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A farsa destinada a São Vicente
Ponto de Vista

A farsa destinada a São Vicente

Na passada sexta-feira do presente mês, foi aprovada a proposta de lei que institui a Zona Económica Especial marítima em São Vicente. Revelou-se a união dos partidos da ordem burguesa. Gregos e Troianos se abraçaram, em interesse ao Capital. Com 36 votos a favor do MPD, 24 do PAICV, dois votos da UCID, e uma abstenção do senhor José Maria Veiga, o beijo Lamourette foi dado. A farsa desenvolvimentista foi aprovada com sucesso. Segundo o distinto deputado João Gomes, o Governo apresenta ao país e ao mundo!, uma visão "diferente, algo completamente novo"!

Talvez o notável deputado do MPD ficasse chocado, tanto quanto nós ao ler a sua declaração, se lhe fizéssemos saber que tampouco o país, quanto mais o mundo, desconhecem tais Zonas Económicas Especiais como o último requinte da Economia.

O que será feito do conceito de novo, do ilustre deputado, se lhe mostrarmos que tais Zonas já tinham ganhado legitimidade na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, na década de 80 do século passado?

O que faremos da concepção de diferente, do ilustríssimo deputado, ao saber que já na primeira década do ano 2000, países africanos como a Zâmbia, Nigéria, Egito, Etiópia, Ilhas Maurícias e Argélia, possuíam as mesmíssimas Zonas?

Se fosse apenas uma questão de semântica, nós lhe perdoaríamos o discurso.

Mas existe algo mais, há um lado sombrio na nova proposta de lei, que os ilustres deputados não ousam debater na casa parlamentar. O que não é dito, é que tais Zonas Econômicas agravam a exploração do trabalhador cabo-verdiano. O que não se atrevem a dizer, é que São Vicente será palco com esta medida, de uma enorme precarização do trabalho.

Os arautos da nova proposta de lei, advogam que com esta medida, Cabo Verde estará dando um passo em direção ao desenvolvimento, adquirindo uma independência económica. Quanto a nós, pedimos licença ao leitor e a leitora, para demonstrar o quão errônea e nefasta, é esta concepção, dita de forma tão inocente.

Começaremos sendo justos com os injustos, daremos a César o que é de César.

É verdade que as ditas ZEEs, têm por efeito imediato, a criação de empregos. O aumento da empregabilidade constitui o núcleo duro da fábula desenvolvimentista proclamada aos quatro ventos, pelos políticos da ordem. O que os prezados políticos, convenientemente ocultam, é que o crescimento dos postos de trabalho será apenas de curto prazo. Ou seja, este crescimento é de carácter transitório, passageiro. E a longo prazo, as ZEEs, têm por consequência a pauperização da classe trabalhadora. Isso se deve ao facto de que, em todos os países que tiveram as Zonas Económicas Especiais como uma realidade, possuíram como sustentáculo desta política, a mão de obra barata.

E, para que não haja eufemismos, interpretações equivocadas, ou margem para dúvidas, queremos deixar patente que mão de obra barata significa que, o salário imposto ao trabalhador não condiz com o trabalho efectuado por ele. Significa uma remuneração injusta, que apenas engorda a burguesia e emagrece o prato do proletário cabo-verdiano.

A vulnerabilidade da classe trabalhadora cabo-verdiana, causada pelo crescente desemprego, torna o chão fértil para a aceitação de tais condições de exploração. É inteiramente do interesse da classe dominante, a existência de uma mão de obra domesticada, vulnerável e inexperiente em questões sindicais.

Bem, o que isto tudo quer dizer?

Quer dizer apenas que, os notáveis políticos da ordem burguesa, anunciam e oferecem com toda pompa, empregos que eles mesmos, nem na sua terceira encarnação se sujeitariam.

Vamos aos factos, a ZEE do Madagáscar, sofreu a perda de dez mil postos de trabalho. Nas ZEEs do Bangladesh, República Dominicana, Nigéria, Paquistão, Panamá, Sri Lanka e Egipto, verificou-se restrições na liberdade de associação entre os trabalhadores. Observou-se supressões do direito à greve e intimidação dos trabalhadores na Namíbia, Zimbábue, Nigéria, Panamá e Turquia. Constatou-se a falta de cumprimento da legislação laboral nacional nas Zonas Económicas Especiais, no Sudão e na República do Irão.

Alguns países para envernizar a natureza exploratória das ZEEs, deram luz à formação de sindicatos controlados pelas próprias empresas. A burguesia de outros países como Filipinas, Singapura e Trindade e Tobago, foram bem mais longe ao tentar manter as aparências, e colocaram alguns sindicatos nos conselhos das respectivas empresas. A discriminação de gênero nas ZEEs, é algo notório, especialmente em termos de pagamento desigual, e não cumprimento dos direitos da gravidez. Havendo demissões forçadas quando as mulheres atingem o quarto mês de gravidez.

E por fim, ao contrário dos ilustres deputados da casa parlamentar, não consideramos os cidadãos cabo-verdianos como uma massa desorganizada, ingênua, desprovida de senso crítico e propensa a engolir sem mastigar, tudo o que lhes é dito. Reconhecemos nos cidadãos da República, sujeitos atuantes e transformadores da sua própria realidade. Dotados de raciocínio crítico e prática revolucionária.

Por isso, é do nosso desejo, que ao ler, o leitor e a leitora, questionem cada parágrafo, reflitam criticamente sobre cada frase e pesem cada palavra por nós proferida.

É também, do nosso inteiro desejo, dar a conhecer a classe trabalhadora cabo-verdiana, o chão teórico em que este texto floresceu e se fundamentou.

Os documentos utilizados foram: Impact of Special Economic Zones on Employment, Poverty and Human Development (AGGARWAL, 2007); Special Economic Zones: Performance, Lessons Learned, and Implications for Zone Development (FIAS, 2008); Special Economic Zones in Africa: Political Economy Challenges and Solutions (FAROLEa; MOBERG, 2017).

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Redação