Os analistas políticos e estudiosos de Amílcar Cabral Daniel Santos e Abel Djassi Amado consideram que o legado de Amílcar Cabral, falecido há 51 anos, não está bem disseminado na sociedade cabo-verdiana.
Em conversa com a Inforpress, a propósito do 20 de Janeiro, data em que se assinala mais um aniversário da morte do considerado Herói Nacional, esses dois professores universitários com artigos e livro publicados sobre o pensamento de Amílcar Cabral, apresentam, entretanto, argumentos diferentes para sustentar as suas posições.
Daniel Santos afirma que esse legado de Amílcar Cabral tem sido “imposto aos cabo-verdianos numa perspectiva, pura e simplesmente, ideológica, sagrada, doutrinária e dogmática”, o que, na sua perspectiva, não é a via mais correcta.
“Subjacente a esta orientação está a ideia de tornar cada cabo-verdiano um Cabral, tarefa que se tem mostrado inexequível. Foi um político, com virtudes e defeitos, cujo legado deve ser visto no contexto em que o produziu e deixou. Apresentá-lo numa óptica panegírica não é atitude acertada”, disse Daniel dos Santos, para quem, “apesar de ser uma grande figura nacional, Cabral nunca foi pai da nacionalidade cabo-verdiana e nem figura de Estado”.
O autor do livro “Amílcar Cabral: um outro olhar” realça o facto de Cabral, enquanto político, não ser consensual em Cabo Verde, nem na Guiné – Bissau e no próprio PAIGC, partido que fundou.
Por seu lado, o professor associado de Ciência Política na Simmons University de Boston, Abel Djassi Amado, admite igualmente que Cabral não é consensual, e fala inclusive de três narrativas sobre Cabral em Cabo Verde, nomeadamente a de fraude, a de ícone e a de teórico.
Entretanto, lamenta que uma figura como Cabral, que é “altamente respeitada e estudada nas grandes escolas e universidades no mundo inteiro”, não encontre lugar nos currículos escolares em Cabo Verde.
“Cabral enquanto teórico não é seriamente estudado em Cabo Verde. Nas escolas primárias ou até nas escolas secundárias, pode-se até mencionar Cabral, mas não existe uma preocupação de analisar, de fazer com que os alunos analisem e estudem alguns dos escritos de Cabral. Se formos a qualquer Estado moderno, há uma preocupação do Estado moderno em fazer crescer as ideias políticas indígenas, as ideias políticas nacionais”, sustentou Abel Djassi, argumentando que estudar Cabral não significa que a pessoa vai-se tornar num cabralista.
Os dois professores universitários estão de acordo de que a contribuição de Cabral para Independência é inegável, mas divergem em relação ao enquadramento das suas ideias e dos seus pensamentos nos valores da democracia enraizados hoje em Cabo Verde.
Daniel Santos é categórico em afirmar que em termos políticos, ideológicos e económicos, por exemplo, as ideias de Cabral não se aplicam presentemente a Cabo Verde, acrescentando que o arquipélago de hoje não é o pensado por Cabral, sob a égide de um partido único.
“Temos, hoje, um regime político democrático, que está nos antípodas do idealizado por Cabral, que foi, basta ler os seus livros, o principal animador espiritual do monopartidarismo em Cabo Verde. Cabral foi o ideólogo, o pai, o mentor do partido único. Ele próprio o assumiu, bastas vezes. No plano económico, Cabo Verde é uma economia social de mercado, enquanto Cabral era adepto da economia planificada”, explicou
Já Abel Djassi Amado contrapõe, citando como exemplo o primeiro documento escrito por Cabral no ano de 1960 e emitido pelo PAIGC e que incluía, conforme avançou, eleições multipartidárias.
“Cabral admitia que o centro da política seria o Parlamento. Olha, isso é o princípio-chave da democracia liberal. E ele, desde a primeira hora, disse, claramente, que o processo político pós-independência teria de se basear no Parlamento, o que se chamou de uma assembleia nacional popular”, exemplificou.
Abel Djassi afirma que é preciso levar em consideração que Cabral nunca foi um “dogmático” e mesmo a nível económico adianta que há vestígios do marxismo no seu pensamento, mas que existem também vestígios do liberalismo ocidental.
“Portanto, se pudéssemos de uma maneira ou outra trazer Cabral para os dias de hoje o mais natural é que primeiro o que ele faria seria tentar entender a realidade concreta de Cabo Verde nos dias de hoje. Agora, falar que Cabral não coaduna com o que se vive em Cabo Verde, eu acho que é um entendimento muito superficial, tanto das ideias políticas dele como da sua própria história”, acrescentou.
No que se refere ao chumbo da resolução para celebração oficial do Centenário do Nascimento de Amílcar Cabral, Daniel Santos considera que é entendível o posicionamento do partido da maioria, o MpD, que acabou por rejeitar a proposta que foi apresentada pelo PAICV (oposição), uma vez que o MpD tem uma doutrina contrária à de Cabral.
Abel Djassi Amado, por seu lado, lamentou o sucedido e alertou que é preciso entender que Amílcar Cabral é um património de Cabo Verde, do continente africano e da humanidade, que vai muito além do PAICV.
Amílcar Cabral nasceu a 12 de Setembro de 1924, em Bafatá, Guiné-Bissau, filho de Juvenal Cabral e Iva Pinhel Évora. Cabral foi poeta, agrónomo, e considerado “pai” da independência conjunta de Cabo Verde a 5 Julho de 1975 e Guiné-Bissau oficialmente a 10 Setembro de 1974.
A 20 de Janeiro de 1973, o fundador do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) foi assassinado na Guiné-Conacri, a oito meses da declaração, de forma unilateral, da independência da Guiné-Bissau.
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