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São os nossos próprios governantes os primeiros a rebaixar a língua cabo-verdiana, criando uma falsa hierarquia num sistema axiológico dicotómico
Entrevista

São os nossos próprios governantes os primeiros a rebaixar a língua cabo-verdiana, criando uma falsa hierarquia num sistema axiológico dicotómico

Palavras de José Luiz Tavares, poeta natural do concelho do Tarrafal, ilha de Santiago, afirmando ainda que “é connosco os impenitentemente crioulófonos, nós os resolutamente lusógrafos, que o bilinguismo efectivo trilhará as estradas do futuro”. Confira na íntegra esta entrevista concedida a propósito da sua recente tradução para o crioulo de Ode Marítima, de Álvaro de Campos, um dos heterónimos de Fernando Pessoa.

Santiago Magazine - Como surge a ideia de fazer esta tradução para o crioulo?

José Luiz Tavares - Antes de responder a qualquer questão tenho que fazer esta ressalva prévia: vamos falar em língua cabo-verdiana e não em crioulo. Crioulas, quase todas as línguas o são. Que é o português senão um crioulo do latim? E no entanto, chamámo-lo português, e não língua românica ou novilatina apenas. As línguas têm nomes, e não são indicadas apenas pela família a que pertencem. Isto não as particulariza nem as individualiza.

Posto isto respondo às suas questões.

A ideia surgiu-me logo no início deste milénio, pouco depois da minha estreia em livro, escrito em língua portuguesa, em 2003. Embora eu nunca pensasse escrever em língua cabo-verdiana (aliás tinha enormes reservas mentais), a partir desse livro inaugural pus-me a pensar na razão disso. E a conclusão, pessoal, a partir da minha experiência, e apenas para responder às minhas inquietações, era porque não dispunha de um corpus poético suficientemente apelativo e diversificado que constituísse um modelo suficientemente forte que me atraísse para a escrita poética em língua cabo-verdiana, porquanto, salvo raríssimas excepções, o que existia era de âmbito da oralitura (literatura oral), ou mimetizando os seus temas, códigos e processos. Daí, não tendo eu próprio capacidade para tentar algo diferente (embora escreva em língua cabo-verdiana, não me considerava há até bem pouco escritor nessa língua), formou-se na minha cabeça a ideia de que, no imediato, tal corpus só poderia advir por meio da tradução de obras da literatura universal.

A tradução é feita em que variante?

A tradução é feita na matriz da ilha de Santiago, e cuja estrutura é também a matriz de muitos crioulos antigos, nomeadamente na região do mar caribe, por razão do fluxo escravocrata. Portanto, muito cuidado com certas questões internas regionais que extravasam para o âmbito linguístico, mas que são questões outras, de disputas por outras hegemonias, que não são questões científicas do campo puramente linguístico. Com muita pena minha, não vejo ninguém em Cabo Verde a tentar fazer tal trabalho nas outras variantes usando o alfabeto oficial, que provaria, se tal fosse necessário, que o alfabeto cabo-verdiano dá para escrever todas as variantes, e que estas podem suportar qualquer obra da literatura universal.

 Qual foi o maior desafio ou a maior dificuldade?

A maior dificuldade é não ter um modelo erudito na língua de chegada (já tinha deparado com este obstáculo de forma bem mais aguda aquando da tradução dos sonetos de Camões, dado que as formas fixas requerem ainda uma muito maior plasticidade linguística e sedimentação literária na língua de chegada), e também o tentar distanciar suficientemente o poema traduzido da língua original, para evitar as falsas familiaridades e similitudes, se tomarmos em conta que a base lexical da língua cabo-verdiana é o português, mas a morfossintaxe não tem nada que ver com ele ou com a regência das línguas românicas.

Esta tradução modificou de alguma forma o texto? Qual a diferença entre uma e outra versão?

Qualquer tradução modifica o texto traduzido. É por aquilo que se perde, e por aquilo que, eventualmente, se ganha, que ficamos a conhecer a capacidade do tradutor e se uma tradução é conseguida ou não.

Este foi mais um trabalho que lhe deu prazer ou causou «sofrimento»?

O trabalho de tradução, quanto mais árduo, mais prazeroso, e, nesse caso, não o foi menos ouvir esse grande poema que, ao lado da Canção X de Camões, considero um dos mais instigantes do idioma luso. Dizia, ouvir esse poema ressoar fundo na minha língua materna e língua natural foi compensação suficiente para todos os escolhos e desafios da tradução.

Porquê a Ode Marítima? Que dificuldades se lhe depararam na tradução?

A escolha da Ode Marítima para esta edição particular, é devido à relevância deste poema no quadro do primeiro modernismo português e das suas características que o tornam perfeito para a elaboração duma alta dicção poética em língua cabo-verdiana.

Cada poema e cada poeta colocam questões específicas ao tradutor que ele tem que abordar caso a caso, esquecendo as teorias, embora integrado num sistema que permita reconhecer uma coerência, qualquer que seja a via ou o modelo.

Esta tradução alterou de alguma forma a sua relação com Fernando Pessoa?

Não alterou nada, apenas confirmou o muito que eu já sabia sobre Pessoa (mas que nunca é suficiente ou bastante) e o muito mais que apenas intuía, e o muito mais ainda que não sabia nem saberei.

Que importância atribui à tradução de grandes obras e de grandes escritores, nomeadamente portugueses, para o crioulo? Que impacto antevê?

Não posso antever o impacto imediato ou duradouro de tais traduções. Posso apenas falar do meu propósito, que é a tentativa de constituição de um corpus poético canónico donde amanhã poderão beber ou ter como modelo os pretendentes a poetas em língua cabo-verdiana.

Há outros escritores que gostaria de traduzir ou ver traduzidos?

Gostaria que num momento em que a pressão social para a oficialização plena e em paridade com a língua portuguesa oficializada (que não oficial, que para mim a língua oficial é o cabo-verdiano), ainda que a contragosto da cobardia, da manha, da inconsciência e da actuação negligentemente criminosa dos políticos, o governo do meu país tivesse um programa de enquadramento para a tradução de grandes clássicos doutras línguas. Mas esta deve ser uma ilusão da minha cabeça, porquanto de um governo que eliminou criminosamente os bem sucedidos programas experimentais de ensino bilingue que decorria em diferentes regiões do país, e com perspectivas de serem alargados, esse mesmo governo que quando comunica em cabo-verdianho por escrito fá-lo numa garatuja clandestina violando as suas próprias leis e resoluções soberanas, como eu dizia, de um tal governo nada de positivo, no que concerne à língua cabo-verdiana, se deve esperar. No entanto, os direitos de cidadania linguística, que são direitos humanos básicos, não podem ser postergados ou denegados, sejam quais forem os peões internos e as forças externas que se opõem à dignificação de direito (para ser plena) da língua cabo-verdiana.

Eu tenho o meu projecto particular de tradução para os próximos dez anos. Espero apenas ter força e saúde para o concretizar.

Fala de «peões internos» e «forças externas» que se opõem à dignificação plena da língua cabo-verdiana. Pode concretizar?

Politicamente, vivemos numa espécie de esquizoglossia, isto é, esquizofrenia linguística. Senão vejamos: o mpd, partido que mais terá feito pelo avanço institucional da língua cabo-verdiana, nos seus dois primeiros governos, no início do multipartidarismo em cabo verde, quando passou à oposição bloqueou todas as iniciativas nesse sentido. E quando regressou ao poder praticou, através da ministra de educação de má memória, esse acto de quase glotocídio, que foi a eliminação pura e simples do já citado programa experimental de ensino bilingue, que tão bons frutos dera em portugal, em turmas compostas por alunos de múltiplas proveniências linguísticas, e vinha dando em cabo verde, insofismavelmente.

O paicv, partido que, supostamente, por razões ideológicas, seria mais favorável à oficialização, sempre que esta questão se coloca, é do seu interior que emergem as principais forças de bloqueio, conotadas com certos sectores geograficamente muito bem localizados, sendo um dos seus principais arautos um antigo ministro do regime do partido único, mas não se pasmem, sempre no mesmo jornal afecto à força política contrária, que também não se coíbe de dar voz aos portugueses que acham que ainda mandam em cabo verde, como certa vez um certo senhor Morais Sarmento (quais são os seus pergaminhos em matéria linguística? O que sabe ele da situação linguística particular de cabo verde?) e, mais recentemente, uma historiadora (cujo nome não me recordo agora) que disse coisas gravosas e sem qualquer correspondência com a verdade e, ainda que fossem verdade, em cabo verde deveriam mandar os cabo-verdianos. Não me consta que os cabo-verdianos vão a portugal opinar sobre a política linguística do estado português e onde a língua se encontra num estado bastante lastimável. Será a língua cabo-verdiana a culpada disso? Sobre o jornal ou jornalista que se presta a ser veículo dessas interferências externas, por cumplicidade, omissão ou simples incapacidade de rebater, está tudo dito. A dignidade não tem preço.

Aliás, são os nossos próprios governantes os primeiros a rebaixar a língua cabo-verdiana, criando uma falsa hierarquia num sistema axiológico dicotómico em que num pólo se coloca a língua do intelecto e noutro a língua do afecto e do sentimento. Quando falam do português, falam de língua de cultura, conhecimento e tal, e quando falam do cabo-verdiano falam da língua em que nu ta djata, ta da pedi, koba, sura, ri , ntristise, ligando-a apenas a aspectos fisio-patológicos, em suma, ao pathos, reservando para a outra as funções do nous, do conhecimento intelectual, como se não fosse possível pensar filosofia, matemática, ciência, em cabo-verdiano, tomando de empréstimo as terminologias, como outras línguas, noutros tempos, as foram buscar ao grego e ao latim. Se a academia cabo-verdiana de letras não tivesse sido tomada por um bando de escribas toscos e medíocres, com grandes responsabilidades de gente que cremos séria, poderia ser-lhe acometida a função de autoridade em matéria de língua cabo-verdiana, mas assim como está nem é bom pensar-se nisso.

A minha esperança (não muita, diga-se) é que os dois principais candidatos às próximas eleições presidenciais, que sobre esta questão já tiveram posições muito firmes e claras (em campanha as coisas são diferentes), façam dela o principal ponto do seu programa, pressionando fortemente o governo e chamando à pedra os partidos políticos, no sentido da materialização do que está na constituição e na lei de bases do ensino, cumprindo um dos mais basilares direitos humanos, que é o direito a aprender a língua materna, poder utilizá-la em todas as esferas da vida.

Quanto a este último aspecto, os tribunais cometem todos os dias abuso de poder mandando traduzir depoimentos prestados em língua cabo-verdiana. Pergunta-se: os juízes, procuradores, advogados, não dominam a língua cabo-verdiana? Os cabo-verdianos devem passar a invocar o direito à resistência, não assinando nem reconhecendo como suas declarações prestadas na língua do território, como a define a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos adoptada pela Unesco em 1996, e traduzida por mim para língua cabo-verdiana há dois anos.

Não é com supostas visões de superioridade linguística de gente apegada a um passado que fantasiam glorioso, ou com a intolerância de certos alucinados do futuro que construiremos a pátria plural do bilinguismo. É connosco os impenitentemente crioulófonos, nós os resolutamente lusógrafos, com o nosso espírito bailando entre duas (ou mais) bandeiras linguísticas que o bilinguismo efectivo trilhará as estradas do futuro.

Acha, por exemplo, pertinente ou necessária a tradução de obras de todos os escritores cabo-verdianos para o crioulo?

Acho que é que deve haver condições para que aqueles que se lançam à escrita em língua cabo-verdiana tenham todos os instrumentos possíveis e necessários, que tenham as mesmas armas que aqueles que escrevem noutras línguas.

Um pouco à margem desta tradução, gostaria que me falasse dos projectos em que está trabalhar neste momento e dos próximos lançamentos. Novidades?

Eu prefiro falar de obras publicadas, mas como estamos a falar da língua cabo-verdiana, neste momento estou a finalizar uma grande obra escrita directa e integralmente em língua cabo-verdiana, a primeira que assim escrevo, e que deverá ser editada ainda este verão, com recriações visuais do artista plástico Tchalê Figueira, e que, espero, venha a ser uma bomba política e cultural, e não apenas cloroquina literária, isto é, provocar muita celeuma e não ter nenhum efeito sobre as nossas mazelas nele denunciadas, fundamente ridicularizadas ou increpadas, fazendo jus ao mote latino «ridendo castigat mores», que em cabo-verdiano daria qualquer coisa como «ku txakota ta dadu kabu di mau maskabu». Neste sentido é uma obra de combate que nunca tinha pensado escrever. Pouco haverá de relevante ou inquietante no meu país que não passe pelas páginas desse livro, e que é aflorado um pouco no discurso do político constante da pequena amostra publicada aqui no Santiago Magazine na semana que antecedeu as eleições legislativas.

Também tenho em mãos a tradução e organização duma grande antologia dos poemas de Álvaro de Campos, onde a Ode Marítima terá uma nova versão, e que deverá sair lá para o outono. Assim que a antologia estiver fechada devo avançar para a tradução do Discurso Sobre o Filho da Puta, tão instrutivo e tão actual, do meu velho professor e vivo mestre, Alberto Pimenta, e lá mais para a frente pegar no Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, e ainda retomar a adaptação da Odisseia para cabo-verdiano, que está estagnada há meia dúzia de anos no Canto X. Existem programas de financiamento, mas falta-me um editor que queira concorrer a esses programas. O meu editor actual não tem capacidade para tudo, já faz muito, até mais do que as próprias autoridades competentes do meu país. O que eu consigo fazer é roubado ao tempo de criação da obra própria, nos intervalos da lida para que não faltem o pão e o leite.

Aliás, voltando à inoperância das autoridades do meu país, todas elas, as do passado e as do presente, gostei do vexame que sofreram pela boca de um arrivista estrangeiro, aquando das comemorações do 10 de junho de 2019 em Cabo Verde. Não fossem política e identitariamente descolhoados e não vivessem eles acocorados diante da antiga metrópole, teriam respondido na hora, e contundentemente, que quem manda em Cabo Verde são os cabo-verdianos, e ninguém mais, pese embora alguns dos nossos irmãos não terem ainda descolonizado as suas mentes ou desancorado os seus costados das velhas, mas ainda perniciosas, ilusões luso-tropicalistas.

Em termos de novidades devo anunciar para o próximo ano, ano em que cumpro o meu quinquagésimo quinto aniversário, o meu textamento poético, um terno, se bem que quezilento e sulfuroso texto, escrito durante o primeiro confinamento, em português e traduzido para a língua cabo-verdiana, e que a tal obra que anunciei mais atrás antecipa de certo modo, e às vezes até duma forma mais violenta.

José Luiz Tavares nasceu a 10 de Junho de 1967, na localidade de Chão Bom, concelho do Tarrafal, ilha de Santiago, Cabo Verde. Estudou literatura e filosofia em Portugal onde reside.

Publicou quinze livros entre 2003 e 2021. Recebeu uma dúzia de prémios em Cabo Verde, Portugal, Brasil e Espanha, que o fizeram o escritor cabo-verdiano mais premiado de sempre. Não aceitou nenhuma medalha ou comenda, no seu país ou no estrangeiro, até ao momento. Traduziu Camões e Pessoa para a língua cabo-verdiana.

Trabalhos seus estão traduzidos para inglês, espanhol, francês, alemão, italiano, neerlandês, catalão, letão, finlandês, russo, mandarim e galês.

Sobrevive ao tempo do mundo sem estar conectado a nenhuma rede, social ou outra.

 

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