CXLIV CENA
Nhamina está sentada num banco, vestida de viúva, José, seu filho, entra e senta-se em cima de um tronco. Está trajado todo de preto, pois, acaba de chegar do funeral do Dr. Joaquim.
NHAMINA – Havia muita gente no funeral, José?
JOSÉ – Como areia no mar, mamã! Ninguém se conseguia ficar sem limpar lágrimas dos olhos ao ler os sentimentos e a dor que continham no coração daquela pobre e desolada mãe que veio de Angola só para enterrar o filho.
NHAMINA – Este mundo está virado do avesso, meu filho. Imagino, sim, o sofrimento daquela pobre mãe. Primeiro: quando recebeu a notícia de que nunca mais ia sentir o calor do abraço de um filho! Segundo: como se sentiu ao ver o seu filho, pela última vez, deitado de costas dentro de um caixão!
JOSÉ – Ela chorava desesperadamente, mãe! E havia muita gente importante no Cemitério. Ministros, Deputados, Diretores, Juízes, Advogados, Doutores, etc. Como lhe disse, a mãe dele chorava tão triste que cortava a barriga a qualquer filho cristão que possui um coração. Tiveram que lhe dar água de açúcar por duas vezes. Uma vez, por se sentir kapode, e outra vez chegou mesmo a desmaiar.
NHAMINA – Coitado desse Juiz! Dizem que era tão bom!
JOSÉ – Todo o mundo, lá no Cemitério, assim dizia. E há quem diga que ele não se suicidou.
NHAMINA – É das tais coisas que só Deus é testemunha.
JOSÉ – A providência divina, certamente, tratará de esclarecer tudo.
NHAMINA – Se for suicídio, qual terá sido a razão para semelhante procedimento? O que o terá levado a se matar?! Era Juiz… certamente ganhava bem! Quantos coitados que por aí andam, sem pão nem esperança, sem saúde nem remédio, entretanto vão-se confortando e conformando com a vida que tem!
JOSÉ – Eu também pensava que só o pobre é que matava a cabeça.
NHAMINA – Coitado. (Olha para o José) Regaste a cova do teu pai?
JOSÉ – Sim. Reguei e mondei algumas ervas daninhas que la haviam e limpei a sua fotografia na campa.
NHAMINA – Depois de amanhã faz um ano que o corpo do teu pai foi dado à terra. (Passa a mão pelos olhos) Foi enterrado no dia 24 de Julho, as cinco horas da tarde.
JOSÉ – Era véspera do dia de Nhu Santiago Maior.
NHAMINA – Estávamos a preparar para recebermos os hóspedes e familiares que todos os anos vinham passar a festa connosco.
JOSÉ – Lembro-me como se fosse hoje. Era um Sábado.
NHAMINA – Sábado de Nossa Senhora, dia da feira de Nha Santa Catarina. Um dia que nunca mais vou-me esquecer enquanto tenho fôlego.
JOSÉ – Também eu.
NHAMINA – Estávamos combinados ir a Assomada no Sábado que vinha, comprar milho de semente para corrermos o lugar na Bianga.
JOSÉ – Tínhamos cortado o cabelo no Quim-Quim de Nha Carolina… Quim-Quim Pescoço Torto, desde tarde-cedo.
NHAMINA – Ele cortava o cabelo sempre no Quim-Quim.
JOSÉ – Quim-Quim tinha-lhe dado um corte à escovinha, quando ele olhou para o espelho, virou e disse num tom brejeiro: Tu pensas que sou rapazinho ou quê, Quim-Quim?
NHAMINA – Ele brincava muito. E Quim-Quim sabia que o teu pai era raskon. Tinha uma suíça bonita na cara, como a do Chico Toné de Santa Catarina.
JOSÉ – A mim também, Quim-Quim tinha-me dado um punk fixe. Naquela altura, entre nós rapazes-novos, o punk estava na moda.
NHAMINA – Luisinha estava combinada com Antonina de Nha Mioda para lhe vir alisar o cabelo. Já tinha comprado vaselina e petróleo para pôr no fogão-prima e aquecer o pente de ferro.
JOSÉ – O Claudino de Salina – ainda ele não tinha tirado a Marina de Quimy de casa – tinha-me cosido umas calças que acabei por vesti-las no funeral em vez de levá-las à missa. Eram umas calças Bombazinas, boca-de-sino, muito giras. Ficavam-me na ponta do rabo, quase que caiam.
NHAMINA – O teu pai não mandou coser roupa nova para ele nesse ano. Havia três anos que o Gustavo de Cutelinho, marido da Zita de Ângela, lhe fizera um par de fato-Casimiro. E esse fato veio servir-lhe de mortalha.
JOSÉ – Mas eu lembro-me de a mamã ter mandado fazer uma blusa!
NHAMINA – Sim. Eu tinha comprado um metro de papolino na loja de Nha Margarida de Julião Tavares e dei a Zita Branca de Nezinho Lobo para me coser uma blusa.
JOSÉ – Papai tinha falado com Raulinho de Nha Gorda, lá do Pilão de Monte Largo, para me fazer um par de sandálias com solas de pneu e a parte de cima com borracha de câmara-de-ar.
NHAMINA – Sapatos também ele não comprou nesse ano. Mandou a Luisinha levar, já não me lembro se foi no Pedrinho ou no Betinho mão-croco, um par de botas que ele tinha aqui, para as engraxar.
JOSÉ – Havia muita movimentação e a festa parecia que ia ser bedju.
NHAMINA – Seria decerto, se Patchane não tivesse morrido tão de repente e deixar todo o mundo espantado.
JOSÉ – As lojas estavam todas cheias de gentes a comprar coisas para a festa.
NHAMINA – É verdade! Falaste agora das compras, eu me lembrei. Amanhã tens que levantar cedo para ires pôr na bicha e ver se conseguimos comprar um quilo de carne.
JOSÉ – Compro na Armoza de Nha Bajoja ou no Luciano Brazão?
NHAMINA – Tanto faz. Desde que seja carne de capado.
JOSÉ – Há dois anos acordaste-me eram cinco da manhã!
NHAMINA – Por isso é que conseguiste encontrar carne de carneiro que o teu pai gostava tanto. Recordo-me ainda daquele sorriso que só ele conseguia desenhar na sua face.
JOSÉ – Com a sua morte o ano passado, a festa de Nhu Santiago enfraqueceu bastante.
NHAMINA – Ninguém estava à espera. Apanhou-nos a todos de surpresa.
JOSÉ – Ele morreu rápido. Sem se queixar de febre ou dor de cabeça. Não disse ui nem uai. Tinha-nos dito a instantes, que depois da missa iríamos fazer uma fotografia no Virgílio Monteiro para recordação da família.
NHAMINA – Como se ele sentiu a sua morte. Foi uma pena não temos feito essa fotografia. (Aponta o dedo para o lenço que traz amarrado à cabeça) Este lenço Nha Pilóta é uma das recordações dele. Tinha-mo dado uma semana antes de ele morrer. Comprara-o na loja do Quim-Quim de Mouro. E comprou também uma conta de missanga na loja de Nhu Teófilo para a Luisinha.
JOSÉ – Ele era muito franco.
NHAMINA – Franco e humilde.
JOSÉ – Quando a boina Monte Gommer veio à moda, passamos um dia pela loja de Nhu Bernardino, ele viu e comprou uma para mim.
NHAMINA – A loja não é do Bernardino, não, José. Todo o mundo pensa que o é, mas não. Bernardino é o caixeiro.
JOSÉ – Então de quem é a loja?
NHAMINA – De António Soares lá de São Domingos. António Soares pai do Pira Soares, do Zeca Soares e Meno Soares.
JOSÉ – Pai do Pira Soares, aquele rapaz bazofo? Que corre o carro naforsa?
NHAMINA – Pira Soares que é casado com a Maria Amélia filha do Martins de Barros e da Menininha Soares de Porto Abaixo.
JOSÉ – Não sabia se a loja não era de Nhu Bernardino! Eu até sentia ciúme dos filhos dele… do João, do Guê, do Quim, do Tóni e do Natalício – o Taly. Eu pensava que eles eram filhos de branco!
NHAMINA – Não, meu filho. Bernardino não é rico, não. Como ele é um homem sério, o António Soares confia nele. Viste? As pessoas devem ser sérias.
JOSÉ – Os filhos dele são bem-educados.
NHAMINA – Desde quando eram pequenos. Tanto os machos como as fêmeas.
JOSÉ – Lumena foi minha professora na Pré-Primária na Escola de Moro Branco em Salina.
NHAMINA – A Luisinha estou a 3ª classe com a Milú na Escola de Pau. E a Biazinha batizou uma boneca à Luisinha, lá na Areia Grande, no dia de Páscoa. Era a primeira Páscoa que o Sr. Padre Gil estava a passar aqui na Paróquia.
JOSÉ – Lembro-me de quando o Sr. Padre Gil cá chegou. Eu estava a jogar a atacada, em frente do sino, com o Armando de Rosa, o Culau de Georgina, O Luisinho de Chica, o Armindinho de Zita e o Pumpum de Lázaro de Nhabé.
NHAMINA – Ele veio substituir o Padre Joaquim Barata que foi ficar na Paróquia do Maio.
JOSÉ – O Sr. Padre Joaquim tinha uma barbona, toda branca!
NHAMINA – Ele passou muitos anos cá, como padre nas igrejas de Nhu Santiago em Achada Igreja, de Nossa Senhora de Fátima em Achada Fátima e na capela de Nhu São José em Renque Purga.
JOSÉ – Foi ele que proibiu o baptismo de filhos de pais que não são casados?
NHAMINA – Não José! Essa medida foi tomada pelo Sr. Padre Gil. Foi das primeiras medidas que ele tomou, logo que cá chegou. Mas primeiro ele deu chance para que toda a gente se casasse à borla e sem precisar de tirar muita papelada. E chamavam a esse casamento de «Casamento Fabal», por que era de graça.
JOSÉ – Lembro-me disso. A sua tia, Tó Martins, mãe do Katxás, casou-se com o Luís no «Casamento Fabal».
NHAMINA – Minha tia, irmã legítima do meu pai, e minha madrinha.
JOSÉ – Por isso que Katxás é meu tio duas vezes. Nhu Lelenxo, o pai dele, é irmão do meu avô, o pai do meu pai! Tó Martins, a mãe dele, é irmã do teu pai, que é meu avô.
NHAMINA – É verdade. Nesse «Casamento Fabal», muita gente se aproveitou a casar-se. (Ri-se) Só o teu tio Lobo Tavares é que não se casou porque não sabia com qual se devia casar.
JOSÉ – Ele e o Padre Gil não se davam bem. Ele não curtia o Padre Gil porque lhe chamava de Pagão.
NHAMINA – Houve um dia que Padre Gil passou por ele, parou o carro, chamou a pequena que vinha com ele, meteu-a no carro e arrancou, deixou o Lobo vir a pé sozinho.
JOSÉ – O titio não ficou zangado?!
NHAMINA – Kobou desde Baixo-Salina até Riba-Txada. Lobo gostava de Kobar!
Riem-se os dois.
JOSÉ – O Guê e o Quim de Nhu Bernardino é que fazem hóstias que o Padre dá na missa, em comunhão, às pessoas que estão confessadas.
NHAMINA – Bernardino tem um filho que está no Seminário para ser Padre. E uma fêmea também está a estudar para Irmã de Caridade.
JOSÉ – Se o papá ainda estava vivo eu pedia-lhe para me pôr a estudar para Padre, para vir andar de mota como Padre Gil e fazer aquelas deitadas nas curvas como ele faz.
NHAMINA (depois de uma risada) – Lembras-te de uma estória que te contei de um tal João Preta? De como ele morreu?
JOSÉ – Aquele ladrão que assaltava as pessoas e suas casas?
NHAMINA – Pois. Todo o mundo tinha medo dele.
JOSÉ – Espero que Satanás não vá sentir medo dele no Inferno.
NHAMINA (ri-se) – Tu és brejeiro, meu filho. Fizeste-me agora lembrar o teu pai. Mas achas que Satanás ia ter medo, alguma vez, de um finado?
JOSÉ – Nunca se sabe. Você costuma dizer-me que Satanás é cobarde!
NHAMINA – Satanás é cobarde perante Deus. Não perante uma alma de pecador feito João Preta.
JOSÉ – O Demónio pode ser cobarde, mas tem muita sorte.
NHAMINA – Tem sorte porquê?
JOSÉ – Fica sentado no trono, Deus manda-lhe criatura para ele fazer churrasco. Deus é mesmo bondoso. Faz festa para bandido!
NHAMINA (faz cruz na testa) – Não podes tirar estas palavras da tua boca, meu filho. Nunca mais. Pra semana tu tens que ir confessar sem falta!
JOSÉ – Desculpe!
NHAMINA – Está bem. Mas tens que confessar e pedir desculpa a Deus.
JOSÉ – Eu vou.
NHAMINA – Obrigada. Conforme te estava a dizer, o corpo de João Preta foi encontrado lá pelas bandas da Lagoainha. Não sei que casa é que ele foi tentar assaltar em Achada Igreja, as pessoas apanharam-no e, como já estavam fartas dele, juntaram-se e o mataram. Levaram o corpo lá para o lado do Touril, começaram a cavar na areia para o enterrar, mas o Sol veio a raiar-se e, para não serem vistos deixaram lá a sua carcaça abandonada.
JOSÉ – Não foram apanhadas? Nunca descobriram quem o matou?
NHAMINA – Voaram zunzuns nos primeiros dias, mas depois se esqueceram.
JOSÉ – Ele era mau!
NHAMINA – Muito mau mesmo! As pessoas sentiram-se muito mais aliviadas por se verem livres dele, do que pela crueldade da sua morte.
JOSÉ – Agora vai queimar-se no Inferno durante toda a sua morte.
NHAMINA – Como, José? Queimar-se no Inferno durante toda a sua morte?!
JOSÉ – Sim. Se estivesse vivo, queimar-se-ia a vida toda. Como está morto, queimar-se-á a morte toda.
NHAMINA (faz um sorriso) – Estás como aquele moçambicano que escreveu o livro que a Luisinha acabou de ler há dias.
JOSÉ – Mia Couto?
NHAMINA – Sim. Luisinha disse que ele inventa cada palavra nos livros dele!
JOSÉ – É verdade. Ele tem estado a inventar palavras novas dentro do léxico português.
NHAMINA – E tu agora inventaste: vai queimar-se no Inferno a morte toda. (Riem-se) Sabes por que é que Manuel Passou se chama assim?
JOSÉ – Não. Não sei.
NHAMINA – O nome dele é Manuel. Como é filho de Nha Dina lá de Choupana, chamam-lhe Manuel de Nha Dina.
JOSÉ – Eu sei. Também é muito ladrão.
NHAMINA – Rouba tudo que lhe aparece à frente. Como se tem praga de mãe.
JOSÉ – Mas ele é trabalhador, mamã!
NHAMINA – Claro que é trabalhador. Só que tem um bichinho ladrão dentro dele que não o larga. Quando ele veio para Porto Santiago em 1969, com seus vinte e tal/trinta e poucos anos, Porto Santiago ficou kasabi. Todo o mundo ficou de olho nele.
JOSÉ – Há dias ele estava a passar em Cutelinho, a Ina Moniz fez questão de meter as suas galinhas para dentro da casa, depois chamou Nha Poncha e disse-lhe: - Cuidado, Nha Poncha; Manuel de Nha Dina está na beira.
NHAMINA – É mesmo triste! Não sei por que é que uma criatura rouba assim! Ele é trabalhador! Descarrega sal dos Faluchos, «Aleluia» e «Belmira» que vêm do Djarmai. Ele pega num saco que deve pesar uns 80 quilos por aí, põe às costas e leva desde o Cais até às tabernas do Lelenxo e do José Quintino em Porto-Acima.
JOSÉ – Não lhe pagam?
NHAMINA – Dão-lhe copo de grogue, algum cigarro para ele fumar, às vezes dão-lhe umas moedinhas. Quando ele fica bêbedo, o que quase sempre acontece, deita no chão no meio da rua.
JOSÉ – E por que lhe chamam Passou?
NHAMINA – Chamam-lhe Passou, porque um dia ele ia a passar perto de um fogão-prima que estava acesa e com uma panela a cozinhar, não resistiu, pegou na panela e pôs no chão, apagou o fogão e levou-o para trocar com grogue na taberna do Lelenxo. Acabaram-se por descobrir que foi ele, o que não foi difícil, porque poucos ladrões havia na zona. Manuel de Nha Dina era sempre o suspeito número um em todos os roubos e furtos que surgiam.
JOSÉ – Recuperaram o fogão?
NHAMINA – Achas?! Desgraçado tem boca bedju. Nunca diz a quem, nem onde vende as coisas que ele rouba.
JOSÉ – Não o levaram a Regedoria? Se o tivessem levado, o professor José dava-lhe duas dúzias de palmatórias e ele tomava juízo.
NHAMINA – Na Regedoria, sempre que lhe perguntavam onde teria vendido o fogão, respondia tão simplesmente: Já passou, pá! O que passou, passou. Daí, ficaram a chamar-lhe Passou.
JOSÉ – Mãe, o papai costumava sentir problema de saúde?
NHAMIN – Nunca.
JOSÉ – Então por que ele morreu tão de repente? Terá sido comido por alguma feiticeira?
NHAMINA – Não, meu filho. A morte é um mistério que só Deus sabe explicar.
JOSÉ – Ele não foi a casa de nenhum vizinho que lhe pudesse ter dado água… ou qualquer coisa para comer?
NHAMINA – Não. Ele acabou de jantar, foi chicrar o cabrito e o bezerro, depois torrou o tabaco e fez o seu kakã, encheu no tabaqueiro, deu-me uma pitada para cheirar, perguntou-me se o tabaco estava sábi, eu meneei a cabeça em afirmação à sua pergunta, fomos rezar o terço, depois ele foi deitar-se e até hoje não acordou.
JOSÉ – Não se queixava mesmo de nada?
NHAMINA – Ele estava pronto, são, de saúde. Não tinha febre nem dor de cabeça. Nem constipado ele estava!
JOSÉ – Então deve ser que teve alguma atacação, ou que apanhou congestão enquanto estava a dormir.
NHAMINA – Atacação… talvez. Mas congestão… não me parece. Ele tinha jantado tarde-cedo. O teu pai era um homem muito manso. Costuma-se dizer que as pessoas mansas não têm vida longa.
JOSÉ – Então uma pessoa tem que ser má!
NHAMINA – Não, meu filho. As pessoas mansas, Deus as chama cedo para o Céu, para o pé dele.
JOSÉ – Mas por quê? Então na Terra só devem ficar pessoas más?
NHAMINA – Os bons, Deus não os deixa aqui a sofrer. É por isso que o teu pai morreu rápido. Se ele fosse mau, padecia em cima da cama, vituperava e penitenciava, para pagar pela sua culpa.
JOSÉ – Então Deus não devia ter posto criaturas no mundo, se Ele mesmo as mata cedo só por que são mansas!
NHAMINA – Esses são justos. São os bons. E Deus os chama cedo para o Céu, para o pé dele.
JOSÉ – Por que então Ele não os manda diretamente para o Céu sem que primeiro passassem por esta prisão que Ele deu nome de Mundo?
NHAMINA – Ele nos pôs aqui primeiro para nos provar, menino. Para nos testar se somos ou não amigos Dele. Se prestamos ou não.
JOSÉ – Já não estou a perceber-lhe, mamã. No catecismo nos ensinam que Deus é todo-poderoso, que sabe tudo, que vê tudo e está em toda a parte. Quer dizer: Omnipotente, Omnisciente e Omnipresente.
NHAMINA – E tu tens dúvidas disso?
JOSÉ – Não é por me duvidar. Eu quero é entender. Porque se ele sabe tudo, conforme diz o catecismo – a mesmo antes de acontecer; se vê tudo antes de surgir; e está sempre presente em todas as situações e circunstâncias, então para quê nos põe à prova? Não acha que Ele deveria saber, a priori, que vínhamos fazer asneiras?
NHAMINA (furiosa) – Para com isso imediatamente, desgraçado! Criatura sem fé! Eu bem dizia ao Patchane que não te ia pôr na escola para estudares mais do que primeiro/segundo grau, porque já sabia que vinhas sair com a mania de ler esse livro de porcaria, que vocês chamam filoso… merda. (Tapa a mão na boca) Deus me perdoe.
JOSÉ – Desculpe, mamã. Não foi por mal que eu disse.
NHAMINA – Estás a querer perder a tua fé, meu filho?
JOSÉ – Desculpe-me.
NHAMINA – Olha o teu pai; hoje ele deve estar um Santo, sentado lá em cima no Céu, por causa da sua fé que era forte.
JOSÉ – Papá deve estar ao lado do Nosso Senhor, juntamente com Jesus Cristo, Virgem Maria Parida e São José Carpinteiro a ouvir os Anjos tocarem as flautas e os Santos a dançarem-se para os divertir.
NHAMINA – E a rezar e pedir por nós. Ele gostava muito de rezar. Não faltava a missa nem um domingo. O seu terço então!… Por onde ele ia, levava-o consigo. Rezava e oferecia para todos os pecadores; seus amigos e inimigos. Por isso é que o espírito dele deve estar na Glória. Só o espírito de quem fez boas obras na Terra é que vai para o reino do Céu.
JOSÉ – E o mau vai prestar contas ao Diabo no Inferno.
NHAMINA – É verdade. O nosso corpo será enterrado porque ele é carne e carne é pecado. É a tentação. Por isso será enterrado para que bagabaga o devore. Mas a nossa alma não. Ela é o espírito, tem a obrigação de prestar contas: no Céu ou no Inferno.
JOSÉ – Por isso que não faço nada errado. Não faço nada que me estorve ir ao Céu quando eu morrer. Bagabaga pode comer o meu corpo, mas o Diabo não vai atiçar lume para chamuscar a minha alma.
NHAMINA – Pede a Deus que reponha a tua fé… te livre do fogo do Inferno.
JOSÉ – Quando eu morrer, quero que Deus coloque a minha cama no mesmo quarto com a do pai. Devem comer lá bons pitéus!
NHAMINA – Lá não existem dessas drogas. Tudo ali é espiritual. Não existem fatiotas. Ali se come Txaskan oração que é sustento das almas.
JOSÉ – Oração enche a barriga, mamãe?
NHAMINA – A oração enche o espírito, meu filho. Uma pessoa quando morre, já não tem barriga, já não tem o estômago. Já não come nada mais pela boca. Isso faz parte do corpo. E o corpo será enterrado. Só o espírito, se a pessoa tenha feito boas obras aqui na Terra, é que vai para o Céu. E ali as almas comem somente oração.
JOSÉ – É verdade. Estou a tratar finado como se fosse gente.
Riem-se, Nhamina arregaça a saia e tira uma moeda do bolso.
NHAMINA – Toma este dinheiro e vai marcar uma missa à alma do falecido. Passa por uma taberna e compra alguma coisa para as pessoas que vêm à missa fazerem o quebra-jejum. Compra bolacha, açúcar, café e leite em pó. Também compra um pacote de vela, um litro de petróleo e uma caixa de fósforo. A Luisinha foi catar lenha, já não deve estar a demorar. Eu vou matar um boronsete, ponho a salgar para cozinharmos no feijão para o almoço depois da missa.
José mete o dinheiro no bolso, apanha uma caneca de água no pote, lava a cara, esfrega os dentes com o dedo e sai.
CXLV CENA
Montado num burro, José despede-se da mãe que aparece em cima da porta.
JOSÉ – Adeus, mamã.
NHAMINA – Deus te acompanhe. Santa Virgem Mãe te proteja. (Ela vai para dentro, a Luisinha chega e vai descarregar no quintal, um feixe de lenha que traz à cabeça) Corre rápido, minha filha, diz ao José para passar pelo Sr. Administrador e dizer-lhe para o assentar na lista de contratados para Angola. Para lhe dizer que já vai fazer 16 anos, que o vosso pai, que era o sustento da casa, Deus o tomou… (limpa os olhos) depois de amanhã faz um ano.
LUISINHA (sai a correr e a chamar) – JOSÉ! … JOSÉ, UHUUU! (José faz parar o burro e volta a cara para trás) José, a mamã disse para passares pelo Sr. Administrador e dizer-lhe para assentar o teu nome na lista de contratados para Angola. Para lhe dizeres que já vais fazer 16 anos e que o papá que nos sustentava morreu há um ano.
JOSÉ – Diz à mamãe que vou, sim. (Retoma o caminho e Luisinha volta à casa. Ele anda um bocado, para e desce do burro, ajoelha-se, eleva a mão para o Céu e pede a Deus com devoção) Ah, meu Deus, com 15 anos de idade perdi o meu pai… a minha mãe agora manda-me ter com o Sr. Administrador para pedir-lhe que me aliste como contratado para Angola. Mas eu rogo-Lhe com toda a fé, que me dê vida e saúde, força e coragem, para que quando eu for grande, me sentar na soleira da minha porta, debaixo da sombra do meu teto, comer-me dos proventos do meu trabalho, da força dos meus braços e do suor da minha testa. (Limpa as lágrimas) Mande-nos chuva por favor, molhe-nos o chão, não me deixe separar da minha mãe e da minha querida irmã pequenina.
Galga novamente ao dorso do burro e continua a viagem.
* Republicamos a parte 31ª, a pedido do autor, uma vez que a anterior tinha incorreções. O autor pede desculpas aos leitores pelo transtornos causados.
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