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Estórias e comportamentos dos bichos 9
Cultura

Estórias e comportamentos dos bichos 9

CAPÍTULO QUARTO A OSTENTAÇÃO DO PODER E O PODER DA PECÚNIA

(Segunda parte)

Ao aperceber-se de que estava perante o Cavalo Trump Obikwelu, uma mescla do multibilionário, parente próximo do então presidente dos Estados Unidos da América, o mais poderoso magnata do planeta e, igualmente, do imbatível maratonista nigeriano, Francis Obikwelu, que pela rapidez dos seus alados pés, se naturalizou cidadão português sem a exigência de qualquer documento burocrático, o Leão tornou-se um deleitável adulador. E por isso ficou nóia. Mudou radicalmente de discurso e de tom de voz, transformou a máscara do seu semblante ameaçador num tipo de beato, quase defensor dos Direitos Humanos, num ativista das causas sociais ou filantrópicas, à semelhança do mais recente laureado Nobel da Paz. Ficou alegre e carinhoso e tornou-se amigo do deputado Cavalo, até para se entreterem em trivialidades.

– Quando era cavalhoso… quer dizer, quando era um Cavalo moço, imagino quantos corações das eguazinhas você não fez chocalhar dentro do peito delas!

O deputado Cavalo deixou escapulir um sorriso recheado de tudo, menos de inocência. Porém, teria logrado a simpatia, talvez o respeito de um Bicho que nada entendia sobre a linguagem misericordiosa. E respondeu, assim, todo bazofo:

– Por isso é que tenho muitos filhos.

– Saiu ao tetravô. Estou a ver agora que aquela estória do seu tetravô, era tudo verdade.

– Sobre o meu tetra contam muitas estórias.

– E felizmente… só estórias engraçadas, boas e agradáveis. Há uma até que fez sucesso – levantou a cara e olhou para a plateia. – Vocês sabem como e porquê surgiu o termo Três Vinténs?

A plateia toda ficou embasbacada e as fêmeas encavacadas. Todos os olhares masculinos as fulminavam. E o Leão continuou:

– No tempo do tetravô do Cavalo, vintém era uma moeda de ouro muito valiosa. O seu tetravô era muito rico. Tinha muitos vinténs e era raskon. [Vaidoso, elegante, aprimorado] Cada vintém valia uma fortuna. Mas não o impediu de oferecer três vinténs para tirar a virgindade a uma Eguazinha do Rei – O Leão olhou para o Cavalo. – Suponho que terá sido a sua tetravó.

– Pois… pois… era sim, senhor.

O Cavalo gaguejava muito ao afirmar, por que, claro, estava a mentir. De tudo isso ele desconhecia totalmente. E o Leão também havia mentido para ver se granjeava ainda mais a amizade e simpatia do bilionário Cavalo, como se ele também não fosse tão rico, com dinheiro que nunca mais acaba. Porém, essa façanha do tetra correu o mundo e a virgindade feminina valorizou-se. Deixou de se chamar cabaz para passar a designar-se, pomposamente, de TRÊS VINTÉNS, que significa: três valiosas moedas de ouro.

– E já agora… quantos filhos você tem? – perguntou Leão. – Se é que posso saber. Não me tome por um insolente e impertinente atrevido sem instrução.

– Longe disso, o pensamento da minha alma – retorquiu Cavalo. – Assumidos e registados são 58. Treze com a minha égua e os restantes com as concubinas e com algumas eguazitas dos vizinhos que eu ajudava a pôr a panela ao lume e, aos seus cavalos eu pagava copo de grogue nas tabernas.

– Bem sabia. Não sendo feio e granas não lhe faltam… não era de esperar por menos – E perguntou-lhe pela família. – A Égua? Sua tão extremosa égua, como é que a deixou? O vosso potrozinho ainda não deu os primeiros passos? Ainda lambe o ranho e usa dodot?

O vaidoso escolhido dos Cavalos não continha em si tanta felicidade. Sentiu-se amado, ou até mesmo bajulado por uma das famílias felinas, o seu maior e o mais implacável inimigo de outrora.

– A minha fêmea está boa e o nosso puto já começou a gatinhar. Já não usa cueiro, mas também quando está com diarreia… entorna a casa toda. É comedor de feijoada com toucinho salgado e muitas vezes os intestinos não toleram. Já lhe nasceram quatro dentinhos: dois em cima, dois em baixo. Já sabe até kobar na mai [ofender ou descompor na mãe dos outros].

– Não saiu ao pai! Os filhos de hoje?! Se sentirem uma febre ou uma dor de cabeça… não os levem ao médico. Chamem logo um padre para os confessar.

O Cavalo deputado arqueou o pescoço, abanou a cauda e fez uma cadenciada marcha, marcando os passos à moda de um soldado nas paradas de uma unidade castrense.

– A minha fêmea também teve sua parte de responsabilidade neste meu pequeno atraso.

– Porquê? – estranhou Leão, incapaz de travestir a sua subserviência. – Entretanto, ela é uma Égua tão boa! Você também não se atrasou consideravelmente. E já não justificou?

– Ela agora anda viciada na Internet que lhe pus no telemóvel, que é um perigo! Está sempre no Facebook, não sei com que outro Cavalo ela anda a trocar mensagens toda à noite, vai pra cama às tantas da madrugada, cheia de sono e nem atenção já me dá.

Um pouco exaltado, repudiou o Leão a adúltera ação de uma esposa:

– Isso não pode ser. Deixar o marido na cama a coçar pulgas, ou com as pernas encolhidas e as mãos entre elas, a esposa a trocar mensagens com outro Cavalo? É demais!

– E às vezes vai pra a cama bué zangada, talvez por ter brigado com o outro. Na noite da véspera em que eu vinha para esta assembleia, ela foi para a cama a uma da manhã. Pedi-lhe kusa mixa [coisa de mijar, onde se mija, bacio, com que se mija ou órgão genital] ela respondeu-me que não era minha empregada.

– Isto é um atrevimento que você não pode permitir, nem tolerar ou admitir. Se o outro Cavalo briga com ela, não é em si que ela tem que descarregar o seu despropositado ciúme, muito menos recusar dar-lhe kusa mixa.

– Foi por isso que ela adormeceu e me levou o pequeno-almoço atrasado.

– Desculpem lá, mas é por isso que digo sempre: certos Bichos são como os travesseiros enchidos com florinhas. Só com palmadas é que se endireitam. Por isso que à minha dou tabefe de vez em quando. Mas pronto; já está justificado o seu atraso – parou e meditou um bocado. – Disse que tinha um tio que se chama Vicente?

– Pois, tenho. Senhor Vicente Bode. E já vi que vou ter que lhe pedir para mudar esse nome, que já não se coaduna.

– Ou então, este nosso Vicente é que vai deixar de chamar-se assim – sugeriu Leão, virando-se para Vicente. – Ouviste, Vicente? Vais passar a chamar-te Emílio. Queres?

Vicente meneou a cabeça de forma que uma boa tradutora de língua gestual interpretaria como sendo:

– Mi gô! [tanto faz, que me importa!].

Mas o deputado Caranguejo ficou fulo, descontente e fora de si. Correu para o centro da arena e, aos tropeções foi impugnar, com veemência, a ordem decretada pelo senhor da selva. Invocou o direito de defender a reputação e o bom nome da família e do já falecido tetravô que se chamava Emílio. Neste caso, o Leão foi forçado a recuar e a arranjar uma denominação consensual para rebatizar Vicente. E propôs a escolha dentre as denominações: Asno, Jumento, Jegue e Jerico. Mas todos os presentes já haviam curtido o som brrrr do arroto anal do Vicente. E unanimemente optaram por tachar-lhe o apodo de Burro. Vicente admitiu e assim ficou. O Leão decretou-lhe mais 2 condenações:

– Já que és Burro, passarás, doravante, a carregar palha para o Cavalo e sua mui querida e estimada Égua. E passarás ainda, aliás, já imediatamente, as tuas orelhas ao Cavalo Trump Leão Obikwelu e, em troca, recebes as dele.

As orelhas do Burro, enquanto Vicente, eram extremamente pequenas para o Cavalo. E as do Cavalo, para o Burro eram excessivamente grandes. Pois, foram ambas talhadas na medida proporcional das suas respetivas estruturas físicas. O inverso já… a bota não podia bater com a perdigota. Nem o Cavalo ficava elegante com umas orelhas tão pequenas e idem para o Burro com umas tão grandalhonas. Mas, consumando ou executando a sentença, o constrangimento do Vicente seria incomensurável. A sua afetação não se resumiria apenas ao físico ou à estética. Também à moral e a própria idoneidade. Ele tinha um amigo que se chamava Tomé e que tinha a mania de só acreditar naquilo que via com os próprios olhos. E o amigo não iria acreditar, certamente, na tese de que tivesse havido uma sentença, justa ou não, emanada de uma Assembleia, que decretasse o despojo de um bem de uma criatura para oferecer à outra. A não ser que já viesse usufruindo do mesmo, há já algum tempo e invocasse o direito da posse por via de usucapião. Mas nunca por mera conveniência ou simples simpatia a um em detrimento do outro. Ele não iria acreditar que o ex-Vicente não tivesse feito um «bákis» [Negócio efetuado baseado em trocas de uma coisa por outra] estúpido com o vaidoso, oportunista e esclavagista, o zonzo deputado Cavalo Leão Trump. Desesperado e plenamente lívido, o agora Burro, lamentando a sua sorte, pôs-se a zurrar e a chamar pelo seu amigo:

– Oh, Toméeee! Aaanda, aaanda, aaanda.

Não havia advogado para defender nenhum Bicho naquela Assembleia Internacional dos Bichos Unidos. Cada qual estava forçado e obrigado a defender-se a si próprio e à sua maneira. Todos estavam sob os imperativos legais… ou ilegais? como quem diz: kenha ki sabe más, konta midjor [Quem souber mais, conte melhor]. Ou ainda, como aquele ditado que diz: Undi da ki panha [Aonde acertar, de qualquer maneira, à toa]. Por exemplo, o Leão era juiz, Advogado e Procurador ao mesmo tempo. Até réu, também ele era. Lembrem-se do mandado de captura contra ele que veio do TPIB?

Mas como o poder corrompe qualquer Bicho, aqui, o Leão na qualidade de julgador, julgou-se primeiro a si próprio. Julgou que podia tudo. Então, de entre os presentes no hemiciclo, ele perguntou quem se ofereceria, enquanto carrasco, para arrancar as orelhas ao Burro. E disse que ao Cavalo viria uma equipa liderada por um cirurgião, um especialista de alta performance, de uma clínica privada de reconhecida honra e comprovado mérito e competência, para lhe efetuar o transplante mediante uma cirurgia, após lhe ter administrado anestesia geral com um spray. O milionário Cavalo não podia sentir a dor, nem de uma picada de agulha de injeção.

O Cão que estava revoltado com a obra que o Vicente lhe fizera, com ânsia, fome e sede da vingança, ofereceu-se para fazer o servicinho, como desforra ou revanches, em nome da justiça, aplicando a lei de Talião, neste caso, retaliação ou, dente por dente, olho por olho. O Lobo também se prontificou. Mas com a intenção honesta e sincera em aplicar a lei e respeitar a bichocracia, o Leão sugeriu, para a escolha do carrasco que ia mutilar as orelhas ao Burro, a utilização de um método sui generis: o jogo do «par ou none» [par ou ímpar]. Pegou em três grãos de feijão, mostrou-os ao público e, com as mãos atrás das costas, distribuiu os grãos da seguinte forma: dois numa mão e um na outra. Colocou as mãos novamente para a frente e, com o punho cerrado, perguntou aos candidatos:

– Par ou None?

O Cão acertou e, num ápice, atirou-se ao Burro e cortou-lhe as duas orelhas que foram transplantadas ao lado de cada um dos olhos do Cavalo. E ao Burro colaram, no alto da cabeça, com uma cola de farinha de trigo, as grandalhonas orelhas que eram do Cavalo.

E o Cavalo como tinha muito dinheiro, tanto dinheiro como a felicidade de que gozava naquele momento, ofereceu uma boa quantidade de notas ao deputado Pitbull pelo trabalho que lhe prestou e, ao Lobo, pela boa vontade demonstrada, deu-lhe uma boa soma de moedas. Quando ele ia para a casa, um Bicho vestido e travestido de Thug, encapuzado e munido de uma arma de fogo, de uma pistola Bóka Bedju, foi assaltar o desgraçado do Lobo. Apontou-lhe a pistola à cabeça e disse sob ameaças:

– Mãos ao ar. ­É um assalto!

 O Lobo nem se preocupou. Meteu as mãos nos bolsos e reforçou a segurança do seu dinheiro. Ardigado [precipitado] e com muita raiva, o tom de ameaça por parte do assaltante subiu de escalão:

– Vá, seu larápio: Vida ou dinheiro.

Com toda a calmaria, o Lobo olhou para o assaltante e disse-lhe:

– Amigo, leva a vida, porque o dinheiro faz falta.

Naquele instante uma Águia sobrevoava aquele espaço, levando um enorme coco preso entre as garras. Estava à procura de uma rocha ou de um penedo para soltar o coco e fazê-lo partir. E o assaltante vinha encarapuçado com uma máscara, toda ela careca e com textura muito rugosa, o que lhe conferia a aparência de um Bicho já cota e andrajoso. E confundindo o disfarce do assaltante com um penhasco, a Águia soltou o coco que, no momento em que o assaltante se preparava para disparar o Bóka Bedju, eis que o coco, com a velocidade do TGV, acertou-lhe em plena moleira [Centro do couro cabeludo]. O travestido Thug caiu desfalecido, mas, embora com dificuldade, resfolegava lentamente. O Lobo retirou-lhe a máscara… afinal era o deputado Macaco, apesar de ter já mudado o nome para Chico.

Tinha visto tudo, muito direitinho, quando o Cavalo pagava pelos serviços que lhe foram prestados. E preteriu Pitbull em detrimento do Lobo, porque este era muito gordo, pesado e não conseguia correr tão rapidamente. Já o Pitbull, não só era um exímio maratonista, lutava bem e todos os Macacos o temiam.

 

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