Nesta entrevista José luiz Tavares* fala do seu labor poética e afirma, entre muitas observações, que “a arte é o único espelho que o humano tem para se mirar, para tentar entender o que a vida é, pois a vivência é opaca; enquanto o homem vive, ele está imerso na opacidade, daí que ele necessite da distância artística, como bem viu Aristóteles, e Nietzsche viu doutro modo: a arte como suprema mentira para nos libertar da ilusão e da tirania da verdade.”
Instruções para uso posterior ao naufrágio é um livro que, de alguma maneira, configura a sua arte poética? Como o vê no contexto da sua obra?
17 anos depois de ter publicado o primeiro livro, acho que regressei ao lugar onde comecei. Aliás, em verdade nunca cheguei a sair de lá, pois estes motivos — a reflexão metapoética, ou mesmo densamente filosófica, a derrisão e algum escárnio, o diálogo com a fotografia e certos autores — sempre estiveram disseminados pela minha obra.
Convém esclarecer que quando falo do começo não estou a falar do primeiro livro editado, mas do primeiro escrito, Agreste Matéria Mundo, e que apenas vicissitudes editoriais fizeram com que não fosse o primeiro editado. Esse livro iniciático e inicial é a pedra basilar, trave-mestra onde já estão contidos todos livros que entretanto escrevi e virei a escrever no futuro.
Podemos lê-lo também como uma cartografia das suas afinidades electivas, poéticas, estéticas, com poemas em que faz referência a poetas da Língua Portuguesa, Ruy Belo, Nemésio, Cesariny, mas também, Mário Fonseca, Luís Carlos Patraquim ou João Cabral de Melo Neto?
Ele dá a percorrer alguma das minhas afinidades electivas, ou só a simples circunstância de se estar a ler um livro, um texto, um autor, e ele nos interpelar, pedir uma resposta. Neste sentido não há a célebre angústia de influência, mas a alegria do encontro, o júbilo duma resposta, a possibilidade de um diálogo. Aprendi isto há mais de vinte anos, em luminosos encontros com o Alberto Pimenta, um indivíduo de um feitio tremendamente díficil, mas autor de um pensamento raro sobre a poesia, em portugal , de há 40 anos a esta parte, desde o fundamental «O silêncio dos poetas».
Também há referências às imagens de Paulo Nozolino ou Álvarez Bravo. Qual a importância das imagens no seu universo poético? E destas ‘meditações’?
A minha poesia, mesmo sendo do pensamento, muito distante do lirismo dor de dentes, é duma visualidade tremenda. Basta recordar que o meu primeiro livro, «Paraíso Apagado Por um Trovão», tem uma reconhecida génese visual. Muitos dos poemas nasceram instigados por pinturas da Graça Morais retratando as mulheres cabo-verdianas e fotografias de Inês Gonçalves sobre certa realidade humana cabo-verdiana, primeiro publicadas no suplemento DNA do Diário de Notícias, e depois editadas em livro no âmbito dos antigos Encontros de Fotografia de Coimbra. Sendo que a pintura de Van Gogh e de Turner, a fotografia de Bernard Plossu estão directa ou indirectamente na génese de muitos dos poemas dos meus dois primeiros livros.
Fiz ainda dois livros com o fotógrafo Duarte Belo, um sobre a primeira capital histórica de Cabo Verde, intitulado «Cidade do Mais Antigo Nome» e outro sobre o vulcão do fogo intitulado «Coração de Lava». Em ambos os casos, os poemas foram como que uma espécie de guião para o fotógrafo transgredir na sua livre liberdade criativa. Em modo inverso é o livro, ainda inédito, «De Pedra sobre a Pedra do Destino», em que os poemas foram escritos a partir das fotografias de Fernando Guerra.
Esta é uma poesia que se pensa a si própria, pensa o mundo enquanto dado e enquanto constructo da linguagem, pensando, concomitantemente, as suas condições de possibilidade. É uma poesia que não consente uma leitura ou uma teoria ‘de fora’, digamos assim. Ela tem que ser lida à luz daquilo que a sua teoria interna propõe e, nessa base, aquilatar do seu conseguimento. É uma escrita contra as correntes dominantes no universo da língua portuguesa, mesmo encontrando por vezes afastadas semelhanças de família. Não tem nada que ver com as constelações dominantes em tais literaturas, o que, por si só, já é bom, pois não são as constelações dominantes que fazem o brilho duma literatura mas as grandes estrelas solitárias.
Há no livro um pensar, um discorrer sobre a própria poesia, sobre a língua, o poema, o ‘rimar contra a poesia’ num sentido disfórico. E esse o tom essencial da sua voz poética? Como é o seu ‘ofício’ de poeta? Como cai na ‘emboscada’ do poema?
Sim há esse discorrer, em que muitas vezes o argumento se distende e desdobra num contra-argumento. Utilizar essa linguagem pode parecer um pouco estranho, mas esta poesia tem estranhas pretensões, começando pelo subtítulo «meditações», que não é propriamente um género literário, mas filosófico. Quererá isto dizer que pretendo fazer filosofia em poesia? Nada disso. Quero escrever apenas uma poesia que pense, mesmo quando descrê das suas próprias possibilidades, e talvez aí resida a força da sua estranheza.
Mas porque se persiste ainda apesar dessa descrença, e dessa manifestação de impotência? Porque a arte é o único espelho que o humano tem para se mirar, para tentar entender o que a vida é, pois a vivência é opaca; enquanto o homem vive, ele está imerso na opacidade, daí que ele necessite da distância artística, como bem viu Aristóteles, e Nietzsche viu doutro modo: a arte como suprema mentira para nos libertar da ilusão e da tirania da verdade.
O meu ofício de poeta não é a espera paciente até que o poema se me revele. Eu parto em perseguição do poema, pois acredito que nem o primeiro verso sequer nos é dado. Pelo menos no meu caso não é assim. Há o labor porfiado, o corpo a corpo com a matéria, que no caso é a palavra, até que a ideia se consubstancie numa forma que lhe é, porém, imanente, e nunca exterior, mesmo se por vezes de desengonçado artesanato se trate, bom para o caixote de lixo, o amigo mor de todo o escritor.
Num poema chamado ‘’Nova Teoria do soneto’’ diz «margem demasiado estreita para conter a fórmula da felicidade». E, no entanto, já trabalhou poeticamente o soneto. O que lhe interessa particularmente género?
Cheguei à escrita do soneto por via da tentativa da tradução do Camões. Eu não percebia nada de métrica, acento rítmico e coisas que tais. Quando me lancei na doida empresa de traduzir os sonetos de Camões, para além de não dispor de uma tradição, um modelo que sustentasse o poema na língua de chegada, eu próprio não era industriado na arte e na técnica de escrita do soneto, que me proporcionasse o necessário engenho para estear o poema em língua cabo-verdiana.. Daí, parto então para a experimentação do soneto em português, lendo muito, para além de Camões, outros grandes como Gregório de Mattos, e um notável sonetista brasileiro contemporâneo, Glauco Mattoso, que eu conhecia enquanto poeta concretista dos seminários com o Alberto Pimenta. Desse labor resultaram cerca de três centenas de poemas que, peneirados, viriam a dar um livro de pouco mais de oitenta sonetos, publicado no Brasil em 2008, sob o título «Desarmonia», incorporando aí, de modo indirecto, a asserção de Theodor Adorno da dissonância como verdade da harmonia.
A partir daí senti-me minimamente preparado para defrontar Camões, sendo a grande dificuldade não dispor de um modelo coevo, ou qualquer outro, como suporte para o projecto de fazer falar Camões em língua cabo-verdiana.
E o que tanto o fascinou em Camões para se lançar na grande empresa de traduzir os seus sonetos? Como foi esse trabalho? Que dificuldades encontrou na tradução para a língua cabo-verdiana?
Tentar traduzir Camões talvez tenha sido um acto de loucura momentânea, numa altura em que parti uma perna, e então como tinha muito tempo disponível meti-me em tal aventura, sem saber bem ao que ia ou no que me metia. Aliás, é a apresentadora do livro que chama a atenção e põe em realce esse facto de em 300 anos (tempo mais ou menos que a língua cabo-verdiana adquiriu feição própria evoluindo do pidgin), ter sido traduzido um único poema de Camões, Endechas a Bárbara Escrava, por outro Tavares, Eugénio, nos finais do século dezanove.
A decisão de traduzir Camões não foi só pelo fascínio, mas pelo grau de dificuldade, pela resistência destes sonetos à apropriação pela língua cabo-verdiana, bastas vezes enganadoramente próxima da língua portuguesa, mas em certos aspectos tão distante como na morfossintaxe ou na regência dos verbos. Foram essas dificuldades que se tornaram no maior fascínio e no aguçar do engenho, como se pode constatar pelas inúmeras versões de determinados poemas que apresento na segunda parte do livro.
Como tem sido a reacção ao livro, de que forma Camões foi acolhido pelos cabo-verdianos na sua língua?
Tenho tido reacções de algumas pessoas conhecedoras, poucas (o que é perfeitamente compreensível, pois duvido que haja alguém com menos de 55 anos em Cabo Verde que tenha lido Camões), que têm a noção do trabalho que está ali (um trabalho de 15 anos) e que visa dotar a língua cabo-verdiana, uma língua de perfil essencialmente ágrafa, obras de relevante teor literário que ajudem a construir e sedimentar um cânone poético erudito em língua cabo-verdiana.
Perguntas-me pela reacção dos cabo-verdianos, mas gostaria de saber a reacção de Portugal, a não ser que continuem a pensar que o português é língua do território (como a define a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos), erro que a coloca numa posição de grande fragilidade em Cabo Verde, e que urge corrigir para o desenvolvimento sem atritos destas duas línguas históricas dos cabo-verdianos.
Este livro existe apenas devido à disponibilidade de um poeta maluco e de um editor corajoso, a abysmo.
O ano passado publicou vários livros. E para este novo ano quais os projectos? Há novos livros em preparação?
Gosto mais de falar de livros já editados, mas posso dizer que para este ano talvez venhamos a ter ainda «Uma Pedra Contra o Firmamento», livro composto por textos meus avulsos, entrevistas, polémicas, e estudos, análises e críticas de estudiosos que se têm debruçado sobre a minha obra. Esteve também perspectivada a edição dos poemas de Álvaro de Campos em língua cabo-verdiana, um livro de poemas juvenis, e ainda um outro de poemas infanto-juvenis sobre o natal, premiado há mais de dez anos pelo ministério da educação do brasil, mas nunca editado, mas com essa situação de pandemia terão que aguardar melhor oportunidade. Pelo meio vou trabalhando em dois projectos de livros, sendo um deles «Pátria Soletrada à Vista do Harmatão», um livro de viagens sobre as Ilhas Cabo Verde e as ilhas da diáspora, que vai implicar inúmeras deslocações às ilhas, assim haja disponibilidade financeira e de tempo para essas viagens.
E «Arder a Vida Inteira»? Parece, de certo modo, estranho no meio dos teus livros anteriores.
Arder a Vida Inteira é um livro que eu quis que fosse diferente dentro do conjunto da minha obra, que são doze livros em dezasseis anos. Diferente no sentido de, através de poemas que quis que fossem fados e canções (não sei se o são) reflectir um pouco sobre a pulsão amorosa, a perda afectiva, a volatilidade dos sentimentos, e ainda um ensaiado regresso a lisboa como matéria de poesia, cidade que recriei poeticamente em livro de 2008, Lisbon Blues, publicado no brasil, e depois publicado em 2015 em Portugal pela abysmo. Escrevi estes poemas pensando que talvez possam ser cantados, mas há neles uma dura tessitura formal, um requinte vocabular que, se à primeira podem parecer obstáculos de monta, nisso também pode residir o seu fascínio: essa resistência ao tradicional e ao comum, abrindo vias outras para uma leitura que terá que ter sempre em plano de relevo o elemento dissonância que preside aos meus princípios de composição poética.
*José Luiz Tavares (Balixi, Balitxa, Balixa, Palixi, Balik, Baldik) nasceu a 10 de junho de 1967 em Paraíso Apagado por um Trovão. Perdido entre a filosofia e a literatura, perscrutando a Agreste Matéria Mundo, em modo Desarmonia, cantou Lisbon Blues. Nessa Cabotagem & Ressaca aportou à Cidade do mais Antigo Nome, onde divisou o pétreo Coração de Lava. Dali, faltando-lhe a intrepidez corsária, intentou então simples Contrabando de Cinzas. Na escala seguinte sumariou tanta viagem-vida em Polaróides de Distintos Naufrágios. A Rua Antes do Céu, vendo Arder a Vida Inteira, soube-a Prólogo à Invenção do Dilúvio. Mas Com que Voz/Ku Ki Vos reportar as Instruções para Uso Posterior ao Naufrágio? Tristezas? Estas: umas Rimas Reguilas que não chegaram a sair da Arca do Banzé, nem À Bolina ao Redor do Natal, para a filha quando infanta imaginando Os Secretos Acrobatas, dizendo Tás-me a Atrofiar ao pai ensaiando uma divertida Ópera do Bacano. Tais As Irrevogáveis Trevas, não sabe quando verão a luz dos escaparates. Afinca-se a atirar mais do que Uma Pedra Contra o Firmamento — arremessos de um rezinga com o dedo meio apontado às fuças do mundo, ainda este ano do senhor. Lá mais para a frente ficareis a saber que não há Nem um Consolo Tombando das Goteiras da Catástrofe, sobre os dias em que as musas discorreram imperturbáveis, mas com premência, sobre o tempo do contágio. Na língua-mãe assegurará que Ku Sinza di bu Nomi ta Skrebedu Iternidadi. Ao lugar di biku tornará nas intermitências do seu labor em estrangeiro chão, mas à Pátria Soletrada à Vista do Harmatão voltará em definitivo, um dia, para diante do mar e das montanhas arder de um outro modo. Entre causa e queda, sob o signo do grão zarolho, atirou-se à vida com quantas ganas lhe vaticinaram os mofinos fados. Sobrevive ao tempo do mundo sem estar conectado a nenhuma rede social, mas a paixão e a amizade são-lhe hardware.
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