O mais esdrúxulo nesse «quarto e irregular critério apócrifo», introduzido pelo todo-poderoso júri, é a sua profunda mediocridade, quando não mesmo a retumbante e hilária necedade. O critério de correção linguística e estruturação do discurso é para redação de meninos e meninas da quarta classe, quando havia, ou tara de professorecas que da literatura têm a vaga ideia de que é uma coisa parecida com isto, mas não sabem ao certo de que substância, para parodiarmos um célebre título de Manuel António Pina. Não é esse formalismo, há muito varrido para o caixote de velharias de ferramentas hermenêuticas, que determina ou enforma o literário, e nem estamos num concurso para redatores da Assembleia Nacional. Até o velho Saint-Beuve era capaz de ficar com os cabelos todos, que não tem, em pé na sua tumba no Pierre Lachaise diante de tal primarismo professoral, ilustrado por este saborosíssimo naco, se estivermos inclinados para carne, ou lustrosa posta, se peixe. Aliás, isto não é posta nem naco, é apenas um jato «daquilo». Agarrem as tripas para não rebentarem a rir (ou chorar, se pensarmos que isto saiu da pena de um professor universitário): «por obedecer aos critérios de Estética, na preocupação com o belo e o poético, na conexão e a sintonia entre a mensagem e os recursos estilísticos, bem como a capacidade de, no texto, se levar o leitor à fruição; porque as propostas temáticas ligaram a beleza e a ética à estética, sem descuidar de tecer, conforme a tipologia e o género escolhido, as mencionadas virtudes na própria materialidade da linguagem, de modo a que fique clara a relevância editorial; por ter conseguido a necessária qualidade da escrita, levando em consideração a variedade vocabular e a expressividade, para além dos suficientes princípios de correção linguística e estruturação do discurso, para além do uso adequado dos alfabetos vigentes à luz do Novo Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa». Nem o grande Desidério, que afiançou que o animal antes de morrer estava vivo, faria melhor. Perdoai-lhes, senhor, porque não sabem… diz a bíblia. Ao que nós acrescentamos: com delíquios destes, são barrigadas de riso garantido, ilustrando a miséria intelectual em que nos encontramos mergulhados… sem redenção.
Com relação a esse prémio, queremos, antes de tudo, saudar a esclarecida generosidade do BAICV por tê-lo criado, um gesto de relevante alcance cultural num país carente das mais elementares formas de incentivo à criação e circulação literária, a começar pelo descaso do principal poder estatal em tal matéria, o ministério da cultura, sempre dirigista e estatizante em tudo, menos na literatura (talvez isso até acabe por ser um bem), e que, como tenho referido em contundentes escritos, em sete anos de regência abriu editais para tudo e mais alguma coisa (embora sempre na proporção de migalhas, para, como qualquer irredento populista, jogar com o número de contemplados) só faltando o kasu-bodi, esse subido exemplo do empreendedorismo crioulo, essa próspera e já bem implantada indústria, com know how exclusivamente nacional, que deveria ser explorada como nicho, por exemplo na vertente de turismo de terror. Dizemos turismo, porquanto para os autóctones essa inaudita e excruciante violência (sub)urbana passou a ser simples rotina.
Saudar também o vencedor, que em entrevista se declarou leitor do imenso e incontornável Arménio Vieira, e também deste que ora põe a pena ao serviço de nova e cívica empreitada de desratização. Se a obra não vier a satisfazer as expetativas, não será pela falta de bons guias. Oxalá venha a ser um reconhecido camarada de ofício.
Rezamos, mas rezamos genuinamente, para que a obra premiada seja uma obra de valor, porquanto um segundo julgamento será feito quando esta e outras que concorreram ao prémio forem publicadas. Mas não só por isso; porque também, daquilo que nos foi dado ler e ouvir, o autor pareceu-nos alguém com um interesse genuíno na literatura, ao contrário da chusma de toscos literários que enxameia a academia e cujo interesse maior é o uso do parco prestígio das letras para a ascensão ou barganha social.
Mas temos alguma apreensão em relação ao prémio, no meio de bastas certezas, por aquilo que conhecemos factualmente, e também pelo histórico, que nos permite fazer determinadas analogias, sendo que nada disto fere a integridade do autor da obra vencedora, que nada tem a ver com os dislates de um júri que cometeu tantas tropelias ao regulamento, que só pode vir a ser responsabilizado, duma forma ou de outra, pelas suas ações de lesa-criação, abusivas e irregulares, como iremos demonstrar.
Comecemos pelo princípio.
Depois de termos tomado conhecimento pela comunicação social de um regulamento tosco e autocrático, publicado no jornal A Nação de 29 de dezembro de 2022, alertámos em email de 6 de janeiro de 2023 o presidente da direção da ACL (com conhecimento para todos os membros) para as inconsistências e trapalhices nele detetadas, ao qual respondeu, para não variar, com um ruidoso silêncio. A 9 de janeiro um membro da Academia responde ao nosso email dizendo que iria falar com o Medina e depois nos diria algo. Ao que respondemos tempestiva (4 céleres minutos depois) e claramente que não aceitaríamos que dissesse nada ao Medina, pois o email tinha-lhe sido dirigido enquanto presidente da direção, e ele responderia, se assim entendesse.
Longos onze meses se passaram sem nenhuma resposta, nós já esquecidos que havia tal prémio, até que tivemos notícia da sua atribuição.
Em primeiro lugar é de saudar vivamente quem não sendo jovem, nem tendo percurso conhecido (pelo menos para nós) no mundo das letras aparece como uma promessa da nossa literatura, hoje tão falha de obras relevantes, sobretudo no domínio da poesia. A esse genuíno contentamento inicial, que ainda mantemos, logo se apôs um denso nevoeiro, porque nas parcas notícias saídas nada era claro; pelo contrário, era tudo muito confuso. Por isso foi uma atitude natural para nós, que desde o início nos manifestamos em relação ao regulamento, sem sucesso, para que não houvesse tensões e confusões, como aconteceu nas duas edições do Prémio BCA de Literatura, e também no Prémio Mário Fonseca – Livro do Ano, em decorrência de regulamentos trapalhões e posteriores nebulosas ações da trupe que (des)governa a ACL.
Assim, a 7 de dezembro nos dirigimos via email a Daniel Medina, e com conhecimento de todos os membros da ACL, solicitando que socializasse com os membros informações mais concretas acerca do prémio «de modo até que a anuência dos pares possa servir de escora a atos praticados por órgãos com mandato largamente expirado. Assim, fazendo voto para que este email não tenha o mesmo destino de outros, isto é, o absoluto silêncio, solicitaríamos que partilhasse com os membros da Academia, através do meio mais idóneo e simples, a ata assinada pelos elementos do júri [como determina o regulamento], de forma que possamos aquilatar da decorrência e da conformidade da atribuição do prémio» (sic). O email terminava «saudando o vencedor, e fazendo votos para que a obra premiada venha robustecer uma literatura depauperada de obras de significativa valia, aguardamos por uma resposta positiva, que não o habitual silêncio».
O estimado leitor nem precisa de ser bruxo para adivinhar a resposta que (não) tive, até à data em que escrevo este artigo, e que é a resposta que há anos devíamos ter dado ao Daniel Medina, no seguimento da varredela desinfestante que demos à sua comparsa eterna. Infelizmente não o fizemos na altura, coisa de que sinceramente nos arrependemos, pois, se o tivéssemos feito, talvez hoje não teríamos esse janota sem obra, mas sempre mui impante, montado na garupa da ACL.
Agora perguntamos aqui publicamente: o que esconde essa ata que o Medina se recusa a partilhar com os membros da ACL? Ou não há ata?[2] Se não há ata, então o prémio foi atribuído irregularmente, pois o regulamento (e foi a autossuficiência ignorante do Medina em matéria de criação literária que o pariu) diz taxativamente no artigo 20: «a decisão do júri terá em conta o ineditismo da obra e basear-se-á em três aspetos fundamentais: estética, criatividade e originalidade. A decisão deverá constar de uma ata [sublinhado nosso] com a apreciação da obra vencedora, com os devidos fundamentos estéticos e científicos que superintenderam as escolhas dos jurados», sendo que o ponto anterior, o 19, diz que «o júri decidirá com base nas declarações dos jurados», declarações essas que também não temos.
.Baseado em que pressupostos o presidente da direção da ACL não responde durante anos aos emails de JLT e JLHA, dois reconhecidos escritores, e os únicos a pugnarem perante os seus mudos pares (logo desinteressados, ou coniventes por omissão) pela clareza e salubridade procedimental, mas sobretudo ética e literária? Presunção? Mas como é que a criatura, que não passa de um reconhecido «penetra» naquela casa, poderia presumir-se ou presumir alguma coisa se está numa instituição onde não tem obra para estar, e, concomitantemente, ocupando um lugar que não tem estatuto (literário) para ocupar?
Fragilidade? Então que abandonasse o lugar. Melhor: que nunca se guindasse ou alapasse a ele. Recordemos aqui a parte final do email do confrade José Luís Hopffer Almada, enviado à presumida presidente da mesa da assembleia geral [3], datado de 22 de abril de 2022, e com conhecimento para todos os membros da ACL, acerca das manobras engendradas nos bastidores e que permitiram a (re)candidatura única do atual presidente: «Em face disso, só posso concluir que fede (aliás, tresanda) o féretro das carpideiras a caminho do cemitério!... Elas que fazem questão de estarem sempre atoladas na desfaçatez e na promiscuidade de nauseabunda má-fé. Havemos de voltar à carga, quando o tempo for propício para essas e outras coisas, nem sempre agradáveis. Saudações cordiais.»
Abra-se aqui um memorioso parêntesis para dizer que a expressão «fede o féretro/das carpideiras» são os dois primeiros versos do poema «Fede o féretro», publicado originalmente no livro «À Sombra do Sol» (2 volumes, Praia 1990) de JLHA, e que tem como detonador objetivo um cortejo fúnebre que do alto de Ponta Belém víramos descer a avenida cidade de Lisboa, no longínquo ano de 1988, quando os dois novéis pretendentes a poetas andavam «parodiando» pelo citado bairro popular do plateau. De recordar que esses finais dos anos oitenta na cidade da Praia foram um tempo de grande efervescência literária, e cuja prova cabal é essa escassa meia dúzia de escritores hoje na casa dos 50/60 anos (José Luís Hopffer Almada, José Luiz Tavares, Valentinous Velhinho, Filinto Elísio, Mário Lúcio e Dina Salústio) que vêm sustendo de certa forma a decadência da literatura cabo-verdiana. O poema foi dedicado inicialmente ao autor deste artigo, e, em nova versão publicada no livro «Sombras», também ao falecido escritor Fernando Monteiro, filho dileto daquele bairro.
[Para se aquilatar da bondade da «copofonia» como indutor ou detonador criativo, pelo menos para alguns, refira-se aqui ainda que o título «À Sombra do Sol» surgiu ao autor JLHA enquanto os dois poetas derrubavam umas cervejas «Ceris» no antigo «Cantinho de S. Tomé», no bairro de Terra Branca].
Retomemos os fios às mal tecidas meadas do prémio BAICV de Literatura.
O júri praticou, a nosso ver, uma série de irregularidades (se lemos bem a parte constante da minuta da conferência de imprensa, porquanto ela é bastamente confusa) que podem tornar nulas as suas decisões (e daqui incentivo, para salubridade de futuros concursos, a todos aqueles que concorreram e não sabem qual foi o destino das suas obras a, primeiro, pedirem satisfações à ACL, e, a partir daí, se não se sentirem satisfeitos ou inteiramente esclarecidos, recorrer aos tribunais. O documento fidedigno terá de ser a ata, comprovadamente pré-existente a este alerta, assinada pelos três elementos do júri, e não qualquer documento engendrado a posteriori para tapar os eventuais atropelos cometidos). Senão vejamos:
1. O poder autocrático de desclassificar candidaturas que apresentaram mais do que uma obra
O júri não pode, nem podia desclassificar as candidaturas que apresentaram mais do que uma obra, porquanto esta sanção está clara e unicamente estabelecida para os casos comprovados de plágio e de não-ineditismo das obras (artigo 10 do regulamento). Em nenhum outro caso mais. Se não sabem ler literalmente, aprendam a fazê-lo, senhores doutores-investigadores-linguistas, e o diabo que vos carregue, tivesse ele pachorra para tanta pesporrência e ignorância ilustrada. E, além disso, o que não é menos, o júri não podia, nem tinha como saber, a anteriori, que um concorrente apresentou mais do que uma obra. Se os envelopes com os respetivos dados identificativos estavam na posse da ACL, e só se abrem os envelopes correspondentes à obra vencedora ou eventuais menções honrosas, como é que o júri poderia saber que um determinado concorrente apresentara mais do que uma obra? É apenas uma questão de lógica. Só por um milagre, ou violando o envelope [4] contendo os dados. Quem o fez? Em que momento? Isto é grave, e exige cabal esclarecimento.
Ainda que pudesse saber, de modo regular, que alguém apresentou mais do que uma obra, e tal sanção eliminatória estivesse prevista, e não está (e nem é caso omisso, o que daria ao júri a liberdade de decidir a seu critério, artigo 23), seria uma sanção desproporcional, na medida em que o concurso tem por finalidade premiar e revelar a melhor obra, mas com essa decisão estar-se-ia a impedir o júri de tomar conhecimento duma obra potencialmente de maior valor. E mais: ainda que a sanção estivesse prevista no regulamento, e volto a frisar que não está, o júri deveria guiar-se pelo princípio legal e jurídico de «a maiori, ad minus», isto é, no âmbito do mais sempre se compreende também o menos, e, tendo em conta isso, tomar conhecimento e analisar apenas uma das obras, ou convidar o/s autor(es) a optar por uma das obras apenas.
2. Acrescentamento de critérios de julgamento
O júri não pode, a posteriori, introduzir quaisquer outros critérios de julgamento (os gozosos chamam-lhe «aprimoramentos»), porque acha que sim. Um regulamento publicado faz fé pública, e um júri tão façanhudo nas suas prerrogativas formais (quando se trata do júri, pode torcer o regulamento a seu bel-prazer; quando se trata dos concorrentes, cumprimento rígido, escrupuloso e maximalista da letra do regulamento, sob pena de exclusão, «liminar», dizem tais toscos landgrávios) devia ter a coerência de nem sonhar mexer naquilo que não tem competência para mexer. Isto não quer dizer que não use de critérios subjetivos que não estejam no regulamento. Mas pô-los em letra de forma é enforcar-se com as próprias mãos. Quanto a isso não há volta a dar que não seja a declaração de nulidade desse concurso, ou, para não prejudicar quem o venceu sem culpa, a responsabilização cível do júri, porquanto o artigo 20 do regulamento reza: «a decisão do Júri terá em conta o ineditismo da obra e basear-se-á em três [sublinhado nosso] aspetos fundamentais: estética, criatividade e originalidade».
Mas o que resolveu fazer o brioso júri na avaliação das obras a concurso, violando clara e grosseiramente o regulamento? Leiam e arregalem os olhos: «a avaliação das obras a concurso ao Prémio Claridade 2023 foi feita ao abrigo do nº 20 do Regulamento, ao que foi acrescentado o critério da correção linguística e estruturação do discurso, pois que o júri entendeu que uma obra digna deste prémio não poderia conter desvios à norma, devendo enquadrar-se minimamente no registo padrão-culto». Estamo-nos lixando para o que entende ou desentende o brioso júri. Ele está obrigado a ater-se à letra do regulamento, e, sobretudo, ao seu espírito.
O mais esdrúxulo nesse «quarto e irregular critério apócrifo», introduzido pelo todo-poderoso júri, é a sua profunda mediocridade, quando não mesmo a retumbante e hilária necedade. O critério de correção linguística e estruturação do discurso é para redação de meninos e meninas da quarta classe, quando havia, ou tara de professorecas que da literatura têm a vaga ideia de que é uma coisa parecida com isto, mas não sabem ao certo de que substância, para parodiarmos um célebre título de Manuel António Pina. Não é esse formalismo, há muito varrido para o caixote de velharias de ferramentas hermenêuticas, que determina ou enforma o literário, e nem estamos num concurso para redatores da Assembleia Nacional. Até o velho Saint-Beuve era capaz de ficar com os cabelos todos, que não tem, em pé na sua tumba no Pierre Lachaise diante de tal primarismo professoral, ilustrado por este saborosíssimo naco, se estivermos inclinados para carne, ou lustrosa posta, se peixe. Aliás, isto não é posta nem naco, é apenas um jato «daquilo». Agarrem as tripas para não rebentarem a rir (ou chorar, se pensarmos que isto saiu da pena de um professor universitário): «por obedecer aos critérios de Estética, na preocupação com o belo e o poético, na conexão e a sintonia entre a mensagem e os recursos estilísticos, bem como a capacidade de, no texto, se levar o leitor à fruição; porque as propostas temáticas ligaram a beleza e a ética à estética, sem descuidar de tecer, conforme a tipologia e o género escolhido, as mencionadas virtudes na própria materialidade da linguagem, de modo a que fique clara a relevância editorial; por ter conseguido a necessária qualidade da escrita, levando em consideração a variedade vocabular e a expressividade, para além dos suficientes princípios de correção linguística e estruturação do discurso, para além do uso adequado dos alfabetos vigentes à luz do Novo Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa». Nem o grande Desidério, que afiançou que o animal antes de morrer estava vivo, faria melhor. Perdoai-lhes, senhor, porque não sabem… diz a bíblia. Ao que nós acrescentamos: com delíquios destes, são barrigadas de riso garantido, ilustrando a miséria intelectual em que nos encontramos mergulhados… sem redenção.
Para mais uma terapêutica sessão de riso, segue outra posta surreal, desta feita emitida em tom de catequese para meninos mal-comportados que ousam desafiar os preceitos duma qualquer te(le)ologia estética fundada no valor do absurdo: «a obra não deve conter desvios à norma padrão!?»(sic). Mas o que constitui a natureza do literário e o substancia enquanto tal (escrevemos isto por comodidade retórica, porquanto somos, nietzscheanamente, perspetivistas e não essencialistas) não é, primacialmente, o desvio à norma, qualquer que ela seja, sobretudo à função normalizada e normalizadora, pragmática e burocrática da linguagem? É caso para dizer: estou basto ofendido, mas, mesmo assim, vou rir até smaiar. Que me perdoe o Orlando Dias, com quem não pretendo reinar aqui, e cujo pai, o Sr. António, conheci na década em que fui alegre inquilino da Pedreira dos Húngaros (um dos períodos mais importantes da minha formação humana e intelectual), bairro segregado da cintura negra e suburbana de Lisboa, sito no concelho de Oeiras, e cujo quotidiano me deu a tração para a escrita do livro «As Irrevogáveis Trevas», publicado pela primeira vez o ano passado no volume «Como um Segredo na Boca do Universo».
[Tomo a liberdade de incluir aqui um trecho duma troca de emails ontem com o meu antigo Professor/orientador de Seminários de Estudos Aprofundados de Estética (filosofia), o grande romancista português Almeida Faria, que provocou um terramoto literário em Portugal em 1962, com dezanove anos, com o romance «Rumor Branco», precisamente pela sabotagem dos códigos linguístico/romanescos então vigentes: «Cabo Verde devia abrir uma subscrição pública para erigir uma estátua de lata (enferruja depressa) ao anal-fabeto que escreve: «a obra não deve conter desvios à norma padrão»].
3. Exclusão de candidaturas cujas obras não atinjam as cem páginas e apresentadas fora de prazo
Parece que essa gente da ACL tem o fetiche ou a tara dos cem. Ninguém tem a nada a ver com isso, mas não transportem isso para os concursos literários. E o que é mais, é que essa gente para além de irredentamente burra, é infinitamente casmurra. Foi um regulamento desses, no tempo da comparsa de deletéria memória (era o atual mandarim seu vice), precisamente contendo essa cláusula de 100 páginas, entre outros avultados dislates, que fez com que nenhum livro apresentado ao Prémio Mário Fonseca – Livro do ano, em 2016, cumprisse todos os clausulados, e o prémio ficou vago, tendo morrido ingloriamente, matado por esses fetichistas da centena.
As obras literárias têm a dimensão, o tamanho e a estrutura que a sua organicidade interna exige, e ponto final. É esse princípio de organicidade que faz com que o velho padre Aristóteles concebesse a obra como um animal, isto é, a cabeça não deve estar no lugar dos pés, nem o nariz no lugar das partes, embora o surrealismo tenha dado uma volta a toda essa prédica. Para dar só um exemplo: uma das obras fundamentais da estética do século xx, A Origem da Obra de Arte, de Martin Heidegger, hoje nem serviria para um reles concurso da ACL, posto que possui umas míseras (pela bitola larga da ACL para medir a abundante palha de que se alimentam essas alimárias ilustradas) quarenta e tal páginas.
Embora o artigo 7 estabeleça que não são aceites candidaturas enviadas fora de prazo, um júri de pessoas medianamente esclarecidas não deveria tratar um concurso cultural para revelação duma obra de criação literária — no fundo o engendramento de um mundo novo com as suas próprias leis internas (teoria dos mundos de Leibniz) —, como se se tratasse de uma proposta de empreitada para beneficiação de uns esgotos, ou a licitação dumas ferrugentas carcaças de automóveis ou de navios abatidos.
Um júri que teve sete meses, pasmai, senhores, sete, para decidir sobre meia dúzia de obras, agarra-se a esse formalismo merceeiro, quando devia aceitar todas as obras recebidas até ao início dos seus trabalhos (e que pela dificuldade e basismo demonstrados na elaboração duma análise minimamente aceitável em termos teóricos só podemos apodar de hercúleos)? Esta não é a prova provada, se dela precisássemos, de que alguma dessa gente pode saber de tudo, menos dos infinitos mundos e universos que a arte cria, e, por tal via, alargando os limites e as fronteiras do humano?
Vejo nesse júri um único elemento com capacidade crítica suficientemente comprovada e background estético para julgar obras poéticas relevantes em língua portuguesa [5], por escritos sobre a grande poeta São-Tomense, Conceição Lima, acima das choraminguices piedosas sobre identidades e géneros, bem ao largo das estreitas pautas ideológicas, das tristes e absurdas versalhadas surreais (querendo ser surrealistas) ou prosas naturalistas onde a condessa sai de casa às cinco em ponto da tarde, até chegar lá onde a mamai trazia o filhinho às costas debaixo de um sol bué quente.
Foi também por demais absurda e desnecessária a indicação pelo BAICV de um elemento para o júri com aquele perfil, pessoa que humanamente estimamos, competente e séria no seu campo profissional, mas aqui tratava-se de um âmbito que requer uma comprovada e específica competência cultural e intelectual para o julgamento e estabelecimento duma verdade, mesmo que disputada, e não há provas ou indícios públicos, por via dalgum exercício crítico ou de simples trabalho de divulgação, ou confirmados por via de magistério ou formação, de que a indicação fosse totalmente adequada às circunstâncias. Era como se eu, José Luiz Tavares, por absurdo, por saber aritmética, ou conseguir fazer uns cálculos de mercearia, fosse convidado a integrar uma equipa que tivesse por função certificar as contas do BAI. Convenhamos que seria sumamente absurdo e inadequado, e desqualificaria qualquer julgamento ou proposta produzida sobre o assunto.
Terminando por hoje esta higiénica empreitada, permitia-me sugerir ao BAICV um novo figurino ou modelo para o prémio: passar a anual, e em cada ano, alternadamente, dedicado a um género (poesia num ano, prosa noutro), transformando o Prémio Claridade em prémio de consagração para obras éditas, com relação das obras concorrentes, júri, fundamentos da decisão, tudo divulgado publicamente em cada uma das etapas. Para esta modalidade escolher-se-iam, entre as concorrentes, três obras que disputariam a premiação final.
Uma outra modalidade seria um prémio de revelação, em que os candidatos, no género a que concorrem, não têm nenhuma obra editada à data da candidatura. O prémio seria a edição da obra com o montante que anteriormente era destinado à edição da obra vencedora do prémio Claridade.
O diabo às vezes tem boas ideias.
Mantende vigilantes, até nova varredela.
Sintra, 15 dezembro de 2023
Reelaborado a 4 janeiro 2024
José Luiz Tavares
NOTAS
[2] Semanas após o nosso email enviado ao Medina solicitando a ata para todos os membros da ACL, e quando nada o fazia prever, porquanto há anos que lhe enviamos emails sem qualquer resposta sequer a um único deles, a 25 de dezembro de 2023 recebemos um email dele (enviou-o apenas para nós, quando tínhamos solicitado a ata para toda a Academia) trazendo em anexo um documento apócrifo em word (um filme que já tínhamos visto em 2017, aquando das peripécias do Prémio Mário Fonseca), a minuta da conferência de imprensa do anúncio do vencedor do prémio. Quando o recebemos este texto já estava escrito. Esta segunda parte do texto foi adaptada a algumas informações que a minuta veiculava. Ata não deve haver, porquanto não a recebemos.
Estranhamos esta inesperada e absolutamente pioneira resposta do Medina. Desconfiamos que, como tentamos colher elementos junto de outras fontes, e tendo dito claramente o fim a que se destinavam, o mesmo deve ter transpirado e, com esse envio, tentou controlar os danos. Demasiado tarde; a ata do prémio foi apenas o fim duma longa cadeia de silêncios e outras manobras.
[3] Na sequência duma veemente e contundente contestação a mais uma tropelia na ACL, dando nome aos seus autores, o poeta Kaká Barbosa, a quem nada fora apontado, mesmo assim, incomodado, resolveu demitir-se, uma atitude que só o enobreceu. A visada, a então presidente da mesa da assembleia geral (MAG), Vera Duarte, informou que também se demitia para levar o autor destas linhas a tribunal. Ainda hoje aguardamos sentados pela concretização da farronca. Aliás, essa imprudente e mal medida ameaça (?!!) apenas retemperou os meus propósitos de não dar tréguas a essa trupe de atoleimados literários.
Acontece que na altura dumas eleições (creio que falhadas) para os órgãos sociais da ACL a demissionária presidente da MAG reaparece milagrosamente nas vestes de presidente da mesma, sem qualquer formalidade, ainda tentando trazer pela mão, sorrateiramente, dado que estava no rol dos destinatários do email da milagrosa reassunção, alguém que em tempo algum fora admitida formalmente na Academia. Quando apanhada com a pata na poça, balbuciou que apenas suspendera o mandato. Em resposta a um email façanhudo da dita, mas transpirando desespero e impotência, e falta de argumentos factuais, o autor destas linhas revidou duramente, e com factos, como é seu timbre, tendo a poetastra irredenta na sua impotência socorrido covardemente da atitude límpida e digna de Kaká Barbosa, afirmando que o poeta de Konfison na Finata se demitira para «ajustar contas» comigo.
Devo dizer claramente que as duas únicas formas de se ajustar contas comigo que conheço são estas: terçar armas (pena) aqui na tapadinha, o que não é nada fácil, e de que têm fugido todos de modo conveniente, para não dizer cobardemente, ou levar-nos a tribunal, o que também ansiamos ardentemente. Qualquer outra devem guardar como um impotente pensamento engendrado na podridão dos seus cérebros de covardes (éticos), ou enterrá-los em chiqueiros e currais, habitats naturais das respetivas espécies.
[4] A primeira vez que concorri a um prémio da ACL, por não ter nenhuma confiança nas pessoas que se encontravam à frente da instituição, as mesmas do «golpe» do Prémio Sonangol de literatura 2004, e face ao afã de todos em querer saber se eu ia concorrer ou não, sempre alimentei a suspeita de que podiam abrir previamente os envelopes contendo a identificação dos concorrentes, e, desta forma, como nunca há relação das obras efetivamente aceites ao concurso, bem que podiam, identificando uma obra minha, dar-lhe sumiço, fazendo com que nem chegasse às mãos do júri. Por isso, no envelope onde deveria estar os elementos de identificação, havia apenas um número de telefone, para ser contactado, e revelar quem eu era, no caso de o envelope corresponder à obra vencedora. Acontece ter sido eu o vencedor, e mesmo sem esses elementos de identificação, souberam que era eu. Elucidativo, não é?
[5] Temos assistido nos últimos tempos, por nossa pobreza intelectual [muita garganta, mas pouco saber?] à participação de cidadãos estrangeiros em júris de concursos literários cabo-verdianos, e em que as obras avaliadas estão escritas nas duas línguas nacionais. Primeiro foi no Prémio Mário Fonseca, depois no Prémio Lhana, e agora no Prémio BAICV. Tenho imensas reservas de princípio em relação à participação de elementos estrangeiros em júris de prémios nacionais. Vivo há trinta e cinco anos em Portugal e nunca vi tal. A nossa pobreza intelectual não pode justificar tudo. Se tem de ser, então que se assegure de antemão o domínio e a proficiência desses elementos na língua nacional, o que, posso assegurar, não aconteceu nos três casos citados.
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