
O país anda aos solavancos, a bater nas lombas da estrada, a travar com dificuldade. Avança, mas com o travão pesado, quase a parar. Resiste, e isso não é pouco. Resiste porque há uma memória funda, porque há gente anónima que acorda cedo, trabalha, pensa, educa, cuida, vota, discorda em silêncio e ainda acredita que a coisa pública não é um circo permanente. Vivemos um tempo estranho, em que grandes homens se esquecem de que o são, e outros, que sempre estiveram ativos, já não parecem necessários.
Há quem trate a Constituição como se fosse um sapato elegante:
bonito de ver, mas desconfortável de calçar.
Parece que andamos nisto há pelo menos algum tempo. Talvez mais. Um jogo com barbas ainda por fazer, mas, a gastar, de gato e rato, em que já não se distingue quem corre e quem finge correr. Há sempre os mesmos aqueles que guardaram a Constituição de 1991 como quem guarda um cofre, não para o abrir, mas para saber onde está a chave. Estiveram sempre ali. Viram tudo. Analisaram tudo. Previram cenários, ensaiaram provocações, testaram limites. Não nasceram agora. A diferença é que, agora, têm voz. E mais grave ainda: têm acesso directo à voz, amplificada por lideranças que confundem ruído com razão.
Ao longo do tempo, foram desgastando as instituições do Estado, não por confronto aberto, mas por erosão lenta, quase invisível. Apresentam-se, paradoxalmente, como heróis, heróis de um Estado que eles próprios descrevem como incompleto, falho, defeituoso. São minuciosos nos detalhes do discurso, há que reconhecê-lo. Lapidam frases, insinuam falhas, sugerem abismos. Ludibriam com método. Pagam quando é preciso pagar. Seduzem quando convém seduzir.
Alguns deles carregam um argumento moral, faktual, científica e difícil de desmontar: dizem ter formado milhares de estudantes, cidadãos com capacidades, quadros preparados. E é verdade. Mas ficam depois à distância, de braços cruzados, em cima do muro, a observar. Esperam. Se passa um capitalista exaltado a gritar “viva a democracia”, avançam. Se o vento muda, recuam. A democracia, para eles, é muitas vezes um palco, nunca uma casa. Isto é um atraso para a democracia e para o país. Um atraso disfarçado de zelo.
Um retrocesso vestido de vigilância cívica. Inventaram o slogan cómodo de que “o país está destruído” e repetem-no com fervor. Curiosamente, manifestam-se livremente, usam microfones, plataformas, meios, por vezes até do próprio Estado que dizem destruído. A contradição não os incomoda. Pelo contrário: alimenta-os. Fica a sensação inquietante de que quanto mais caduco o discurso, quanto mais pobre a formação crítica, quanto mais frágil a memória histórica, mais fácil é o engano, mais fértil é o terreno para cultivar apoiantes. Investe-se neles com novas roupagens ideológicas, agressivas, simplistas, eficazes.
Espalham-se boatos, insinuam-se verdades fáceis, lançam-se acusações frágeis, facilmente desmontáveis, mas não importa. A fidelidade não depende da verdade, depende do favor recebido. O problema maior é que acreditaram. Acreditaram profundamente. E esse osso feroz não larga. É um sono necessário, um engano confortável, uma anestesia da consciência. O conhecimento foi sendo substituído por uma ignorância densa, segura de si, militante. Não leem. E quando leem, não acreditam. Ou, se acreditam por um instante, preferem a lealdade a quem um dia lhes fez um grande favor.
E o país? Meu Deus, e o país.
O país anda aos solavancos, a bater nas lombas da estrada, a travar com dificuldade. Avança, mas com o travão pesado, quase a parar. Resiste, e isso não é pouco. Resiste porque há uma memória funda, porque há gente anónima que acorda cedo, trabalha, pensa, educa, cuida, vota, discorda em silêncio e ainda acredita que a coisa pública não é um circo permanente. Vivemos um tempo estranho, em que grandes homens se esquecem de que o são, e outros, que sempre estiveram ativos, já não parecem necessários.
O triunfo do ridículo, do raso, do simplório, do barulho vazio chegou há muito, e ganhou voz, palco e algum cutelo. Ainda pouco, é certo. Mas suficiente para ferir. Se isto chegar ao plano nacional, se o ruído vencer definitivamente o pensamento, então talvez tenhamos de começar de novo. Não por gosto, mas por necessidade. Uma nova independência, não contra um império estrangeiro, mas contra a erosão interna. Uma nova democracia, menos retórica, mais ética. Uma nova forma de nos olharmos nos olhos, e de olharmos para as pontas dos dedos, onde tudo começa todas as manhãs: o trabalho, o cuidado, a responsabilidade.
Este não é um texto contra ninguém. É um aviso. Um alerta sereno, mas firme. Porque as nações não caem apenas com golpes. Caem democraticamente, também, e caem, sobretudo, quando deixam de Ler e pensar.
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Comentários
José Lima Borges, 16 de Dez de 2025
Um recado com teor de chamada de atenção. Quem entendeu é porque leu, quem leu e não entendeu, é porque não leu com atenção, porque não quer entender ou na pior das hipóteses porque não consegue entender. O país previsa de mais opiniões/konsedjus num tom mais suave e sem qualquer cor associada.
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