CCXI CENA
Amândio pára junto ao muro do quintal da Rosalina, olha para todos os lados, leva os dedos à boca e faz um assobio compassado. Sobe ao muro e salta de um pulo, vai sentar-se num banco de madeira debaixo de uma árvore. Rosalina sai envolta num lençol branco e vai ter com ele. Amândio levanta-se e os dois se abraçam ternamente.
AMÂNDIO – Como és linda! (Voltam a sentar-se) Para que te fez Deus tão formosa, anjo da minha vida?
ROSALINA – Amândio, amo-o muito, é verdade; e a prova mais clara desse amor é o ter acedido a passar algum tempo aqui a sós consigo. Calculei bem este passo e sei quão perigoso é para mim; no entanto, apelo para o seu brio e generosidade. Sr. Amândio, por quem é, respeite a minha honra e não abuse da fraqueza de uma mulher que se lhe abandonou cegamente!
AMÂNDIO – Nada temas de mim, Rosalina. Apesar de muitas vezes não podermos sofrear os impulsos da paixão que nos devora, tornar-me-ei bastante forte para os domar e respeitar-te. Para teu próprio sossego, vou fazer-te um juramento que te porá a salvo de qualquer eventualidade: Rosalina, meu querido anjo, perante ti e perante Deus, o único ser que nos ouve agora, juro-te que desde este momento te considero minha esposa e que a minha mão, o meu futuro, a minha vida, a ninguém mais pertencerão senão a ti, suceda o que suceder!
ROSALINA – Oh! Obrigada, Sr. Amândio, obrigada! Tirou-me do coração um peso horrível que de há muito me atormentava!
Rosalina, lança-se, alegre, nos braços do Amândio. Benvindo que se encontra escondido à espreitar, escorrega-se um pequeno barulho alvoroça Rosalina. E cheia de medo, ela se aconchega mais ao Amândio.
AMÂNDIO – Então, Rosalina, que é isso? De que te assustas? Sossega, filha: nada há de extraordinário neste pequeno incidente. Deve ter sido algum gato que veio atrás de alguma ratazana.
ROSALINA – Ah, que susto!
AMÂNDIO – És agourenta?
ROSALINA – Quando se ama, quem há que o não seja?
AMÂNDIO – Pois sossega-te. Não há motivo para semelhantes sustos. E mudemos de assunto. Diz-me: estás agora contente comigo?
ROSALINA – Se estou!…
AMÂNDIO – E eras tu que me querias deixar… tu a quem amo como um louco, tu a quem adoro como uma divindade!
ROSALINA – Não exagere: por mais bela que eu seja, não haverá acaso quem melhor mereça a sua afeição do que eu?
AMÂNDIO – Melhor do que tu, só conheço uma.
ROSALINA (intrigada) – Quem?
AMÂNDIO – Rosalina de Simoa.
ROSALINA (finge dar-lhe uma palmada e encosta-lhe a cabeça ao peito) – Sabe o que eu receio, Amândio? (Afasta-o do peito e olha-o nos olhos) Se um dia se venham a descobrir estas nossas entrevistas. Se tal sucedesse, julgar-me-ia completamente perdida no conceito de toda a gente. Deus permita que tal nunca suceda!…
AMÂNDIO – Não penses mais nisso, Rosalina; quase te podia jurar que nunca alguém o saberá: daqui por dois ou três dias toda a aldeia estará convencida de que terminaram as nossas relações, e por isso deixar-nos-ão de espiar, se é que até aqui o têm feito. Mais tarde, porém, verão que os iludimos, porque os nossos corações jamais se poderiam separar. Deve dar-se então uma amarga surpresa para os nossos inimigos, não te parece?
ROSALINA – Estará ainda muito longe esse dia por que tanto anseio, essa hora em que Deus legalizará perante o mundo o nosso juramento e o nosso amor?
AMÂNDIO – Não sei, Rosalina. Talvez esteja bem perto. Como sabes, a minha formatura deve efetuar-se no ano próximo, e só então poderei dispor de mim.
ROSALINA – Até lá, contudo, Amândio, é necessária toda a prudência nestas visitas noturnas; pode muito bem suceder qualquer pessoa conhecê-lo, seguir-lhe os passos…
AMÂNDIO – Nada temas, Rosalina; prezo-me de perspicaz e por isso dificilmente me poderão iludir.
ROSALINA – Olhe, essa roupa que traz hoje é um pouco inconveniente. Torna-se com ela muito conhecido. Porque não se disfarça de outra forma?
AMÂNDIO – Se é essa a tua vontade, amanhã vestir-me-ei de modo que nem tu própria me conhecerias, se me encontrasses. Estás satisfeita?
ROSALINA – Estou.
AMÂNDIO – Nunca tinhas amado ninguém, Rosalina?
ROSALINA – Nunca; ignorava até o que era esse sentimento.
AMÂNDIO – Admiro; na aldeia há tantos rapazes…
ROSALINA – É verdade que os há, mas o que é certo é que me foram todos sempre indiferentes.
AMÂNDIO – Incluindo o Benvindo, o meu comborço?
ROSALINA – A ele tive amizade, não o nego, mas esse sentimento era em tudo diverso daquele que ora nutro pelo Amândio: era uma amizade de irmãos… Ele também de tudo era merecedor…
AMÂNDIO – E nunca pensaste em que essa amizade de irmãos podia um dia transformar-se em paixão de namorados?
ROSALINA – Oh! Isso nunca! Já lhe disse, Amândio, que nunca houve da minha parte tais intenções; era amiga dele, é verdade, mais do que nenhum outro, mas essa amizade já mais poderia transmudar-se em amor!
AMÂNDIO – E já não lhe és tão afeiçoada?
ROSALINA – Não, não sou.
AMÂNDIO – E pode saber-se porquê?
ROSALINA – Por sua causa.
AMÂNDIO – Por minha causa?! Como?
ROSALINA – Depois que me falou tão inconvenientemente de si…
AMÂNDIO – Ah, é verdade, agora me lembro. Pobre rapaz!… Mas, afinal, ele tinha razão. Amava-te perdidamente, tinha talvez quase a certeza de um dia te possuir, mas num momento vim eu destruir-lhe todas as suas esperanças de felicidade … Coitado! Tenho pena dele.
ROSALINA – Depois que se convenceu de que dava preferência a si, mudou completamente. Agora é raro vê-lo alegre. Foge dos divertimentos em que se entretêm os seus companheiros…
AMÂNDIO – E parece até já não viver neste mundo!… Nunca mais lhe falaste?
ROSALINA – Temo-nos visto algumas poucas vezes; diz-me adeus, sem encarar comigo, e depois lá segue o seu caminho com a cabeça baixa, parecendo vergar sob o peso de uma dor imensa.
AMÂNDIO – E não te condóis do seu estado?
ROSALINA – Na verdade, as vezes mete-me dó. Tenho querido falar-lhe, pedir-lhe perdão do rigor com que o tratei, dissuadi-lo de se entregar a uma dor sem lenitivo, convencê-lo que nascemos para sermos amigos, irmãos até, mas nunca esposos; porém, ele foge e evita qualquer ensejo de lhe poder falar.
AMÂNDIO – Ah, Rosalina! Oxalá essa tua complacência não venha um dia desfazer as douradas esperanças do meu futuro! Essa tua amizade…
ROSALINA – Que loucura, Amândio! Pois ainda crê que o deixasse a si por ele?
AMÂNDIO – Eu creio em tudo, Rosalina; vocês, as mulheres, têm o coração tão demasiadamente sensível, que…
ROSALINA – Não diga mais, Amândio; juro-lhe pelo que há de mais sagrado…
AMÂNDIO – Não jures; o que eu quero é ter a certeza de que nunca me deixarás.
ROSALINA – Amo-o muito para que tal faça! (Ouve-se três badaladas e um relógio) Já três horas!… Como o tempo se passou rápido!…
Levantam-se e abraçam ternamente.
AMÂNDIO – Como me custa apartar-me de ti, Rosalina!…
ROSALINA – Assim é preciso, Amândio…
AMÂNDIO – Adeus!
Saem cada um por seu lado, Benvindo sai também do esconderijo.
CCXII CENA
Padre Gil está sentado à varanda a ler um livro, Benvindo chega.
BENVINDO – Senhor Padre, a tarefa que me incumbiu está feita.
PADRE GIL – Deus te paga. (Continua a ler, Benvindo da uns passos para sair) Benvindo, vem cá. (Benvindo volta e vai ficar à frente dele) Ora responde-me ao que vou perguntar-te, mas cautela com alguma mentira.
BENVINDO – O que é, senhor Padre Gil?
PADRE GIL – De há algum tempo a esta parte, tenho notado em ti uma certa melancolia que me tem dado que pensar; do quanto dantes eras alegre e jovial, tornaste-te agora triste, acabrunhado, todo metido em ti, e parece até que desgostoso da vida. Diz-me com franqueza: quais são os motivos dessa tua tristeza?
BENVINDO – Eu, Sr. Padre Gil… não tenho motivo algum para viver desgostoso; provavelmente o senhor engana-se.
PADRE GIL – Vamos, Benvindo. Não engulas a verdade para vomitares a mentira. Acaso tentarás negar uma coisa que eu vejo? O que é que te aflige?
BENVINDO – Pois bem, responder-lhe-ei como deseja.
PADRE – Isso mesmo. Não deves esconder-me nada.
BENVINDO – Há um motivo poderoso, que efetivamente, me tem roubado a alegria do coração e me traz a alma torturada.
PADRE (benze primeiro) – Que coisa é essa, meu filho?
BENVINDO – Porém, o que lhe peço, Sr. Padre Gil, é que não procure saber qual o motivo dos meus males, para não me obrigar a corar de vergonha, se lho confessar. Respeite este meu segredo!
PADRE GIL – Segredo?! Pois tu ousas ter segredos para o teu melhor amigo… para o teu pai adotivo, para a tua única família, enfim, que sou eu?… Ah, Benvindo! A ingratidão é o pior defeito que podemos ter. Aquela dedicação e amizade que parecia consagrares-me, creio que degenerou nela…
BENVINDO – Tudo, menos isso. Sr. Padre Gil pode tachar-me de quanto é mau, mas nunca de ingrato, porque nunca o fui nem o serei. Sei o quanto lhe devo. E isso é o suficiente para nunca apagar da alma o reconhecimento com que apenas poderei pagar os benefícios que tenho recebido do senhor.
PADRE GIL – Sê mais franco comigo e nada de evasivas, Benvindo. Preciso saber o que é que te aflige. Há pouco tachei-te quase de ingrato, mas conheço que fiz mal, porque sei que não o és. Te peço que partilhes comigo as tuas mágoas, e que faças de mim o teu confidente, o teu melhor amigo, como realmente o sou. (Benvindo vai dar-lhe um abraço) Nós, os homens, nos mais custosos transes da vida, devemos procurar sempre um conselheiro, um amigo com quem nos abramos francamente, com quem compartilhemos os nossos pesares, e que nos dê a coragem precisa para arrostarmos resignadamente com as contrariedades deste mundo.
BENVINDO – Muito obrigado, Sr. Padre.
PADRE GIL – Os entes que nos podem mitigar essas dores, que nos podem tornar fortes, em primeiro lugar é Deus, pai dos desgraçados, alívio dos atribulados, bálsamo de dores, esperança eterna; e, em segundo, uma pessoa em quem tenhamos uma completa confiança e em quem reconheçamos uma amizade e afeição a toda a prova. Para Aquele tens tu a fé e as crenças religiosas que te ensinei a respeitar; para este, tens-me tu aqui a mim, teu amigo sincero e teu protetor, em quem podes e deves depositar a confiança.
BENVINDO – Eu sei, Sr. Padre.
PADRE GIL – Deixa-me concluir. Pois, as dores assim partilhadas são menos custosas de suportar, e às vezes na confidência íntima podemos encontrar um bálsamo suavizador para as minorar ou um remédio miraculoso até para as extinguir. Portanto, Benvindo, conta-me tudo.
BENVINDO – Pois bem, vou declarar-lhe tudo.
PADRE GIL – Nada de reservas. Não me ocultes a mínima circunstância, e eu te ajudarei a arrostar com todas as desventuras.
BENVINDO – Os meus desgostos, as minhas inquietações, o meu inferno, enfim, partem de um único sentimento: o amor!
PADRE GIL – Ah! eu logo vi: questão de mulheres; nem outra coisa podia deixar de ser. Continua…
BENVINDO – Amei uma mulher tão pura e santamente como amo a Deus; ela também parecia corresponder-me, ou pelo menos cheguei a convencer-me que me tinha amor…
PADRE GIL – Há bastante tempo?
BENVINDO – Este sentimento nasceu em mim ao alvorecer da vida e foi crescendo com os anos. Porém, quando todas as esperanças me sorriam, quando já antevia por meio desse amor um horizonte de felicidades, eis que se desfazem todos esses sonhos dourados e me vejo abandonado, repelido, e talvez até aborrecido por aquela a quem votara toda a minha vida.
PADRE GIL – Posso saber porquê?
BENVINDO – Trocou-me por outro, a quem se entregou como uma escrava.
PADRE GIL – E tens a certeza que já ela te não ama?
BENVINDO – Se tenho, meu Deus!… Foi ela própria que mo declarou; disse-me que me queria como a um irmão, mas que nunca me amara como eu julguei.
PADRE GIL – Ora vamos, homem: por ora não vale a pena desesperar; isto de mulheres é para onde lhes dá; pode ainda suceder que ela venha a aborrecer com esse outro e amar-te. Mas diz-me: quem é essa rapariga? Será ela merecedora da afeição que tão cegamente lhe tributaste? Será digna de ti?
BENVINDO – Oh, se é! Basta dizer-lhe que é a rapariga mais bela daqui da zona! É a Rosalina de Nha Simoa.
PADRE GIL – Rosalina de Nha Simoa?! (Dá um pulo na cadeira) Estás bem certo que ela não te ama?
BENVINDO – Já lhe disse que lho ouvi da própria boca.
PADRE GIL – Pois bem, Benvindo: o que tenho a dizer-te é que foi uma felicidade, uma providência até o ela não te amar, e desde já te aconselho a que procures combater essa paixão que te mina a existência e que apagues para sempre do coração a imagem dessa rapariga.
BENVINDO – Mas não vejo que perigo houvesse nesse amor, se acaso ele existisse…
PADRE GIL – Nada mais posso dizer-te do que nunca, nunca poderias tê-la por esposa, ainda que morrêsseis de paixão um pelo outro, porque seria eu o próprio a evitar esse casamento, se tal tentásseis, e se não pudesse antes disso fazer desaparecer o amor dos vossos corações.
BENVINDO – Mas que motivo tão poderoso haveria para um tal procedimento da sua parte, senhor Padre?
PADRE GIL – Sabê-lo-ás talvez um dia. Por enquanto basta só que te convenças de que Rosalina nunca poderia ser tua esposa, e que esse amor entre vós, se existisse, seria a desgraça para ambos.
BENVINDO – É incrível! … Que insondável mistério haverá em tudo isso?
PADRE GIL – Nada mais posso acrescentar. Estima-a quanto quiseres, mas esquece-te dessa paixão, e, se um dia, por fatalidade, ela te vier a amar, repele esse sentimento com todas as forças da tua alma.
BENVINDO – Mistério, tudo mistério! (Fica por alguns momentos pensativo) E ser-me-á ao menos lícito vigiar pela sua segurança, pela sua honra?
PADRE GIL – Ninguém te pode negar esse direito. É até, talvez, um dever teu…
BENVINDO – Ao menos restar-me-á essa consolação. Parece-me que já a não amo, e que o meu único desejo é vê-la feliz… desgraçado dele, se tentasse!…
PADRE GIL – Mas quem é esse outro, a quem ela ama?
BENVINDO – É o Sr. Amândio, o filho do Sr. Morgado, que há pouco chegou.
PADRE GIL – Ah, sim?!… Oh, mas ele parece ser um bom moço e não creio que seja capaz de causar a desgraça da pobre rapariga.
BENVINDO – Pode ser que assim suceda, mas tenho motivos para desconfiar das suas intenções.
PADRE GIL – Pois faz o que entenderes. Mas prudência… Sobretudo, lembra-te do que há pouco te disse: Rosalina nunca poderia ser tua mulher!
BENVINDO – Tenho confiança no Sr. Padre Gil e por isso creio no que me diz. Ordena mais alguma coisa?
PADRE GIL – Mais nada. Vai com Deus.
Benvindo sai, desce uma quinta, caminhando ao acaso.
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