre-se assim o risco de o poder moderador que lhe é conferido e reconhecido, central neste sistema, perder o seu lugar e a sua importância, com todas as consequências que daí poderão advir.
Ademais, o princípio de separação e de interdependência dos poderes que significa que, embora o Estado seja Unitário, os poderes são repartidos, cada integrante, no quadro da interdependência funcional, deve contribuir para a realização das tarefas do Estado.
A interdependência exige e apela para o princípio da complementaridade, da cooperação e do diálogo institucional como forma de viabilizar a realização das tarefas cometidas ao Estado, cabendo a todos e cada um dos orgãos de soberania contribuir para que esse desiderato, chamado do bem comum, se cumpra.
É isso que todos esperam dos orgãos de soberania!
Porém, se se critica a intervenção do Presidente da República, especialmente no conteúdo e forma, tal não significa a absolvição do governo na gestão da questão dos transportes marítimos.
A cedência em toda linha, nas negociações para a introdução de adenda ao contrato de concessão, não tem, aparentemente, justificação plausível, muito embora – é preciso reconhecer isso – o setor dos transportes marítimos não é uma área apetecível de negócios e que facilmente se poderá encontrar parceiros interessados e prontos a fazer grandes investimentos. Ainda assim, valerá sempre a pena ponderar se, não havendo condições objetivas para se concessionar serviços públicos, o país deva insistir numa opção que trás mais problemas do que soluções.
A confessada humildade, manifestada em determinados momentos, deve ser estendida à avaliação da viabilidade desta operação, sendo a preocupação primeira das entidades públicas a de garantir a salvaguarda dos interesses de todos, pois, só assim, o interesse público se realiza.
Entretanto, qualquer avaliação terá de passar por um revisitar ao caderno de encargos. Há um ponto nesse documento e que depois foi retomado no contrato de concessão, concernente ao plano de investimento da concessionária. A cláusula em causa diz e citamos que o “Plano de Investimentos, contendo a identificação e descrição da totalidade dos investimentos a efetuar durante a Concessão, nomeadamente com a aquisição de navios, a indicação das datas previsíveis de aquisição, a origem do imobilizado, e o custo unitário e total do investimento”. Pois bem, esse plano de investimento é um dos itens constantes do caderno de encargos, o qual teria de ser entregue juntamente com a candidatura ao concurso de concessão. No entanto, por desconhecer esse plano de investimento, bem como os montantes a que a empresa concessionária se comprometeu a mobilizar e a aplicar, fica-nos difícil de fazer um juízo criterioso e uma avaliação sustentada em evidências da capacidade da concessionária em realizar investimentos a que se comprometeu.
Contudo, a introdução de algumas cláusulas, através da adenda recentemente aprovada, sugere que a concessionária está longe de poder cumprir com o seu plano de investimento, porque só assim explica a necessidade e a emergência de cláusulas como o nº 2 da cláusula 8ª (O Concedente compromete-se a prestar anualmente ao Concessionário as garantias necessárias para a obtenção de financiamento junto das instituições bancárias nacionais), o nº 1 da cláusula 20ª (O pagamento das indemnizações compensatórias é efetuado através de adiantamentos por conta da indemnização do ano a que diz respeito), ou nº 1 da cláusula técnica 8ª (O presente Aditamento é transitório, vigorando até à introdução de novos navios na concessão pelo Estado de Cabo Verde e/ou o Concessionário, a partir da qual os modelos operacional e económico e financeiro serão ajustados). Estas cláusulas adicionais dão a entender que o plano de investimento da concessionária ou é uma ficção ou simplesmente não é praticável à luz da realidade que se vive hoje.
Assim, fica difícil sustentar a opção pela concessão quando manifestamente o Estado, em vez de se libertar de um problema, passa a gerir dois.
A inabilidade política em gerir situações e processos, às vezes, paga-se caro.
Importa, no entanto, dizer que não é novidade para ninguém, mas especialmente para aqueles que analisam as coisas com alguma seriedade, que os países pobres e que não têm capacidade para financiar o seu desenvolvimento são obrigados, por chamados parceiros do desenvolvimento, a adotar políticas e agendas que muitas vezes não decorrem das suas necessidades e prioridades. A ideia de retirar ou de reduzir a intervenção do Estado na economia a todo custo, sem que haja condições e bases para sustentar tais opções, levam e levaram países a dificuldades bem piores do que tinham antes de encetarem tais políticas.
Essas imposições a que habilmente chamam de reformas, embrulhadas em receitas standard que não respeitam o nível infraestrutural, cultural, organizacional e do capital humano de cada país, condenam todos aqueles que as adotem a viver e conviver com o circulo vicioso da dependência e da replicação das mesmas soluções, facto que exige de todos os países, em tais circunstancias, uma tomada de consciência para, em conjunto, se posicionarem e se libertarem dessas amarras que eternizam o seu subdesenvolvimento.
Os próximos três anos ditarão o que será o futuro em matéria de transportes marítimos em Cabo Verde, e oxalá que as nuvens negras no horizonte se dissipam e as profecias anunciadas não se cumpram para o bem de Cabo Verde.
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