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Habitação. A vida que há entre a realidade e as estatísticas
Colunista

Habitação. A vida que há entre a realidade e as estatísticas

Persiste na sociedade caboverdeana uma tendência para a negação da importância de se olhar para os problemas sociais como factos irremediavelmente interligados. Enquanto se assiste à elevação de narrativas, umas ingenuamente honestas, outras deliberadamente manipuladoras, de olhar para os problemas um de cada vez, dando corpo a uma separação meramente fictícia e interesseira. Este artigo é também sobre essa inegável interligação social.

1. Maria Varela, chamemos-lhe assim para preservar a sua identidade, disse que a sua vida é cheia de datas importantes, mas havia três que, pelas suas enormes cargas emocionais, ela considerava como as mais marcantes da vida dela. Uma foi quando disse sim ao Beto, amor da sua vida, começa por explicar, e uma outra, foi o dia em que recebeu das mãos do governo as chaves do seu apartamento no conjunto Casa para Todos, na localidade de São Pedro. Este dia em que tocou nessas chaves ganhou o direito de ficar para sempre ao lado de mais duas outras datas. São os aniversários da mãe e da filha Bia. Ela diz que há anos que apagou da sua memória a data de início do namoro com o Beto, pois passou a ser mãe solteira para sempre. Só que o abandono do Beto atira a Maria para as estatísticas das 40%[i] de crianças que crescem só com a mãe, sem a presença e quase nenhuma colaboração do pai. Uma primeira barreira para a Maria no seu caminho do sonho de ter casa;

2. Nos seus 28 anos de vida, Maria Varela, nunca teve um mês de trabalho fixo, não sabe o significado da palavra “contrato laboral”, e a única coisa que tem de um banco comercial é uma velha e um pouco carcomida caderneta bancária de uma conta aberta há dez anos, na altura em que o irmão lhe enviou 100 euros para enfrentar a mudança, em êxodo rural, de Picos para a Praia. Foi assim que Maria contribuiu para o aumento da população da Praia que cresce cerca de 19% nos primeiros dez anos deste século XXI, passando de 106.348 habitantes em 2000[ii], para 131.719 residentes, em 2010[iii] e 170.236 habitantes nas projeções para 2030[iv]. Sem um contrato de trabalho, Maria entra nas estatísticas de 62.5%[v] de mulheres que engrossam o setor informal em Cabo Verde, quase a totalidade em regime de autoemprego (88.9%), com um rendimento mensal 29.5%[vi] a menos que os homens que também atuam no setor. São, de uma assentada, mais duas barreiras terríveis para a Maria nesse caminho do sonho de ter casa: não tem contrato para pedir um crédito e não tem rendimento a ponto de ter suficiente dinheiro nas mãos para investir numa casa;

3. Maria Varela, chamemos-lhe assim, relembra o rosário de sofrimentos atravessado na sua vida, a vergonha que sentia com os atrasos da renda de cinco mil escudos mensais, paga para apenas um quarto, sala de visita de dia, quarto de dormir à noite e cozinha durante o tempo inteiro. Casa de banho era comum com mais seis “rendeiros”. Envergonhada, confessa as vezes que teve de se aliviar pelo caminho, com o receio de chegar em casa e encontrar a casa de banho ocupada e uma fila de reservas impossível de aguentar. Desde que chegou à Praia, todos os dias teve de sair de casa para ganhar o sustento para o próprio dia. É esta a quarta barreira nesse caminho do sonho de ter casa: esta vida que não permite poupanças;

4. Por isso, confessa a dor que sente na alma cada vez que houve alguém a deitar abaixo o sonho que foi o projeto Casa Para Todos. “Dá-me uma revolta, ta dan um nervu des, ki nhu ka sabi”, atira, enquanto semicerra os olhos e franze os lábios com uma firmeza que provoca um arrepio na espinha. “Inda pur sima es pasa um mandatu interu ku portas tudu fitxadu! És ka tem kurason! És é runhu. Só quem nunca passou por nenhuma dificuldade na vida, nasceu num berço de ouro, pode desprezar o Casa Para Todos”, remata, levantando os olhos em direção à janela;

5. Enquanto isso, vai surgindo, aqui e ali, um discurso de que o problema de acesso à habitação na cidade da Praia pode ser resolvido apenas e somente com base na “lei e na ordem”, recorrendo-se ao chicote e ao castigo para os coitados. Sabia que é a própria lei que é cirurgicamente esquecida quando se trata da violação com as construções dentro da orla marítima? À beira mar, a violação da lei já é desenvolvimento, justificam os hipócritas. Por isso, a cerca de três meses das eleições autárquicas, o máximo que a Câmara Municipal da Praia consegue fazer é oferecer promessas requentadas de lotes e apresentar mais umas maquetas de acesso à habitação apenas para ludibriar os praienses, confessando a incompetência e total insensibilidade dos últimos três mandatos para criar políticas públicas de habitação à medida da vida e da realidade dos indicadores estatísticos. Só com políticas de habitação seria possível contemplar perfis como este da Maria Varela: agregado familiar monoparental com fraco rendimento mensal; sem contrato de trabalho; sem poupanças, nem capacidade de acesso a crédito bancário. Assim, é fácil imaginar o quanto a decisão da Câmara Municipal da Praia, em acabar com a distribuição de terrenos por aforramento, uma das primeiras medidas tomadas por Ulisses Correia e Silva em 2008 quando ganhou as eleições autárquicas na capital – sem, no entanto, criar nenhuma alternativa – terá contribuído para a situação explosiva a que esta cidade chegou hoje.

[i] Folheto Dia Internacional da Criança, 2019, INE

[ii] Censos 2000, INE

[iii] Censos 2010, INE

[iv] Projeções Demográficas de Cabo Verde, 2010-2030, INE

[v] Inquérito Multiobjectivo Contínuo 2015, Módulo Setor Informal, INE

[vi] Lopes da Silva, Damaris, O Sector informal em Cabo Verde: construindo o perfil da atividade, uma abordagem de género, 2017

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Redação