Roy Job ou a história de um menino de 12 anos "obrigado" a fugir para os EUA
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Roy Job ou a história de um menino de 12 anos "obrigado" a fugir para os EUA

O músico Roy Job "fugiu" do Mindelo para os Estados Unidos, em 1974, aos 12 anos, por causa da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) que o intimou a depor após a execução do seu primo.

Esta história, contou Roy Job à Inforpress, aconteceu depois do dia 25 de Abril, altura em que se despertava o activismo político em São Vicente, sobretudo nos jovens universitários que, na altura, passavam as férias na cidade de Mindelo.

Esta é, com efeito, um dos muitos relatos de cabo-verdianos que foram obrigados ao exílio no exterior como única solução para escapar do regime colonial, que lhes roubava a liberdade de se insurgir contra os abusos que sofriam.

“Estávamos sentados num banco da Praça Nova, nas traseiras do antigo quiosque. Alguns universitários que estavam de férias começaram a incentivar as pessoas a cantar músicas de revolução, então apareceu a PIDE e deteve um rapaz que estava a lavar carros, que não tinha nada a ver com os cânticos de revolução, e isso causou revolta”, detalhou Roy Job.

O jovem, continuou, foi levado para a Esquadra da Polícia, que então se localizava na Rua da Praia, à frente do actual Mercado de Peixe de São Vicente, e os universitários incentivaram toda a gente a ir atrás deles.

Foi então que, acrescentou, ele e o primo Daniel, ambos ainda com 12 anos, seguiram o grupo de jovens até à estação da PIDE, onde começaram a cantar músicas de revolução e a pedir a soltura do rapaz.

“Os policiais entraram na Esquadra e depois saíram já armados e ameaçaram disparar caso não saíssemos de lá. Mas o grupo ficou lá porque acreditavam que não iriam disparar, mas resolveram disparar”, acrescentou a mesma fonte, explicando que os primeiros tiros foram para o ar para dispersar o grupo que saiu a correr.

“Eu e o meu primo saímos a correr juntos e só ouvi a voz dele a dizer ‘jás matam’ [já me mataram, em portugês]. Voltei e não o vi, porque ele caiu na Praia de Bote. Esse acto causou uma revolução enorme em São Vicente porque ele tinha irmãos e familiares que começaram a quebrar tudo”, contou Roy Job.

Nesta sequência, o entrevistado da Inforpress explicou que ele foi implicado nesse imbróglio, porque quando foram para tribunal citaram o nome dele como acompanhante do primo que havia sido morto pela PIDE.

Este facto, conforme o músico, viria a mudar a sua vida, porque os pais, com medo de ver o filho perseguido e ser um novo alvo da PIDE, decidiram fugir com ele para os Estados Unidos da América (EUA).

“Chamaram-me para depor no tribunal e eu tinha cerca de 12 a 13 anos. Ainda era uma criança. A minha mãe foi comigo, mas depois o meu pai disse que não queria que ficasse em Cabo Verde porque era uma época de revolução e o ambiente estava bem difícil e hostil em São Vicente”, adiantou ainda.

Acrescentou que muitos jovens começaram a ripostar, a quebrar tudo o que encontravam pela frente e a espancar alguns portugueses, alguns dos quais não tinham nada a ver com a ditadura.  

“Já tinha documentos para ir para os EUA há muito tempo, mas naquela idade ainda gostava de viver com o meu grupo, com os meus companheiros e não tinha nenhuma vontade de ir, e pedia constantemente aos meus pais para ficarmos”, explicou.

Segundo Roy Job, a ida aos Estados Unidos ajudou a moldar a sua pessoa enquanto cidadão e enquanto cantor, compositor e instrumentista.

Porque, esclareceu, saiu de São Vicente, mas a ilha não saiu dele, porque foi com uma única ideia, regressar a Cabo Verde.

“A morte do meu primo moldou-me porque a partir daquele momento tomava sempre cautela. Quando eu fui para os EUA ainda havia um racismo forte e chamávamos de portugueses pretos”, revelou a mesma fonte, que trabalhou com cabo-verdianos como Cesária Évora, Bana, Mirri Lobo, Tito Paris, Ildo Lobo e Luís Morais entre outros.

Foi produtor da Sony Music tendo produzido para artistas como Ky-Mani Marley, Shabba Ranks e Patra. 

“Toda vez que fazia uma produção para a Sony Music diziam-me que a minha música tinha algo de diferente. Eles não sabiam, mas eu sabia o que era. Era simplesmente a minha vivência e a cultura crioula que eu envolvi na música”, explicou o músico que mora em Miami.

Cinquenta anos depois do acontecimento, o músico, que ainda projecta o seu regresso a Cabo Verde, afirmou que a independência era uma necessidade, pois actualmente o “crescimento do país tem sido grande”.

Mas, segundo Roy Job, falta aos decisores criar políticas públicas para investir nos jovens cabo-verdianos que, na visão do músico, têm um “talento inato”.

“Penso que devem investir em segurança, emprego e sobretudo na juventude, porque os jovens cabo-verdianos têm muito talento. Os decisores devem criar condições e políticas públicas para que essa juventude possa desenvolver o seu talento e ter algum emprego, porque actualmente muitos estão a entrar na criminalidade”, explicou o músico, para quem isso “mancha a imagem de Cabo Verde”, que é um país turístico.

Outro desalento citado por Roy Job é o abandono do repuxo da Praça Nova, local que outrora foi um símbolo para os sanvicentinos, por ser muito frequentada.

“Tenho saudades de ver aquele tanquinho da praça cheio de água, porque brinquei lá com amigos na minha infância. Aquele espaço faz parte do nosso património e não deve estar abandonado”, declarou a mesma fonte.

“Não há património maior em São Vicente do que a Praça Nova”, finalizou, num tom visivelmente nostálgico.

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