Uma Soberba Dignidade — Na morte do actor português José Lopes
Cultura

Uma Soberba Dignidade — Na morte do actor português José Lopes

Via-o amiúde no comboio da linha de Sintra. Primeiro, no percurso Lisboa-Sintra, a uma hora em que havia sempre muito pouca gente, quando não éramos os únicos àquela hora da noite. Inevitavelmente, acabámos por começarmos a nos cumprimentarmos sempre que nos cruzávamos na estação de Rinchoa/Rio de Mouro. Depois, no percurso contrário, quando os meus afazeres determinaram que aquelas horas da noite fossem de regresso a casa, e já não de saída.

Nunca fomos de grandes intimidades, pois estava ele sempre embrenhado nas suas leituras, e eu nas minhas, se não leituras, escrita ou tradução. Pressentia-lhe algum desencontro com a vida nos sacos de serapilheira de supermercado, um ou dois, que transportava sempre consigo, e onde lhe adivinhava os pertences duma existência de poiso incerto. Certo dia nos cruzamos num lançamento no Instituto Cervantes, em lisboa, onde ele me soube autor, passando ele a tratar-me pelo nome próprio, sem que eu alguma vez tivesse ficado a saber o dele.

Mesmo pressentindo as suas dificuldades materiais, nunca me ofereci para ajudar no que fosse, temendo ofender essa alta dignidade que ele transpirava. Em meados deste ano fiquei a saber de um complicado processo de divórcio, através da filha Inês, numa noite em que viajando ele de comboio sem bilhete teve que sair na estação de Barcarena para evitar o revisor que se aproximava. A situação compungiu-me de tal forma que fiquei na minha estação de destino com a filha, à espera do próximo comboio onde ele viria, e era o penúltimo. E se fosse o último?

Depois disso, sempre que acontecia virmos no mesmo comboio, ele nas suas lides com as palavras, e eu nas minhas, aguardava por ele para juntos transpormos a cancela da estação. Era tudo o que o meu respeito por aquela desapossada, mas férrea dignidade me permitia fazer.

Nada mais dele sabia ou conhecia.

Nos últimos tempos já não descia na nossa estação, mas seguia rumo a Sintra, o que me fez pensar que tivesse arranjado nova vida ou algum poiso digno. Afinal, estava a viver numa tenda algures num baldio de Sintra. E morreu sem o amparo duma mão, e sem que lhe soubesse o nome. (https://www.dn.pt/cultura/morreu-o-ator-jose-lopes-morreu-sozinho-numa-tenda-onde-vivia-sem-meios-para-se-sustentar-11603616.html)). Era um homem digno, e diz-se que actor de mérito. Que humanidade a nossa! Que a mão da morte lhe tenha sido doce embalo diante das agruras por que todos temos que fazer a penitência.

Rinchoa, 11 de dezembro de 2019.

*José Luiz Tavares, poeta cabo-verdiano, clandestino na ditadura do mundo.

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