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Cabo Verde nomeia arguido já acusado e sob TIR como embaixador
Sociedade

Cabo Verde nomeia arguido já acusado e sob TIR como embaixador

Francisco Tavares está acusado de, enquanto presidente da Mesa da Assembleia Geral da ADS, ter tomado decisões ilegais que lesaram esta empresa pública em avultadas quantias, tendo sido, por isso, colocado sob Termo de Identidade e Residência. Mesmo assim, o ex-autarca de Santa Catarina foi nomeado embaixador, o que, para certos observadores, é "grave, escandaloso e absurdo", porquanto "desautoriza o Ministério Público, humilha a classe dos diplomatas e envergonha Cabo Verde no concerto das Nações"

A nomeação de Francisco Tavares como embaixador de Cabo Verde na Nigéria não choca apenas por ser mais um político que é enviado em missão no exterior em detrimento dos diplomatas de carreira. Pior do que isso, o Governo, que indicou, e o presidente da República que o nomeou, apostam em alguém que está sob TIR e já acusado pelo Ministério Público por crimes contra o próprio Estado.

Esse processo, que aguarda julgamento, é referente ao polémico caso dos desvios de dinheiro na ADS, onde Francisco Tavares era presidente da Mesa da Assembleia Geral quando ainda era presidente da Câmara Municipal de Santa Catarina. Tavares é acusado de ter agido "livre, conscientemente e com grave violação dos deveres que lhe incumbem, com intenção concretizada de causar prejuízo patrimonial importante" à empresa intermunicipal responsável pela distribuição de água na ilha de Santiago.

De acordo com o despacho de acusação nº167/2018/2019, da Procuradoria da República da Comarca de Santa Catarina, o já nomeado embaixador de Cabo Verde na Nigéria celebrou contratos de gestão "fixando salários e outras regalias aos administradores fora do quadro legal permitido, abusando dos seus poderes enquanto presidente da Mesa da Assembleia Geral da ADS e ainda comparticipou na apropriação dos montantes de subsídio de alimentação pelos demais co-arguidos", no caso os ex-membros do Conselho de Administração, José António Pinto Monteiro, que presidia, Floresvindo Barbosa e Vital Tavares, este último irmão de Francisco Tavares.

Todos eles foram colocados sob TIR, com o detalhe de Francisco Tavares, José António Pinto Monteiro e Floresvindo Barbosa já estavam nessa condição, ou seja, sob Termo de Identidade de Residência, desde a fase de instrução do processo, razão pela qual o despacho que deduziu acusação contra eles reforçou essa medida de coação por "acautelar suficientemente os perigos existentes para o derenrolar do processo até à decição da prolação final, por conseguinte deverão aguardar os ulteriores trâmites do processo na situação em que se encontram".

Na acusação, o Ministério Público não pediu nenhuma indemnização, sugerindo que essa iniciativa, de acordo com os estatutos da AdS, deve partir do seu conselho de Administração, enquanto queixoso, no sentido de requerer a devolução de milhares de contos de prejuízos.

Francisco Tavares, note-se, tem contra si um crime de infidelidade (perevisto art 220 nº 2 do CPP punido com pena de até 4 anos de prisão), um crime peculato (art 366º do CPP e punido com pena até 8 anos de prisão) e um crime de abuso de poder (previsto no art 372º-a do CPP e punido com pena de até 3 anos de prisão), que em cúmulo abstractio máximo de penas, dá um total de 15 anos de cadeia.

Na opinião de analistas contactados por Santiago Magazine "é escandalosa, absurda e gravíssima a nomeação de um arguido já acusado pelo Ministério Público e submetido ao TIR, num processo interposto pelo Estado por danos causados ao património público, como embaixador". "Para já, essa nomeação desautoriza a própria Procuradoria da República e acaba por humilhar fortemente a classe dos diplomatas de carreira, ou seja, é como se Cabo Verde não tivesse mais ninguém para indicar e fosse obrigado a escolher uma personalidade política com tal ficha", comenta um jurista.

Segundo ele, "esta situação não será inédita porque ainda no ano passado, por ocasião do 5 de Julho, o Presidente da República condecorou o advogado Arnaldo Silva pelos seus brilhantes serviços prestados ao país - que nunca se explicou que serviços são esses - estando ele sob investigação por crimes de burla e corrupção na venda de terrenos da Praia, que desembocou na sua detenção. E veja que tanto a nomeação de Francisco Tavares como embaixador quanto a condecoração de Arnaldo Silva tiveram em comum a intervenção do Presidente da República, o garante da Constituição, da legalidade e da integridade moral do Estado. - Um absurdo!"

Crime contra Estado. Nigéria desrespeitada

Perante a gravidade que este assunto encerra, o nosso interlocutor antevê um possível retrocesso nas relações bilaterais com a Nigéria e com os demais países. "A própria Nigéria pode sentir-se desrespeitada e ofendida quando vê o Governo e a Presidência da República de Cabo Verde a nomear como embaixador alguém acusado por crimes contra o seu próprio Estado. E veja que a Nigéria é uma potência africana, não é um país qualquer, de modo que Cabo verde poderá sair muito mal visto pela comunidade internacional quando nomeia para o cargo de embaixador um arguido com processo nas costas por delapidar o património público".

Além disso, acrescenta um jurista, o facto de Francisco Tavares estar sob TIR carece de autorização de saída do país pelo Ministério Público ou pelo Juiz da causa, que reforçou essa medida de coação desde Fevereiro do ano passado. "Pode ser que já tenham feito esse pedido, caso contrário a Procuradoria da República terá de emitir uma ordem de prisão imediata por iminente violação da medida de coação".

"Independentemente de o novo embaixador vier a ser absolvido ou se o processo vier a ser arquivado por prescrição ou absolvição, trata-se de uma situação com consequências imediatas. E Cabo Verde sai muito mal no concerto das nações, porque esta é sem dúvida um motivo de vergonha internacional", considera a mesma fonte, para quem, no extremo, "essa actuação da Presidência da República e do Governo para enviar para fora do país, alguém já acusado por crimes contra o Estado, dificultando a acção da justiça, pode configurar uma espécie de protecção ilícita e ilegal a um arguido, ao ponto de constituir, em tese, o crime de Encobrimento de Crime Público, previsto no nº 2 do Artigo 336º do Código Penal, punido com pena de até três anos de prisão", elucida, para logo acrescentar que “os absurdos em Cabo Verde já passaram a ser norma, a um ponto tal que que as autoridades políticas e judiciais já sequer reagem, mesmo quando colocados perante situações flagrantemente violadoras das leis administrativas e penais vigentes”.

Recorda-se que, para além de Francisco Tavares nomeado para a Nigéria, o Executivo e a Presidência da República já fizeram saber que tencionam nomear ainda José Pedro Chantre de Oliveira para o Brasil, e José Luís Livramento para Embaixador nos Estados Unidos da América, como embaixadores políticos, ou seja, recrutados fora da carreira diplomática.

Caso ADS

O caso dos desvios na Águas de Santiago, denunciado desde o início por este diário digital, atingiu um novo patamar em Fevereiro do ano passado, com o Ministério Público a deduzir acusação contra Francisco Tavares, Vital Tavares, José António Pinto Monteiro e Floresvindo Barbosa.

Entre várias acusações, os administradores da ADS vão a julgamento por gestão danosa, falta de transparência e outros actos financeiros lesivos aos interesses da empresa (em milhares de contos), situações que já constavam do relatório da Inspecção Geral de Finanças, cujo conteúdo foi noticiado em primeira mão por este diário digital.

Por exemplo, Vital Fernandes Tavares e Floresvindo Barbosa mandaram transferir um total de 3 mil 240 contos para as suas contas pessoais mesmo antes de deixarem o conselho de administração. Além disso, celebraram contratos de empreitadas sem concurso e aumentaram seus subsídios de renda e alimentação, em muitos casos com comparticipação do ex-presidente da CM de Santa Catarina e ex.presidente da Mesa da AG da AdS, Francisco Tavares.

Para chegar a esses factos, o MP apresenta várias provas documentais além dos testemunhos do director financeiro da AdS e do actual presidente da CM de Santa Catarina e presidente da Mesa da AG, Beto Alves.

Recorde-se que o antigo Conselho de Administração da AdS, constituído por José António Pinto Monteiro, veterinário, que preside, e pelos administradores José Floresvindo Barbosa, economista, e Vital Fernandes Tavares, geógrafo, foi demitido em 2018, dois anos após iniciar funções, e substituída por uma nova encabeçada pelo gestor Olívio Ribeiro, depois que rebentou o escândalo financeiro na empresa.

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Redação