
Criticar, atacar ou tentar travar determinados protagonistas pode produzir exatamente o efeito contrário ao pretendido. Esta análise não é uma defesa nem um ataque. É uma leitura fria do momento político. A justiça seguirá o seu curso. A política seguirá o seu. E o eleitorado, esse, continuará a decidir muito mais com base na emoção, na narrativa e na perceção do que nos autos processuais. É esse, gostemos ou não, o tempo político em que vivemos.
As recentes buscas realizadas na Câmara Municipal da Praia suscitaram um intenso debate público, político e mediático. Do ponto de vista judicial, há um princípio essencial a ter em conta: os factos estão sob investigação e o desfecho é, à data de hoje, desconhecido. A justiça tem o seu tempo próprio, os seus métodos e as suas responsabilidades. Que investigue, apure os factos e, no momento devido, preste contas à sociedade cabo-verdiana. Estamos num Estado de Direito Democrático. Qualquer exercício de antecipação judicial ou condenação prévia seria intelectualmente desonesto e institucionalmente perigoso.
Mas é perfeitamente legítimo, e até necessário, analisar esta situação do ponto de vista político. Não no plano da culpa ou da inocência, mas no plano das consequências políticas que dela podem advir.
Existe uma perceção generalizada de que este episódio poderá prejudicar politicamente Francisco Carvalho. A história recente demonstra que essa leitura é, no mínimo, discutível. Não é a primeira vez que o atual presidente da Câmara Municipal da Praia enfrenta situações de forte exposição mediática associadas a conflitos institucionais ou políticos, incluindo episódios ocorridos no contexto das eleições internas do próprio partido que hoje dirige.
O tempo da justiça não é o tempo da política. No entanto, a confusão entre estes dois tempos, ou a sua sobreposição mediática, tem, paradoxalmente, favorecido Francisco Carvalho. Em vez de o fragilizar, estas situações têm contribuído para reforçar a sua visibilidade, a sua notoriedade e, em certos segmentos do eleitorado, a sua empatia.
Não se trata de prever resultados eleitorais. Mas é legítimo afirmar que 2026 será um ano politicamente imprevisível em Cabo Verde.
Num ciclo político global marcado pela valorização da emoção sobre a razão, da narrativa sobre o detalhe técnico e da comunicação sobre a governação, situações como esta tendem a gerar capital político para quem as sabe comunicar. A “vitimização”, quando bem trabalhada, mantém o protagonista no centro da agenda mediática, aumenta o reconhecimento público e cria laços emocionais com segmentos do eleitorado que pouco dominam os meandros institucionais da política.
Francisco Carvalho conhece bem este eleitorado. A classe política cabo-verdiana, no geral, conhece-o. Não são ingénuos. Estamos perante um eleitorado que, em larga medida, reage com empatia, pena ou solidariedade quando percebe que uma figura política está sob “ataque recorrente”. Mesmo quando os factos são graves, a emoção tende a sobrepor-se à análise racional.
Neste contexto, a narrativa do “estão a tentar travar-me”, “estão a atacar-me por todos os lados” funciona como uma macronarrativa poderosa. Ela não precisa de ser verdadeira ou falsa para ser eficaz; precisa apenas de ser emocionalmente convincente.
O encerramento temporário dos serviços municipais, por exemplo, não deve ser analisado apenas como um ato administrativo ou de segurança. Em política, os gestos também comunicam. Ao criar uma espécie de “estado de exceção simbólico”, a mensagem difunde-se rapidamente, sobretudo em espaços como mercados municipais e zonas de grande circulação popular. Na ausência imediata de contraditório, é essa narrativa que se instala, se repete e se consolida.
Quando a outra versão surge, muitas vezes já é tarde. A mensagem inicial já percorreu a ilha, o país e as redes sociais.
É também impossível dissociar este fenómeno da forma como hoje se faz política no mundo. O que acontece fora chega, mais cedo ou mais tarde, a Cabo Verde. A ascensão de forças políticas que foram alvo de tentativas de bloqueio institucional ou mediático, da direita radical à direita populista, mostra um padrão claro: o bloqueio reforça, em vez de enfraquecer.
Casos como os de Giorgia Meloni, Marine Le Pen, André Ventura, Donald Trump, Jair Bolsonaro, Nigel Farage, Santiago Abascal ou Alice Weidel, falam por si. Contextos diferentes, sistemas distintos, mas um denominador comum: eleitorados que se sentem esquecidos, desacreditados e abandonados e que respondem positivamente a discursos que dizem aquilo que muitos gostariam de dizer.
O problema, portanto, já não está em atacar ou tentar neutralizar certos políticos. Está na eficácia da mensagem e da comunicação política. Uma parte significativa das sociedades contemporâneas vive num sentimento de frustração e desilusão, e quem souber interpretar isso ganha espaço.
Em Cabo Verde, este ciclo também se manifesta. Criticar, atacar ou tentar travar determinados protagonistas pode produzir exatamente o efeito contrário ao pretendido.
Esta análise não é uma defesa nem um ataque. É uma leitura fria do momento político. A justiça seguirá o seu curso. A política seguirá o seu. E o eleitorado, esse, continuará a decidir muito mais com base na emoção, na narrativa e na perceção do que nos autos processuais.
É esse, gostemos ou não, o tempo político em que vivemos.
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