Stribilin (34ª parte)
Cultura

Stribilin (34ª parte)

CLII CENA

Uma Televisão Privada Portuguesa emite, em direto, uma entrevista com a Drª Rosária.

  1. P. P. – Caros telespetadores, a Televisão Privada Portuguesa, através do seu Programa: Casos Insólitos Que Envolvem Máfias Políticas, Frutas Desportivas e Fraudes nos Aparelhos Judiciários, conduzido pelo Jornalista de Investigação, Cabrão Asno, vai, de imediato, transmitir uma entrevista com a Advogada cabo-verdiana, a Drª. Rosária Pereira, que nos irá explicar as circunstâncias e os mistérios que ditaram a morte do Juiz de origem cabo-verdiana e de nacionalidade angolana, o Dr. Joaquim, bem como da Advogada luso-cabo-verdiana, a Drª Mónica, que ficou gravemente ferida. (Para Drª Rosária) As nossas câmaras estão, a partir de agora, disponíveis para Drª se apresentar e cumprimentar os nossos telespetadores. Faça o favor de se aproximar.

Drª ROSÁRIA (denota-se nela uma clara debilidade emocional) – Muito boa noite. Chamo-me Rosária Pereira, sou cabo-verdiana e exerço advocacia.

  1. P. P. – Como é que a Drª Rosária se conheceu a Drª Mónica e o malogrado Dr. Joaquim?

Drª ROSÁRIA – A Mónica foi minha colega da Faculdade e, desde o primeiro ano e no primeiro dia de aula, sentamos na mesma carteira.

  1. P. P. – Onde é que estudaram?

Drª ROSÁRIA – Estudamos na Universidade de Lusíadas, na Rua Junqueira em Lisboa.

  1. P. P. – Conheceram-se cá ou em Cabo Verde?

Drª ROSÁRIA – Cá. Conhecemo-nos no Cais do Sodré, no espaço Ágora, uma biblioteca que, na altura aí havia, na véspera do teste para entrarmos na Faculdade. Tínhamos lá ido procurar documentos e preparar para o teste.

  1. P. P. – E não se conheciam lá em Cabo Verde?

Drª ROSÁRIA – A Mónica não conhecia Cabo Verde. Ela veio pequenina, sem qualquer referência da terra que a engendrou.

  1. P. P. – Como então é que se acabou apaixonando por lá, a ponto de querer ali residir-se e trabalhar?

Drª ROSÁRIA – Fui eu que a convidei. Que lhe inscrevi no IPAJ – Instituto de Patrocínio e Apoio Judiciário – e que lhe indiquei para defesa num processo de um pai e um filho que estavam presos preventivamente havia mais de 11 anos.

  1. P. P. – E ela não se vacilou? Não se mostrou tentada a declinar-se?

Drª ROSÁRIA – Apercebi-me disso. Mas fui bastante renitente.

  1. P. P. – Como é que ela achou o ambiente cabo-verdiano quando lá chegou?

Drª ROSÁRIA – Gostou imenso. E teve a sorte de se hospedar no mesmo Hotel com o Dr. Joaquim, que também não conhecia Cabo Verde e tinha lá ido como Juiz do mesmo processo que ela.

  1. P. P. – E qual era a relação da Drª. Rosária com o Dr. Joaquim?

Drª ROSÁRIA – Sensacional. Ele era uma criatura de uma sensibilidade enorme e de uma inteligência fora de série.

  1. P. P. – Uma pessoa com essa característica que você acabou de descrever, o que lhe poderá ter acontecido, a ponto de se suicidar?

Drª ROSÁRIA – Eu não me revejo na tese do suicídio, Sr. Jornalista. (Olha fixamente para o Jornalista e pergunta-lhe) Como é o nome do Sr. Jornalista?

  1. P. P. - Cabrão.

Drª ROSÁRIA - Ca... o quê?!

T.P. P. - Cabrao Asno.

Drª ROSÁRIA - Asno não é Burro?

  1. P. P. - Não. O Asno é asno, o Burro é burro, o Emilio e emilio, como o Vicente é Vicente.

Dra. ROSÁRIA - Ok. Terá alguém dito que o Dr. Joaquim se suicidou?

  1. P. P. – A Doutora não chegou a ouvir o comunicado das autoridades cabo-verdianas?

Drª ROSÁRIA – Não. Não tenho estado a ver televisão, nem a ler os jornais cabo-verdianos.

O Jornalista mostra-lhe um jornal com uma fotografia do corpo do Joaquim tombado, e uma pistola bóka bedju do lado direito do corpo. A Diana está a uns palmos distante do Joaquim, envolta em sangue.

  1. P. P. – Estas imagens já tinham sido passadas pela Televisão de Cabo Verde.

Drª ROSÁRIA – Impossível! Veja que a pistola está do seu lado direito, supostamente, terá sido disparada com a mão direita.

  1. P. P. – Certo.

Drª ROSÁRIA – Entretanto, o Dr. Joaquim era canhoto. Ele não era destro. Não tinha jeito para fazer nada com a mão direita.

  1. P. P. – Ele não era namorado da Drª. Mónica?

Drª ROSÁRIA – O quê?! Mas quem foi que disse isso?

  1. P. P. – Está aqui no jornal escrito.

Aponta o dedo na parte onde está essa informação.

Drª ROSÁRIA – O quê?! Como?! Matou a namorada e depois suicidou-se?

  1. P. P. – Já viu?

Drª ROSÁRIA – Querem é deturpar a verdade e branquear a justiça. O que aconteceu foi crime, Sr. Jornalista. E um crime sofisticado, altamente orquestrado, engenhocamente arquitetado e subtilmente executado e protegido com luvas do sistema.

  1. P. P. – E por que diz isso?

Drª ROSÁRIA – O Dr. Joaquim já havia sido demitido das funções do Juiz e estava de malas aviadas para Arusha, na Tanzânia, onde ia presidir os 11 juízes que compõe o Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos.

  1. P. P. – Ah, eh?!

Drª ROSÁRIA – O Dr. Joaquim condenou o Estado a pagar avultadas indemnizações por incúrias e vários atropelos aos Direitos Humanos; mandou Diretores, Oficiais da Polícia e Agentes corruptos para trás das grades; colocou sob suspeita todo o sistema e requereu que às Procuradorias da República sejam sindicadas. Consequência: Foi-lhe dado por findo a comissão de serviço.

  1. P. P. – Se de facto tudo isso passou, a bota não está a bater com perdigota.

Drª ROSÁRIA – A Dr. Mónica era uma advogada incómoda para o sistema. Muito tenaz, perspicaz e decidida.

  1. P. P. – Quer dizer que não foi homicídio seguido de suicídio?

Drª ROSÁRIA – Não havia motivos. Quais? O que aconteceu, foi sim, um duplo atentado… um duplo homicídio. Um consumado e outro na forma tentada.

  1. P. P. – Conseguem provar tudo isso?

Drª ROSÁRIA – Todas as provas existem e são óbvias. Resta agora ratificá-las por parte de quem de direito.

  1. P. P. – Um comunicado da Procuradoria-Geral da República diz que, segundo a autópsia realizada ao cadáver do Dr. Joaquim, a Polícia Judiciária concluiu que houve, efetivamente, suicídio.

Drª ROSÁRIA – Senhor Cabrão, em Cabo Verde não fazem autópsia aos que não se identificam com o sistema, aos que não cheiram à corrupção como eles. Aos pobres e aos imigrantes que chegam da Costa Africana eles são zarolhos.

  1. P. P. – A sua acusação é deveras contundente, Doutora. E pode ter consequências.

Drª ROSÁRIA – Eu sei. E estou preparada. E se vier a acontecer comigo a mesma tragédia que o Dr. Joaquim e a Drª Mónica, por favor, façam notícias. Façam notícias parque não irá haver investigação.

  1. P. P. – Claro que faremos notícias.

Drª ROSÁRIA – Façam por favor. Cabo Verde sai sempre bem, todos os anos, nas revistas internacionais como modelo da democracia, da boa governação e do robusto desenvolvimento económico. Um franco exemplo em toda a África lusófona.

  1. P. P. – Então não é verdade?

Drª ROSÁRIA – Nada mais falso. Um país onde, em menos de duas décadas, numa pequena aldeota, 11 pessoas são assassinadas e as investigações são pontapeadas, é legítimo falar de democracia? Onde um nigeriano é encontrado morto em circunstâncias dúbias, entretanto a médica legista se repugna e nega autopsiá-lo, pode-se gabar que é democrático? Pode-se falar de um país seguro, quando as pessoas desaparecem, inclusive crianças, sem que o Estado mostre minimamente preocupado? Um país onde a Administração Pública privilegia o Cartão de Militante do Partido no poder em detrimento ao Certificado académico de um cidadão apartidário, é justo? É razoável dizer-se que é livre, num país onde o cidadão é perseguido, ameaçado, retalhado, preso, julgado e condenado, se não assassinado, simplesmente por falar a verdade que encomoda os galos do poleiro? Pode-se consuderar um país de Direito Democratico, onde o Supremo Tribunal de Justiça e a Procuradoria Geral da Republica são indiciados e denunciados, entretanto, em vez de envestigarem e apurarem os factos, apressam-se em julgar o denunciante que até lhe marcam o julgamento sem respeitarem o prazo legal para o efeito? Só troça!

  1. P. P. – Realmente! Estou de boca aberta. E o que pensa fazer?

Drª ROSÁRIA – Tudo o que estiver ao meu alcance. Corro o mais profundo risco se for necessário.

  1. P. P. - Pir exemplo?

Dra. ROSÁRIA - Espero que a mãe da Mónica restabeleça os ânimos, e mesmo que eu vá a Angola, vou-me unir com a família do Dr. Joaquim para levarmos o caso até as últimas consequências.

  1. P. P. – E o que pensa fazer de imediato… ou seja, a curto prazo?

Drª ROSÁRIA – O Dr. Joaquim e a Dr. Mónica tinham perspetivados mandar exumar os corpos da Xia, morta há mais de 11 anos, caso que levou o Paulito e o filho Denilsan à cadeia; o corpo do Zezito, que era Procurador em Santa Cruz, que, igualmente, sendo canhoto, foi tido como suicida por uma bala que lhe trespassou a nuca, desparada com a mão direita; do Mendinho Mendes que, supostamente, foi envenenado por um médico num hospital público; e do Edmilson Tavares que foi selvaticamente torturado antes de ser executado. Foi-lhe arrancado quase todos os dentes, cortado a língua, furado os olhos, serrado um pé, esmagado os testículos, queimado a cara e pintado de negro para o dissimular que era nigeriano.

  1. P. P. – Ninguém foi preso? Os criminosos não foram descobertos?

Drª ROSÁRIA – Os familiares sabem, as autoridades também sabem quem são esses criminosos. Mas não houve investigação. À casa onde foi o palco da chacina, não obstante as denúncias feitas à Polícia Judiciária e à Procuradoria de Santa Cruz, nunca ninguém foi lá investigar. Entretanto, uma senhora disse aos familiares que no dia seguinte a casa estava cheia de sangue, pese embora, tinham-na lavado toda a noite com água e creolina.

  1. P. P. – Tiveram coragem de lhe fazer essas coisas todas?

Drª ROSÁRIA – Por isso, vou pedir uma procuração aos familiares da Mónica e Joaquim e obrigo a justiça a funcionar. Vou requerer todas as exumações, mas a do Dr. Joaquim, para serem autopsiados sob a supervisão de autoridades internacionais ligadas aos Direitos Humanos.

  1. P. P. - Valha-nos, santo Deus!

Dra. ROSÁRIA - Vou fazer com que os decisores desse minusculo, senão, microscópico pais, sejam responsabilizados pelos seus crimes, presos, julgados e engavetados atrás das grades onde ja deveriam estar há muito tempo. Em nome da justiça, em defesa desse pivo sofredor e à luz do Direito Penal Internacional, tudo irei fazer para que os criminosos se assumam. Têm que tomar a consiencia de que o povo os pôs lá, não para o maltratar, nem para mandar nele. Mas sim, para o representar com respeito e dignidade.

CLIII CENA

João da Cruz e Helena são Julgados no meio da rua, pelo Tribunal Popular. João da Cruz está sentado no banco do Réu, Helena num outro banco patrás dele.

ILDO PINTO - Sr. João da Cruz, a D. Helena apresentou uma queixa contra si, acusando-o de ter entrado em casa dela e violá-la. Confirma?

JOÃO DA CRUZ (ébrio) - Casa dela?!

ILDO PINTO - Que o senhor entrou e escondeu-se debaixo da cama, saiu às tantas e violou-a.

JOÃO DA CRUZ - Então eu não tenho direito a uma metade naquela casa?

JOÃO DE MARÇAL - Porque o senhor tem direito a uma metade da casa, acha que também tem direito a uma metade de cousa dela, para pegar ela e violar como uma besta?

JOÃO DA CRUZ - Quem disse que foi como uma besta? Foi dentro da nossa casa, riba da nossa cama, debaixo do nosso lençol.

PEDRO SABININHA - É assim que se fala com um juiz, Sr. João da Cruz?

HELENA - A casa é minha, Sr. Juiz. Quando me juntei com ele, eu já tinha a minha casa que herdei dos meus pais.

ILDO PINTO – Por que é que violou a mulher?

JOÃO DE MARÇAL - Porque ele kuda que é algum burro que anda soltu na txada à procura de besta para fornicar.

ILDO PINTO (para João de Marçal) - Colega, deixe o homem responder.

PEDRO SABININHA - Excelência, Sr. Juiz Presidente: um ponto de ordem.

Levanta o dedo indicador direito e encosta sob a palma da mão esquerda.

ILDO PINTO - Tem a palavra.

PEDRO SABININHA (tira um tabaqueiro, sorve um pouco de rapé e limpa o nariz com o reverso da mão) - Na jurídica do julgamento de sentencia, o merilitíssimo e excelência, camarada Juiz e colega, João de Marcial, tem suas rezões. O senhor réu, arguido e acusado, cujo nome alcunha é João da Cruz, não tem o direito de kanbar dentro casa de sua mulher, para sukundir debaixo da cama e levantar de noite, nunpriti, sima dia que sua mãe pari-l para violar ela sima duas animais ferozu.

JOÃO DE MARÇAL – Uapo, colega! O camarada Juiz, Pedro Sabininha ku Manu Pala, tem muitos rezões.

ILDO PINTO - Camaradas, deixem o homem acabar de contar o que aconteceu! Senhor João da Cruz, continua.

João de Marçalestica a mão para Pedro, dão uma batida e fazem estalido com os dedos, como se dissessem: "Fixe".

JOÃO DA CRUZ - Conforme estava a dizer…

JOÃO DE MARÇAL - «Conforme estava a dizer» não, senhor! Deve dizer: «Sr. camarada Juiz, conforme estava a dizer o senhor…» Vocês são colegas? Você é um delinquente, está aqui preso; ele é Juiz para lhe julgar e manda-lo para cadeia.

ILDO PINTO (olha para o João, depois para João da Cruz) - Continua, Sr. João da Cruz.

JOÃO DA CRUZ - Conquistei a minha mulher e ela arranjou comigo. Eu lhe disse que arrendava um quarto para nós os dois morarmos juntos. Mas ela disse-me que tinha uma casa que herdara de seus pais e que se eu quisesse que fosse morar com ela. Nos primeiros nove meses dei-lhe filho que já vai fazer dez anos. Agora, senhor camarada Juiz – conforme quer que eu diga o camarada João de Marcial – o Sr. Juiz acha justo que eu lhe peça dentro-meio e ela não me dá?

ILDO PINTO – Dentro-meio?! O que é isso?

JOÃO DE MARÇAL - Viu que está a gozar com o nosso julgamento?

JOÃO DA CRUZ - Não me digam que não sabem o que é dentro-meio de uma mulher!

PEDRO SABININHA - Inda tu repetes? Queres sujar com este trubunal?

JOÃO DA CRUZ - Ildo Pinto, você não sabe o que é dentro-meio de uma mulher, com tantas elas que você já comeu?

PEDRO SABININHA - O senhor quer dizer que dentro-meio de uma mulher, significa: o kau-mija dela?

JOÃO DA CRUZ - Pois claro, sim senhor, com certeza! Não fica entre o umbigo e os joelhos?!

ILDO PINTO – Quantos filhos você tem?

JOÃO DA CRUZ – 27.

ILDO PINTO – Você tem 27 filhos?

JOÃO DA CRUZ – E tenho mais 4 mulheres prenhas.

ILDO PINTO (para João e Pedro) - Acham que devemos mandá-lo para cadeia?

JOÃO DE MARÇAL - Imediatamente.

PEDRO SABININHA - O Sr. merilitíssimo acha que, um homem que corre trás de uma mulher, como um burro atrás de uma besta, lutar com ela, pôr ela no chão e fazer malkiriadésa com ela, sem ela deixar… inda não é nada?

JOÃO DE MARÇAL - É porque ele é um limária.

PEDRO SABININHA - Ezatakual. Então, o camarada Juiz acha que este valdevinos deve ficar solto a beber grogue e bafar com postas quentes de moreia da Manené?

ILDO PINTO – No domingo passado julgamos o Mano, pela mesma razão, e talvez pelo motivo mais grave, como ele não tinha filho vocês não disseramque lhe mandemos para cadeia.

PEDRO SABININHA - Se mandássemos o Mano para a cadeia ele ficava a ganhar. Lá ele teria direito a café, almoço, jantar e kau deta ku kusa kubri, água para tomar banho e ficar bazofo. Mas o João da Cruz sim. João da Cruz tem que ir para cadeia para poder ver os filhos a sofrerem.

ILDO PINTO – Mas os filhos não fizeram nada! Não cometeram nenhum crime!

JOÃO DE MARÇAL – Quem lhes mandou nascer de um pai delinquente? Assim ele toma juízo.

ILDO PINTO – Eu acho que, na qualidade de mulher e marido, é pela primeira vez que vêm à justiça, devemos aconselhá-los e dar-lhes uma oportunidade.

JOÃO DE MARÇAL - Não lhe damos conselho nenhum. Nós não somos Padres!

PEDRO SABININHA - E nem ele é um Santo que merece perdão!

JOÃO DE MARÇAL - Só se for Santo Dáda, ou Santo Chibau, ou Santo Vinda ou então, Santo de Romana ku Didim de Rocha Lama!

PEDRO SABININHA – Eu devia estar, gosi li, xintadu com os meus camaradas a fazer chá de peixe… e a beber o nosso groguinho que Yane de Jorge Sacutelo comprou no Lismano de Fausto ku Linda.

JOÃO DE MARÇAL – O Zeca de Nhu Romão também disse que ia levar uma litrosa. Mas por causa deste vazalisco estamos aqui a trabalhar dia domingo.

PEDRO SABININHA – A perder nosso dia e o nosso chá de peixe.

JOÃO DE MARÇAL - Ele tem que ir para a cadeia, seis meses, para tomar juízo e deixar de selvajaria.

PEDRO SABININHA – Ele está armado em parvo! Ensole o grogue fede no kel-kau e luta com sua mulher. Seu Parvicho!

ILDO PINTO – Mas… seis meses de cadeia vocês não acham que é exagerado?

JOÃO DE MARÇAL - Exagerado porquê? Exagerado é o que ele fez.

ILDO PINTO – Seis meses é a pena máxima que estamos autorizados a dar.

JOÃO DE MARÇAL - Pensei que fosse a pena máxima que não estamos autorizados a dar! Se estamos autorizados… do que então estamos à espera para o aplicarmos? Por mim, é isto que lhe vamos dar. É isto que ele merece.

ILDO PINTO - Pela primeira vez, deve sempre haver atenuantes. Mas… (Para Aldonça) D. Helena, como é que a senhora acha?

HELENA - O que eu quero, pelo que ele me fez… é justiça.

PEDRO SABININHA - Camarada Presidente Juiz; na proporção do ministério, da sentença de aplicação das cadeias, o arguido, delinquente e criminoso, pensou que a mulher era uma besta para ele lutar com ela. Ele não comprou dentro-meio dela, e nem foi ele que a queimou dentro-meio com azeite de purga quando ela era pequenote. Foi sua mãe com sua pai que, djugutandu cabeça de bidião e bucho do atum em Rubom Baleia, criou suas filha te que deu mulher, para ele a tirar de casa, oh!… para ela tirar ele de casa.

ILDO PINTO - Camaradas querem então que o mandemos para Cadeia Civil?

JOÃO DE MARÇAL - Seis meses.

PEDRO SABININHA - Nós temos que mostrar os nossos poderes, e aos nossos camaradas Ministros de que estamos a trabalhar dretos.

ILDO PINTO - Bom, eu não vejo razão para o condenarmos, muito menos para lhe darmos seis meses de cadeia. Mas, como a nossa terra é democrática, vocês são dois contra mim… (Para o João da Cruz) Com muita pena, o Sr. João da Cruz tem que ir cumprir seis meses de cadeia.

JOÃO DA CRUZ (levanta-se brutamente) - Com muita, pouca, ou mesmo sem nenhuma pena, não vou a lugar nenhum.

PEDRO SABININHA - Nenhum kau tu não sa ta vais? Tu é que mandas?

JOÃO DA CRUZ- Eu é que João de Marçal e Pedro Sabininha vão mandar para a cadeia?! Vão espantar as moscas se quiseram! (Levanta e sai) Miseráveis que estou farto de lhes encher o cu com grogue fede!

PEDRO SABININHA - Isto é falta de pouco respeito para connosco os Juízos. Dar costa à justiça e chamar o juiz de prindanti… de bebedor de grogue?!

JOÃO DE MARÇAL - Se é de mim que ele está a dizer, eu também costumo pagar-lhe grogue na taberna de Nhu Léla e ainda ele bafou com moreia de Manené. Ele não tem nada que me dar ramoque!

ILDO PINTO (escreve, levanta e lê) - Mandado de Captura: «Excelentíssimo Camarada Comandante de Polícia: - Augusto António Delgado Silva, depois de condenado a seis meses de cadeia, por ter violado a senhora Aldonça Margarida Varela Marta, levantou-se do seu lugar, injuriou-nos e foi-se embora. Vimos, por isso, solicitar urgentemente, que mande um carro de Policia buscar vinte milicianos…»

JOÃO DE MARÇAL - Trinta!

ILDO PINTO (continua) - «… com espingardas, granadas - das mais potentes -, cassetetes, capacetes e metralhadoras, para irem prendê-lo e entrega-lo na Cadeia Civil».

PEDRO SABININHA - Está muito bem escrito, Ildo Pinto!

ILDO PINTO - «Têm vinte e quatro horas para o capturar, vivo ou morto… apresentando-nos os pés ou a cabeça dele».

JOÃO DE MARÇAL - Se não cumprirem as nossas ordens, serão presos e julgamo-los.

ILDO PINTO - «Para terminar, assinamos este mandado: eu, Ildo João Pinto, Juiz presidente e João de Marçal, Juiz ordinário…»

JOÃO DE MARÇAL (levanta muito enfurecido) - Ordinário é a tua mãe, filho da puta! A mim é que tu chamas de ordinário? Fui eu que o deixei fugir?

ILDO PINTO (embaraçado) - Eu não lhe chamei de ordinário, Camarada juiz João de Marçal. Ordinário que eu disse, não queria dizer que o camarada seja parvo. Como eu sou Juiz Presidente, o camarada é atrás de mim… meu sobressalente.

JOÃO DE MARÇAL - Ahaaan! Pensei que me queria chamar de malcriado! Podem pensar que estou moco!

ILDO PINTO - Então já entendeste?

JOÃO DE MARÇAL - Agora já entendi.

ILDO PINTO - Então deixa-me acabar de ler. (Continua) «Assinamos: eu, Ildo João Pinto, Juiz Presidente e João de Marçal, Juiz ordinário». (Assina, passa ao João que também assina, e contínua a leitura) «E Pedro Sabininha, juiz de reserva, não assina por não saber escrever…» (tira uma panela negra debaixo da mesa) «vai apor o dedo na tinta» (Pedro passa o dedo pelo fundo da panela e apõe sobre o papel) O julgamento está encerrado.

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