TXONBON
7
Um galo canta por três vezes do lado de lén mendi, e tu solitário, sem um pedro sequer que te negue, sem cristo algum em que crer ou seguir. E foges ao abraço apaziguador da amada, galopando, infante ranhoso pela ribeira de txonbon, rubon grandi acima até à encruzilhada das duas ribeiras, e deparas-te com a sombra gigante dessa sonda americana (que fizera o primeiro furo à cabeceira da horta do teu padrinho, pazinho, no lugar do colonato, e cujos borbotões de água salgada sentes ainda molhar a tua face orgulhosa e os teus pobres pés na madrugada dos caminhos) e ouves as vozes de dirês, xilu, nené buldoza, betu maladi, jil mikániku, phil enjinheru, com a segurança de quem conhece os ardis da noite e as razões da escuridão.
(Tu temias a noite destas ribeiras e seu tropel de feiticeiras afamadas, amiúde transformadas em bravias chibarras e fogosas éguas, vezes amanhecidas «amarradas» pelos sortilégios do velho pompílio).
Donde tu vivias, no meio da caneta e da enxada, ladeado pelo remo e pelo arpão, conjurando o escuro com a kafuka ou um periclitante padagó, subias a achada com a cachupa fria di parmanhan na kofu midju para a faina da korta i rosa padja (às vezes para largares, matreiramente, as alimárias no lugar de outrem), ao cieiro e frio de janeiro, semi-abertos os olhos ao sol que vagueava de portal a ponta txada, para depois se converter na poalha que de tarde caía sobre as casuarinas di txada baxu, e sobre as faces daqueles que mais amaste. (Em verdade só a palavra guarda esses lugares da poeira definitiva, e hoje dá forma à lembrança, à falível enumeração, agora que nenhuma noite veste de pânico a madrugada dos teus passos).
Mas é a solidão o teu presente (o que mais amaste também), quando infante fugias aos deveres domésticos e te embrenhavas pelos vastos matos de pintxera, djedjé ou biroti santxu, até um sol esmaecido te indicar o caminho da casa paterna.
É por isso que regressas pelos meses todos, para atares as pontas do teu passado: em outubro, para os longos passeios para lá da ponte, passando o jardim da cruz vermelha, rememorando seu odor a goiabas maduras, até trás di kulónia onde pastam as manadas buliçosas, sob o olhar sapiente do velho djuzé borsi, e os gafanhotos são livres e vivazes, livres no esplendor do verde, temíveis ruminantes das acácias rejuvenescidas, e onde não te livraste do susto provocado pelas rajadas de um imprevidente instruendo, talvez amaldiçoando a lama da segunda incorporação, agosto, tempo de trovoadas e do rebentar das águas.
Junho é o saltar das fogueiras di sandjon, com o ovo no copo com água, revelando na manhã seguinte os destinos de boda, viagem ou morte. (Essa tentação da profecia bastas vezes triunfou sobre a simples evidência do possível, e mesmo que se engane rotundamente, como sempre, de nada te vale a profundidade e a segurança da tua razão).
Mas tu és aquele que nasce para se adiantar à verdade da morte, para afirmação de que são obscuros os caminhos da grandeza. Então um tempo virá em que terás a altura dos cumes circundantes, dos abençoados nevoeiros e chuva rija, e outro tempo para superares as peias da identidade. Mas agora é tempo de contemplar o nascer e o pôr-do-sol como um prodígio, e apascentar o que a tua imaginação engendra, mas a tua língua não pode abarcar nem suportar ainda.
Um tempo virá em que o susto e o arbítrio não cercarão as províncias do desassombro, mas agora passas e vês, no famigerado dia da raça, os homens agrilhoados por só ansiarem a liberdade, guardados por cimeiras torres de vigias que atemorizam o teu coração de menino, em negro campo de terrores, antes da chegada de julho do nosso ourgulho (que antes fora já um aberto e jubiloso maio), mesmo se essoutros também conspurcam o coração da liberdade acalentada.
E embora invectives os novos, velhos e vindouros usurpadores, não colocarás a ti esses dilemas venenosos tais como revolução versus democracia, independência versus autonomia, porquanto no teu reino de exílio e deliberação a pátria de verdade é apenas a tua íntima liberdade.
Transpuseste o terreiro e o poial para seres aquele que glorifica as vítimas colectivas, sem prescindir do direito de celebrares o que é vituperado pelas hostes nas ruidosas assembleias onde com apertos de mão e manhentas fanfarradas se arrebanham os desprovidos de quinhão.
Mas junho é o pátio memorioso da escola agora em ruínas, da imponente acácia que vigiava as brincadeiras de polícias e ladrões, txapu txokoleta, dja n pega malandru, e onde adquiriste a arma da palavra e o esteio da singularidade, debaixo desse vermelho de um pungente simbolismo, nem vencedor, nem prisioneiro dos sonhos que de ti nem reclamam o heroísmo tímido que governa os dias todos da tua vida.
Acalentado por tantos cantos de orgulho e heroísmo, eis-te arribado ao mês de todos os meses: mês da ânsia crua se virá a última chuva para a completude da azágua; da escuridão mais tremenda que abafa o soluçar das candeias no interior das casas de poucos bens; mês duma sede que te será eterna: a do saber que se bebe com arrebatamento renovado.
E eis-te então infante buliçoso caminho da escola, posto escolar nº 54, nesse verde colonato de então, pelas ribeiras de areias escaldantes, di spinhu katxupa i bitxu padja (que tanto alvoroço te provocava, e os colegas velhacos teimavam em atirar-te para gozo deles e desespero teu), o aceno da mãe ou das irmãs na outra margem da ribeira, depois, no silêncio solene que só uma luz vivaz ousava desafiar, a hora da invenção dos nomes para o mundo novo que a tua curiosidade leitora desvelava, para cada nascituro ser no grande livro da existência.
Estás como o caçador que entocaia a presa, abrigado atrás das paredes da memória, mas as pancadas fortes do coração denunciam que estás na presença daquilo que amas.
Onde os companheiros desses dias, as ariscas raparigas, os cães ferozes, paduku ku pilotu, os imponentes bois do campo de concentração, maiu i pintu, e todas as outras vivazes alimárias, saciadas e felizes, junto ao último poço, à ilharga do velho e majestoso spinhu pretu que a um irmão metera as suas vivas brancas farpas pela canela, provocando um baque no coração da mãe, a essa descendo ainda, vinda da feira de santa catarina, as inúmeras curvas de figueira muita?
Onde a primeira fanfarra, que seguíamos aprumados à hora dos ensaios, a cadência da marcha militar, o hino da pátria soberana cantado à hora em que na nossa fronte se misturavam o orgulho e a decisão ao retumbar dos versos «esta é a nossa pátria amada» ou «nós vamos construir na pátria imortal...»? Perguntas-te: quem é essa que ainda corre diante dos teus olhos para retribuir a carícia do sol e o abraço do vento?
Sabe-te agora a maresia esta parte do percurso, porque chegaste aos lugares da beira-mar: rabu koku, boka lagoa, portinhu, ponta baxu, rainha, e a faina agora é o lançar da rede: do tio fifi, ou maninhu barela, virjíliu, ntoni karminha ou djuzé san rei, ala de norte, ala de sul, gritados para os que com firmeza redobrada a puxam em terra. E tu, mergulhador intrépido, aguardando o sinal de chamada para o desembaraçar da rede presa nalgum baixio mais saliente.
Ó mar que não sei se és mulher, virgem ou prostituta, mas sabes-me a corpo em navegação erótica, quando me sobes pelas pernas desnudas e eu monto em ti no estremecer das tuas vagas, nos lampejos de salvação ou morte, no cheiro a salmoura de tantos que demandam os teus caminhos, mas não sabem que nome o teu, que forma a tua, porque amargos são o desejo e o arrebatamento quando o destino é esse sul de todos os padecimentos, mesmo se no fito de fugir às fomes grassando nesses campos de outrora.
Quantas canções tristes nos proporcionaste, ó mar, quantas madrugadas do carpir e do lamento por aqueles que não voltaram nem voltarão? Não quero o teu sussurro harmonioso de entre abril e agosto, mas o som desmedidamente agreste dos meses das azáguas, ou dos baixos meses do ano e da vida heróica que recomeçam.
Dizias outubro, o mês de todos os meses: quando a voracidade dos gafanhotos ficou lá para trás, a tartaruga verde já não é flagelo que te incomode, o bitxu pretu nada diz ao denso verde que se alastra como um sonho e obedece apenas à cadência da ramonda, trismonda, ou korta flor (ou mesmo o extirpar dalgun padja bedju), antítese do caos e da tristeza que vezes o terrível harmatão baixa sobre cumes e casas, sobre campos e baldios, com a tenacidade com que a vida aqui resiste de igual modo.
Agora caminhas pelo sábado como se te submetesses ao aprazado inquérito do destino, tendo a teu favor essa pressa de homem que não se demora diante da apreensão, mas para um melhor seio estuga o passo, mesmo se ameaçada a jornada pelo mais impreterível dos desígnios.
Descido desde as alturas onde o celeste construtor calculara o pousio para a veneração ancestral, postaste-te diante da antiga escola tua, uma ruína que te acolhe agora em silenciosa tristeza, qual se o ímpeto de todo o grito fosse mortal ameaça às coisas vivas por que peregrinas entre um continente e outro, e evocaste então esse primeiro mestre teu, antónio borges de seu nome, porquanto tal é o traço que em ti deixou que, apesar da singular tristeza que amarfanha o teu espírito, não há melhor palco para dizeres da tua gratidão.
Eis que a tarde te transporta agora aos cânticos exuberantes por que se bendizia a glória dele, e a geral impotência quando descia a língua da lestada, ou outubro roncava as bocas ávidas sobre os campos de milho & companhia, que sequiosamente aguardavam o arrebatamento da última chuva.
Ou chovia e as grandes massas de água passavam mesmo medonhamente na ribeira encostada à casa, ou à porta da escola. Por vezes tão fortes eram as chuvadas, tantas as águas submergindo a ponte e as casas perto dela (de lari i nhu betu), que se recorria ao ancestral repicar das panelas e cruzar dos paus de pilão, a ver se amainava tanta bátega desprendendo dos céus, transportando caules, transportando frutos que não comemoraremos, porquanto periclitantes os indícios, sem a garantia da safra gorda que posterga o lamento e o azedume.
(E é regressado à casa da infância que tornas ao labor da edificação memoriosa, que é, em verdade, a levedura que transforma em perenes signos o que palpa a determinação tua, só vida que nos visita quando melhor acariciamos a desventura.
Tal é um dom que amamos como as brasas da mais alta interrogação, ou, encostados ao chão, nos despimos das nossas dores, e na nudez equânime dizemos aos deuses que um tempo há para acrescentar ao espírito a cólera, essa maré que nos subtrai ao refúgio da grandeza para o ardor da querela, que sempre fizemos o ínvio caminho para a festa da fraternidade.)
É dezembro e estás postado na barreira, ao frio e ao cieiro da manhã, de atalaia a essas mulheres que irrompem dos caminhos rendilhados para a estrada principal que desce desde séra malageta, gindon, kaza xoka, txada longera, kontador, txada grandi, até ao txonbon do nosso pretérito nascimento e baptismo, trazendo ovos à ilharga, trouxa ou feixe de lenha à cabeça, serenas e recatadas demais para desmentirem o que a tua viva imaginação de rapaz converte em fonte de suspiros, promessas de aventuras a que um sol humilde diz que sim, rodando pachorrento para prover a manhã de suficientes matizes, eternamente desbaratados pelos soluços das incontáveis despedidas. Embora a alegria persista na eloquência rude das suas palavras, o vento peregrino traz a conta das tombadas nas grandes carestias, deitadas às valas sem nomes que as façam mães, filhas ou irmãs, nascidas em tal data, ou em tal data perecidas.
Mas é dezembro e tu aguardas o advento das luzes, como aguardam essoutras pacientes mulheres a vez ao redor do forno onde os odores se misturam na tua memória de menino, mas um travo a chicória ou a café de pintxera há-de erguer-se para te lembrar a imperturbável humildade dessas vidas e sua suma mortalidade. Quem sabe se a embriaguez do fumo plantará ímpetos no corpo das desfalecidas, colocará coroas na cabeça das despossuídas, antes que se entreguem ao grande silêncio e ao triste definitivo olvido, depois da decadência na pedra dos poiais, que apenas um solitário gato guarda agora com a imperturbabilidade por ti longamente adquirida, enquanto percorrias os caminhos do mundo e as estradas do destino, e, hoje, um frio dezembro recobre dessa cinza que desce imperceptível, para que nunca se note que no lugar do forno jaz agora um montão de pedras caladas, sem comércio algum com as altas luzes do firmamento e nem dizem dos doces sonhos nos nevoeiros multiplicados desse mês.
De certo modo, é esta azáfama que paga o proveito que não dissipa, porém, a totalidade da inquietude, quando a reminiscência acode pelo viés mais alto e lastra a incandescência sua pela espessura nossa.
Com os braços abertos ao que se apura ainda no termo da jornada, partes tu, partem elas, partiremos nós ao assalto que não admite a derrota, porquanto sempre um mais alto lume caldeia a decisão, e a fadiga ou o fracasso moram longe das costas da sofreguidão e da impetuosidade. Partes, e não é para estenderes o teu solilóquio que peregrinas por estes palcos, mas porque, mesmo se recurvadas sob os lastros de tantos padecimentos, FALAM AS SILENCIOSAS SOBERANAS DA TERRA.
É debaixo de promissoras nuvens que se fundem a memória e a imaginação, e tu procuras o desenho da casa com as artes da palavra, porque perdeste para sempre a régua e o compasso, a enxada e a peneira, a kafuka e a xila, o toleti e a pota, longe da empena e do batente, esses profícuos lugares do louvor e do esconjuro, e vais de encontro às casas que guardam estranhos sonhos das almas que se tornam visíveis na incandescência dessa escuridão que vela o rosto dessa que franqueia as suas portas com um dúbio sorriso que só tu podes agora compreender.
Bates às portas da morada antiga, mas ouves apenas a voz da errância que te repete: «parte, aqui já não há nada para ti; inventa outra pátria de palavras lá onde o destino te levar». Mas tu desejas findar nesse mar ao sol-pôr, no reino dos que cedo abraçaram a solidão e a salmoura, as luxuriosas tempestades que evocas com grato estremecimento, porque a dor longínqua dorme domesticada nos versos do poema, e tu caminhas agora pela pátria do presente, proibindo-te as lágrimas e o temor, mesmo quando é o som da morte que ainda escutas, abafado, e espanta o teu entendimento o furor da existência que brota das palavras, que agora sabes a via por que te livraste duma pobre vida de assentimentos.
*José Luiz Tavares (Balixi, Balitxa, Balixa, Palixi, Balik, Baldik) nasceu a 10 de junho de 1967 em Paraíso Apagado por um Trovão. Perdido entre a filosofia e a literatura, perscrutando a Agreste Matéria Mundo, em modo Desarmonia, cantou Lisbon Blues. Nessa Cabotagem & Ressaca aportou à Cidade do mais Antigo Nome, urbe donde divisou o pétreo Coração de Lava. Dali, faltando-lhe a intrepidez corsária, intentou então simples Contrabando de Cinzas. Na escala seguinte sumariou tanta viagem-vida em Polaróides de Distintos Naufrágios. Revelada a Rua Antes do Céu, e vendo Arder a Vida Inteira, soube-a Prólogo à Invenção do Dilúvio. Mas Com que Voz/Ku Ki Vos reportar as Instruções para Uso Posterior ao Naufrágio? Tristezas? Estas: umas Rimas Reguilas que não chegaram a sair da Arca do Banzé, nem À Bolina ao Redor do Natal, para a filha quando infanta imaginando Os Secretos Acrobatas, dizendo Tás-me a Atrofiar ao pai ensaiando uma divertida Ópera do Bacano. Tais As Irrevogáveis Trevas, não sabe quando verão a luz dos escaparates. Afinca-se a atirar mais do que Uma Pedra Contra o Firmamento — arremessos de um rezinga com o dedo meio apontado às fuças do mundo, esta ainda este trágico ano do senhor. Lá mais para a frente há-de chegar ao conhecimento do mundo que não há Nem um Consolo Tombando das Goteiras da Catástrofe, sobre os dias em que as musas discorreram imperturbáveis, mas com premência, sobre o tempo do contágio. Na língua-mãe assegurará que Ku Sinza di bu Nomi ta Skrebedu Iternidadi. Ao lugar di biku tornará nas intermitências do seu labor em estrangeiro chão, mas à Pátria Soletrada à Vista do Harmatão voltará em definitivo, um dia, para diante do mar e das montanhas arder de um outro modo. Entre causa e queda, sob o signo do grão zarolho, atirou-se à vida com quantas ganas lhe vaticinaram os mofinos fados. Sobrevive ao tempo do mundo sem estar conectado a nenhuma rede social, mas a paixão e a amizade são-lhe sofisticado hardware.
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