
A pergunta de um milhão de euros, não de escudo, não é mais só se a lei foi seguida. Isso os autos (aqueles papéis chatos e importantes) vão dizer. A pergunta é: nós, como sociedade, vamos sair dessa mais espertos ou só mais roucos? Vamos aprender a diferença entre um processo e um espetáculo? Porque a democracia não é um portão que nunca se arromba. É saber o que fazer – e como falar sobre isso – depois que o estrondo passa. O tribunal decide o caso. Nós decidimos se, no final, vamos rir, chorar ou apenas fazer cara de paisagem, esperando o próximo capítulo. Porque no meio do reality show, por trás do espetáculo do "portão arrombado" e da retórica da "praça", há processos, mandados e formalismos que não se dissolvem com discursos.
Pois é, meus amigos, estou a procurar inimigos. Mas vamos lá, justiça é como aquele parente que promete visitar: primeiro você ouve rumores que ele talvez venha, depois recebe um telefonema (ou uma mensagem de whatsapp) marcando a data, e quando ele finalmente aparece na porta, todo mundo já está de mesa posta e com cara de paisagem. No caso da Câmara Municipal da Praia, a visita foi épica.
Tudo começou quietinho, no estilo "nada para ver aqui". O Ministério Público, desde janeiro de 2024, vinha fazendo seu trabalho de formiguinha jurídica: juntando papéis, conectando pontinhos, olhando terrenos suspeitos com cara de paisagem. Era tudo muito discreto, muito gabinete, muito shh. A justiça estava no seu habitat natural: a toca do processo.
O sinal de que a coisa ia sair da toca foi em maio de 2024, quando os procuradores decidiram fazer uma primeira visita à Câmara Municipal da Praia — um "alô, lembre-se de nós" magistral, um lembrete de que a prestação de contas é um esporte que se pratica o ano todo, não só no período pré-eleitoral. Foi uma busca e apreensão, com direito a suspeitos que iam do edil atual ao ex-edil. Só que, aparentemente, o aviso não colou.
E se na primeira vez a porta (ou portão) colaborou, nesta última, o presidente da Câmara, Francisco Carvalho, irritado com a coincidência, sacou do seu kit de dramaturgia e declarou estado de sítio. Chamou a ação de "invasão" e, num movimento de mestre, fechou TUDO. Mercados, creches, o que fosse. E num país democrático, quando um portão se recusa a colaborar, ele deixa de ser ferro e vira um símbolo gigante.
A decisão de arrombar o dito cujo foi o momento "uh-oh" oficial. A justiça, claro, não manda fechar creche. Foi um golpe de teatro genial: deslocou a conversa de "é legal?" para "olha o drama!". A justiça falava em parágrafos; a política, em pontos de exclamação. Isso no momento em que o processo já se encontrava fora das gavetas e direto no palco principal, com direito a pipoca.
Mas convenhamos, o sentido de humor peculiar do MP, com a (in)coincidência do calendário eleitoral, em que os holofotes políticos estão mais acesos — transforma buscas administrativas em verdadeiros prime-time dramáticos. Não é um bug do sistema; é uma feature. A temporada de caça aos votos coincide, misteriosamente, com a temporada de buscas aos papeis e constituição dos arguidos. Que coincidência... ou a melhor timing do mundo.
E não é que a Procuradoria veio explicar a situação, mas com a frieza de um manual: "crime A, artigo B, portão teimoso, força necessária, fim do comunicado." Tudo nos conformes. Só que a política entrou em cena, e ela não lê manuais – lê plateias.
E claro, a praça digital entrou em alerta maxima. As redes sociais explodiram como pipoqueira em dia de frio. De um lado, os "Finalmente! Tá na hora!". Do outro, os "É perseguição! Lawfare!". O barulho do portão arrombado ecoou em milhares de telas, cada uma com seu filtro de realidade. O caso já não era só jurídico ou político: era um meme, uma tese de doutorado e uma briga de família, tudo ao mesmo tempo.
No meio do alvoroço, um partido gritava "socorro, é perseguição!", o outro sussurrava, condescendente, "cala-te e senta-te, que isto é só a lei a funcionar". Mas, mais vozes tentaram falar de cabecinhas. A Ordem dos Advogados lembrou que fechar serviços públicos afeta gente real, que precisa comprar batata e deixar os filhos na creche. A Associação de Magistrados saiu em defesa da Procuradoria, basicamente dizendo "deixe o homem trabalhar em paz". Era o sistema tentando fazer o sistema funcionar, no meio do show.
E no ápice da novela, entra já no final, depois da constituição dos réus, o Presidente da República, José Maria Neves, no papel de avô sensato. "calma, gente", disse, mais ou menos. "Investigação é uma coisa, transformar tudo em ringue é outra." Foi um recado para adultos, dado no meio de uma birra coletiva. Só o fato de ele ter que falar já mostrava que a coisa tinha ido longe demais.
No fundo, o que temos aqui é um teste de maturidade coletiva. Um teste para ver se a justiça consegue trabalhar com um holofote na nuca e um coro de comentaristas de internet. E um teste para ver se a política sabe se defender sem apelar para o "fecha-tudo!" e discursos apocalípticos (mudar a constituição). Ainda para a política: será que o PAICV e o MpD conseguem travar esta batalha sem incendiar o país? Conseguirão olhar para o espelho da história e lembrar que já estiveram no lugar um do outro?
A pergunta de um milhão de euros, não de escudo, não é mais só se a lei foi seguida. Isso os autos (aqueles papéis chatos e importantes) vão dizer. A pergunta é: nós, como sociedade, vamos sair dessa mais espertos ou só mais roucos? Vamos aprender a diferença entre um processo e um espetáculo?
Porque a democracia não é um portão que nunca se arromba. É saber o que fazer – e como falar sobre isso – depois que o estrondo passa. O tribunal decide o caso. Nós decidimos se, no final, vamos rir, chorar ou apenas fazer cara de paisagem, esperando o próximo capítulo. Porque no meio do reality show, por trás do espetáculo do "portão arrombado" e da retórica da "praça", há processos, mandados e formalismos que não se dissolvem com discursos.
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