Pirinha, filme da realizadora caboverdiana Natasha Craveiro, cujo título remete a um doce da infância da cineasta, traz em seu título toda a pureza, suavidade e alegria que deveriam, em tese, permear o universo infantil. Contudo, a obra acaba por desvelar uma história trágica na vida da personagem principal, que é a violência sexual. Trata-se de um documentário ficcional que nos arrebata pela forma poética com que consegue contar uma história de dor profunda, mas também de cura, e isso emociona ainda mais.
Durante o filme, somos levadas(os) a pegar na mão da menina e, junto com ela, caminhar pelo seu subconsciente, mergulhar no seu interior mais profundo, nas suas dolorosas memórias, na sua psique ferida. Durante o percurso, descobrimos seus fantasmas e percebemos, assim como ela, que eles não são tão amedrontadores assim. Nessa trilha de autoconhecimento e busca de unguentos para aplacar a dor do abuso sofrido, deparamo-nos com a forte, iluminada e curativa presença da sua avó, que não só traduz como personifica a luz no fim do túnel, a alternativa para cura de traumas , amadurecimento e reconstrução interior. É impossível, sobretudo para nós mulheres, contermos as lágrimas e não nos emocionarmos e identificarmos com a relação entre a neta e a avó.
A narrativa tocante sobre o cuidado da mais velha com a neta, em conjunto com os recursos estilísticos de som, fotografia, escolha de locações e texto, pacientemente costurados por mãos femininas, envolvem a matriarca numa aura divina, aproximando-a da figura de uma deusa que conhece as medicinas, os unguentos, os tratamentos que curam corpo e alma e libertam da escravização do trauma. Pessoas negras e indígenas têm recorrido ao longo de toda sua história à essa potência dos saberes ancestrais, à cura que vem da natureza, da relação mais íntima entre nós e todas as outras formas de vida humana e não-humana no planeta.
Povos africanos, indígenas, asiáticos, afroameríndios vêm, há tempos, apontando para a necessidade de rompermos com a lógica ocidental da utilização de recursos da natureza como mera forma de exploração econômica e lucro, e da supervalorização dos saberes ditos científicos em detrimento e desvalorização dos saberes feitos da experiência vivida, os quais se encontram, sobretudo, resguardados pelas pessoas mais velhas da comunidade. O ocidente capitalista vem dessacralizando a relação entre nós e a natureza.
Pirinha, contudo, na contramão dessa lógica destrutiva e desenraizadora, ao representar a relação sagrada da ancestralidade e da união feminina, revelada no cuidado entre mulheres de gerações diferentes, no partilhar de saberes, de ervas medicinais, de práticas de autocuidado, afeto, escuta atenta e terapias milenares, no contato com as histórias da tradição oral, leva a(o) espectadora(or) a rememorar sua condição humana, suas relações familiares, por meio da presença das mulheres potentes e sábias que sempre ensinaram o bem viver.
A poesia da narrativa e das imagens, delicadas, porém cortantes e profundas, transcende dimensões espirituais e temporais para levar quem assiste ao longa-metragem a um estado de reflexão e de reencontro com a ancestralidade, com o sagrado feminino e com os arquétipos atemporais das mulheres deusas, sábias, bruxas, que conhecem caminhos de cura e são generosas em partilhá-los com a comunidade. Os elementos estéticos da obra cinematográfica levam-nos a um ambiente memorialístico, em que predominam a presença da oralidade, das lendas, das lembranças e da sabedoria das mulheres mais velhas, partilhadas em momentos simples e cotidianos, como num café-da manhã, feito com o saboroso amor de vó, ou no trançar dos cabelos e nas conversas que instruem, divertem e encantam a mais jovem.
A figura da avó aproxima-se muito das Yabás, termo Iorubá que significa mãe-rainha, e que se refere às orixás femininas, ou às mulheres que cuidam de outras mulheres, que educam, ensinam, fortalecem e inspiram. A avó é, portanto, apresentada como aquela que conhece todas as coisas do passado e do futuro, aquela cujos rituais e sabedoria têm poder de ofertar crescimento espiritual, renovação de forças, em suma, levam à cura. O contato com os ensinamentos da mais velha levam à possibilidade daquela menina assustada, ferida e doente prosseguir a vida, levantar dos escombros, refazer-se e caminhar rumo a um futuro risonho, apesar das dores. O filme, narrado em kriolu kabuverdianu, o que diz muito de sua força e originalidade, pois a língua materna é a identidade mor de um povo, é aquela forma mais radical e autêntica que ele tem para expressar o seu pensar-sentir no mundo, desnuda a potência do ser que, ferido, é capaz de transpor barreiras, que parecem instransponíveis, em busca do seu renascimento e da sua potência.
A obra, premiada e selecionada para vários festivais internacionais de cinema, mostra que, quando estamos diante dos traumas, pensamos haver uma total contradição entre a ferida e a cura, mas que é justamente na ferida, na dor, na doença, que encontramos a possibilidade da cura, pois, ao lembrar que dói, buscamos o diagnóstico e os tratamentos físicos e espirituais que podem nos libertar. Pirinha é, portanto, uma ode ao sagrado feminino, um louvor ao poder, conhecimento inteligência e à força suprema das mulheres, das Yabás, que cuidam umas das outras e amenizam as dores do mundo. Pirinha é um grito que evoca libertação, cuidado e amor pelas meninas e mulheres de todo o planeta.
**Renálide Carvalho é atriz, escritora e educadora negra brasileira, doutoranda em Cabo Verde, como bolsista do Ministério da Igualdade Racial do Brasil.
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