1. Introdução
Persiste ainda, na nossa sociedade, um sistema articulado de conceções equivocadas sobre o crioulo de Cabo Verde[1] (e os crioulos de um modo geral). Apesar de não terem bases científicas, esses equívocos estão profundamente registados no senso comum e infiltrados em alguns de nós. Por isso, têm desempenhado um papel impeditivo importante na concretização de medidas de política linguística favorecedoras do desenvolvimento da língua cabo-verdiana[2] como sejam a sua oficialização e o seu ensino. Tendo em conta o papel do conhecimento na desconstrução dos mitos, discutem-se 12 dessas ideias,[3] mostrando evidências científicas que as contrariam, tendo em vista contribuir para a construção de uma comunidade mais harmonizada em que as línguas de Cabo Verde se possam expandir livremente.
2. Mitos sobre a língua cabo-verdiana[4]
Esses mitos, que menorizam a língua cabo-verdiana (LCV), são produtos de uma configuração sociocultural dominada por uma ideologia linguística colonial que exigia e impunha o domínio da língua do império, apresentada como o modelo ideal de língua e, como contraponto, o aniquilamento das outras, entendidas como símbolo da inferioridade dos seus falantes, para, assim, impor a sua cultura e o seu projeto político. Por isso, esses equívocos foram amplamente difundidos, naturalizados e inculcados na mente dos cabo-verdianos, determinando as suas atitudes face à sua própria língua materna, a ponto de alguns, cada vez menos, felizmente, admitirem que não falam uma língua ou falam algo que ainda não o é.
Assim, na sequência da discussão do Mito 1: O crioulo não é língua, do Mito 2: O crioulo cabo-verdiano é um dialeto do português, do Mito 3: O crioulo é uma deturpação, corrupção do português, português malfalado e do Mito 4: O crioulo é pobre, não tem regras nem gramática (própria), prosseguimos com o mito 5.
Mito 5: O crioulo é língua de casa
A ideia de que os crioulos são formas de falar sem prestígio – (ainda) não são línguas, não têm regras, são dialetos das suas línguas lexificadoras ou uma forma malfalada ou deturpada delas – levou à ideia de que os crioulos não têm dignidade para serem falados em público e a associar o seu uso a analfabetismo e pouca cultura. Esta conceção teve várias consequências nos falantes dessas línguas e nos cabo-verdianos, em particular. Uma das mais importantes é esconderem que sabem falar o crioulo cabo-verdiano, pensarem que é desprestigiante falá-lo com pessoas, nos contextos e sobre os assuntos mais valorizados socialmente e só aceitar usá-lo nas situações e com pessoas mais íntimas, como a casa e os familiares.
Contudo, no seu espírito e coração, os cabo-verdianos gostam muito da sua língua materna, orgulham-se dela e acham que é um marco da nossa identidade cultural. Ou seja, não lhe atribuem um prestígio aberto, mas sim um prestígio envergonhado, que fica escondido. Os linguistas chamam de prestígio encoberto a essa forma de prestígio.
Uma consequência deste comportamento é, por um lado, a língua cabo-verdiana não ter desenvolvido formas de falar adequadas aos contextos mais valorizados socialmente, a que os linguistas designam de registos formais ou cuidados. Outra é pensar-se que o crioulo pode ser melhorado, aproximando-o do português e impondo-lhe novas regras. Assim, por exemplo, em vez de se dizer papia (falar, conversar), passa-se a dizer fala, mais próximo do português (Pereira, 2006:40)[5]; em vez de arri (sorrir), surri (mais próximo do português). A este fenómeno, que acontece com o léxico, mas também com a gramática, os linguistas chamam de descrioulização e pode levar ao desaparecimento da língua cabo-verdiana, como já aconteceu com muitos crioulos no mundo, alguns deles de base lexical portuguesa.
Importa, pois, notar que não sendo os crioulos línguas menores, são línguas adequadas para todas as pessoas, assuntos e circunstâncias. Falar a nossa língua materna em todos os lugares e circunstâncias e com todas as pessoas não é sinal de inferioridade social ou pouca educação e nem pode ser tomado como um sinal de querer erradicar o português do quotidiano cabo-verdiano.
Em consonância com essas ideias, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, patrocinado pela UNESCO estipula:
- […] o direito ao uso da língua em privado e em público […] (Artigo 3.º: 1), como um dos direitos individuais inalienáveis que devem ser exercidos em todas as situações.
- […] o direito a uma presença equitativa da língua e da cultura do grupo nos meios de comunicação; o direito a serem atendidos na sua língua nos organismos oficiais e nas relações socioeconómicas (Artigo 3º.2.), como um dos direitos coletivos dos grupos linguísticos.
- No domínio público, todos têm o direito de desenvolver todas as atividades na sua língua, se for a língua própria do território onde residem. (Artigo 12.º: 1.)
Quanto ao uso oral, da língua portuguesa, no dia a dia, em paridade com a língua cabo-verdiana, há que ter em conta que o domínio do português, em Cabo Verde, depende, crucialmente, das oportunidades sociais para falar essa língua e do grau de escolaridade. Portanto, não se pode querer que as pessoas falem o português com frequência e fluência, com vontade e à vontade e, ao mesmo tempo, estar de prontidão para as censurar e a apontar os erros sempre que essa fala não corresponda ao ideal de bom português que se tem em mente. Trata-se de uma postura que só pode provocar sentimento de inferioridade, de discriminação e de rejeição, e que leva a evitar falar a língua portuguesa a todo o custo, o que não é do interesse da sociedade como um todo.
[1] A expressão crioulo de Cabo Verde/ crioulo cabo-verdiano será usada para referir à língua cabo-verdiana em situações históricas ou para tipificar a língua.
[2] Conservo a escrita da palavra ‘cabo-verdiano(a)’ com hífen, que é sustentada por duas regras: i) a que manda colocar hífen nos gentílicos dos compostos onomásticos; e ii) a que indica –iano como o sufixo nominativo que exprime o sentido “natural de…”. Além disso, impõe-se a coerência com a posição assumida por Cabo Verde ao ratificar o Tratado (internacional) do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Se essa circunstância, por um lado, põe em relevo o facto de a ortografia (de qualquer língua) ser uma convenção, evidencia, por outro, que, tendo sido aprovada tal convenção, nenhum indivíduo, isoladamente, se pode arrogar o direito de a modificar de acordo com critérios próprios. Com efeito, esta é a forma constante do VOCALP: Vocabulário Cabo-Verdiano da Língua Portuguesa, aprovado pelo Governo e, portanto, o instrumento que fixa, legalmente, a ortografia da língua portuguesa em Cabo Verde. O VOCALP é parte integrante do Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa, instrumento previsto no Tratado do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. O VOC segue, adequando, os critérios ortográficos comuns definidos na ‘Sistematização das Regras de Escrita do Português’, discutida e validada pelo Corpo Internacional de Consultores do VOC e aprovada pelo Conselho Científico do IILP em 2016 e foi validado e aprovado politicamente na mais alta instância da CPLP. O VOC e o VOCALP podem ser consultados no Portal do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP).
[3] Agradeço aos membros da extinta Comissão Nacional para as Línguas as observações, os comentários e as sugestões. As falhas restantes são da minha inteira responsabilidade.
[4] Os contra-argumentos dos números 1 a 5 e 7 foram redigidos com base em Pereira, Dulce. O Essencial sobre os Crioulos de Base Portuguesa. Lisboa. Editorial Caminho. Pp. 13-15. 2006. e os restantes com base em Lopes, Amália Melo. As línguas de Cabo Verde: uma Radiografia Sociolinguística. Praia. Edições Uni-CV. 2016.
[5] Pereira, Dulce. O Essencial sobre os Crioulos de Base Portuguesa. Lisboa. Editorial Caminho. 2006.
* Linguista
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