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Estórias e comportamentos dos bichos 10
Cultura

Estórias e comportamentos dos bichos 10

CAPÍTULO QUINTOA LÍNGUA PORTUGESA NA PERSPETIVA DE UM CHINÊS

(Primeira parte)

Durante a plenária, de lá do fundo do hemiciclo, sentado ao lado do pai Kin Wan Ku, conhecido por China ou Chinóka, o Chinoquinha elevou a mão e esticou um dedo… oh! Perdão. Esticou o dedo indicador. Pois, se tivesse esticado o dedo médio ou do meio, o assunto mudaria completamente de figura, da cor, do tom, de humor e até da compostura. Os semblantes dos Homens-Bichos mais conservadores, como os Católicos, Apostólicos e Romanos; os Protestantes como: Testemunhas de Jeová, Nazarenos, Adventistas, Nova Apostólica e os membros da CRASDT; os do Templo Maior e até do First Love ou Primeiro Amor, uma igreja dirigida por um pastor ganês que, apesar de extremamente jovem, possui lata e habilidade suficientes para convencer os Homens-Bichos de que ofertar bens e pecúnias à casa de Deus, são o passaporte e a chave para entrar na Glória e viver a vida eterna com Jesus Cristo. Chinoquinha esticou o dedo indicador e pediu para colocar um ponto de ordem. E levantou uma questão de ordem gramática/morfossintática assaz pertinente, não havendo quem o tomasse por ridículo e despropositado:

– Porque é que a fêmea do Cavalo se chama Égua e não Cavala?

Um Professor de Língua Portuguesa, conhecidopor Copinho, porque gostava do seu groguinho e, sempre quando entrava numa taberna pedia que lhe servisse um copinho, ofereceu-se para esclarecer as dúvidas quanto ao género gramatical em questão. Mas, quanto mais ele explicava, mais dúvida suscitava e persistia na cabecinha do Chinoquinha, que voltou a questionar:

– Se eu for a um mercado comprar Peixe e encontrar apenas cavala, se eu quiser um macho, não poço pedir que me vendam cavalo?

Querendo e tentando ser o mais explícito, o académico lançou um repto:

– Na semântica da língua portuguesa existem muitas situações dessas, menino. E essas são ínfimas das inúmeras complexidades que, no léxico usado pelos meus irmãos Aguinaldo Fonseca, Amílcar Cabral, António Aurélio Gonçalves, Arménio Vieira, Armindo Tavares, Arnaldo França, Baltasar Lopes da Silva, Carlota de Barros, Corsino Fortes, Dany Spínola, Domingos Cardoso, Dulce Almada, Eduardo Cardoso, Eurides Monteiro, Felisberto Vieira, Francisco Carvalho, Francisco Fragoso, Francisco Xavier, Gabriel Mariano, Geraldo Almeida, Germano Almeida, Isandra da Silva, Ivone Ramos, Jacquelino Varela, João Branco, João Lopes, João Lopes Filho, Jophrey Liobovick, Jorge Barbosa, João Cleofas Martins, João Vário, Jorge Carlos Fonseca, José Lopes da Silva, José Luís Hopffer Almada, José Luís Tavares, José Maria Neves, José Vicente Lopes, Leão Lopes, Luís Romano, Manuel Ferreira, Manuel Lopes, Manuel Veiga, Mário Fonseca, Mário Lúcio Sousa, Mesquitela Lima, Ondina Ferreira, Onésimo Silveira, Orlanda Amarilis, Ovídio Martins, Princesito, Silvino Évora, Teixeira de Sousa, Teobaldo Virgínio, Tomé Varela da Silva, Vera Duarte, Viriato de Barros, Yara dos Santos e Yolanda Morazzo nos constranjam. Então, quero que me respondam a uma pergunta muito singela:

– Como se chama a fêmea do Carneiro?

A maioria respondeu: Carneira. Mas o Professor disse que era Ovelha. E perguntou se sabiam qual a razão desse nome. Sem resposta, ele explicou com sapiência:

– A razão é muito simples. Certo dia, o Carneiro levou a mãe da sua fêmea, sua sogra, a uma clínica por causa de um problema reumático nos joelhos e nos chifres, dor de dentes e menopausa que lhe apressava o esbranquiçar das lãs e o enrugar da pele. Ao entrar no consultório, a sogra escorregou-se e já ia cair. Muito assustado, o médico exclamou para aquela criatura cujo cabelo estava todo branco: Oh, velha! O genro, que há muito andava à cata de um nome que adequasse para apelidar a bruxa da sogra, curtiu a reação, o tom e a expressão com que o epígono de Hipócrates, especialista em estomatologia, reumatologia e desenrugamento dérmico dos Bichos pronunciara a exclamativa palavra: «Oh, velha!» Desde então, o Carneiro passou-se a chamar «Ovelha» à sogra. E com o advento dos netos e de mais rebentos, os alvos cordeirinhos, quando fêmeas, depois de crescidos e serem já mamãs, passarão a responder pelo nome de Ovelha em homenagem à avozinha.

Mesmo após essa brilhante explanação do académico, Chinoquinha não se coibiu e vomitou mais um dos seus desconchaves:

– O Carneiro é vendedor de carne?

– Vendedor de carne?! – rugiu Leão – A que propósito veio essa pergunta?

– Quando se é bebé, chama-se cordeiro. Depois de grande passa-se a Carneiro! Pensei que fosse pela profissão de vendedor de carne que lhe chamam assim?

– Não, Chinoquinha! Então achas que cordeiro se tem esse nome porque vai ao curandeiro fazer corda para transtornar ou matar criaturas?

Questionou Professor, sorrindo antes de agradecer ao Leão pela oportunidade que lhe concedera para expor o seu talento.

Mas Chinoquinha, teimosamente, voltou a levantar o dedo e a pedir para falar. Abriu um caderno diário e começou a enumerar um conjunto de palavras escritas nos dois géneros, que registara durante a pesquisa para um trabalho de Língua Portuguesa que frequentava na UniCv:

– Abelha / Abelho; Balata / Balato; Besta / Besto; Bode / Boda; Bulo / Bula; Cabla / Cablo; Calneilo / Calneila; Cavalo / Cavala; Clocodilo / Clocodila; Cobla / Coblo; Colvo / Colva; Dragão / Dragoa ou Dragona; Elefante / Elefanta; Folmiga / Folmigo; Galinha / Galinho; Galo / Gala; Galça / Galço; Glilo / Glila; Hiena / Hieno; Lagaltixa / Lagaltixo; Lato / Lata; Minhoca / Minhoco; Minhoto / Minhota; Mosca / Mosco; Mosquito / Mosquita; Mula / Mulo; Osga / Osgo; Papagaio / Papagaia; Pinto / Pinta; Piolho / Piolha; Pulga / Pulgo; Pulguinha / Pulguinho; Sapo / Sapa; Cacholo / Cachola; Centopeia / Centopeio; Taltaluga / Taltalugo; Vaca / Vaco; Zebla / Zeblo.

O ambiente tornou-se ensurdecedor. Uns riam-se, outros tossiam, até um discreto gás se escapou pelo orifício anal de um dos presentes, tendo-se difundido em odor, infelizmente malcheiroso, entre a barulheira que emouquecia o amplo espaço. Mas aqui já, foi tão desagradável quanto injusto e constrangedor. Todos pensaram que fora o deputado Cão e ficaram a olhar para ele com desdém e certa repulsa. Porém, aquele fétido sopro, que não sendo silencioso seria traque ou peido, provinha do fundilho de umas calças com suspensórios e que pertenciam a uma distinta bichonalidade. Todavia, com o intuito de desanuviar aquele ambiente, de suavizar o clima e desviar a atenção em abonamento ao deputado Cão, o Leão perguntou-lhe:

– Já estás melhor das cataratas?

Mas o Cão não respondeu. A injusta suspeição que lhe recaíra por cima não lhe agradara. Envergonhado, levantou-se e saiu com as orelhas baixas e o rabo entre as pernas, como se declarasse fiasco ou anunciasse tréguas numa ação beligerante. Consumada a sua retirada, a atenção que até antes do injusto incidente se colimava atingir Chinoquinha, o aluno da Língua Portuguesa, voltou à ribalta. E desta feita o coitado sentia-se mais desconfortável, confuso e inseguro quanto ao domínio do idioma luso. Porém, arremetido pelas dúvidas e pressões psicológicas, asseverou:

– O vosso idioma é o mais difícil do mundo. Na China, quando estamos a falar e não estamos a perceber o que o outro diz, exclamamos: estás a falar português, ou quê?

Mas lá fora também as coisas não terão corrido muito bem a favor do deputado canino. Foi tentar fazer um cagaço na empena de uma casa, quando já estava de cócoras e a espremer para expelir a bosta, surgiram do outro lado da esquina, dois rapazinhos que, ao aperceberem-se do trabalho que ele queria fazer, atracaram o dedo mindinho de um no de outro e ficaram a chamar-se pelo nome, um ao outro. Por mais que o deputado espremesse, nada saía. Refletiu e fez uso de um axioma que o acabaria por libertar de um complexo inútil:

– Quem não deve não teme. Não fui eu que dei fus! [Mau vento, bufa]

Na realidade não havia razão para que ele temesse. Não era ele o autor da polémica bufa, pelo que não tinha satisfações a dar a ninguém, senão a si e à sua consciência. Resolveu voltar para a reunião e ao convívio dos demais. Acabara de perceber, após esse segundo episódio, que não se deveriam levar a sério certas coisas do mundo. Que às vezes era necessário ser resiliente. Concluiu que nada se achava devidamente seguro, nesta terra de porcaria, onde já nem o direito de cagar em paz um Cão tem. E nem um Cão deputado! E fez mais uma vez o uso de um novo aforismo:

– Quando se está com azar, come-se papa e os dentes caem.

Retornou à sala para o convívio dos restantes. Naturalmente as coisas não iam nada bem na cidade capital. Tudo andava «lagadjidu» [descontrolado]. E ainda hoje, por onde se passa é confrontado com situações de assédio que culminam com o aflorar do estrese e a proliferação de esquizofrenia, entre outros padecimentos de foro neuropsicológico. Pois, é amiúde inquietado pelas buzinas de táxis, identificados ou descaracterizados, denominados de Clã, perguntando:

– Precisas de um táxi? Vais à Praia? São Filipe? Ponta d’Água? Palmarejo?

E tudo com uma despudorada naturalidade, medonha descontração e triste falta de respeito, como se a maioria não fosse clandestina ou simplesmente Clã na gíria ou na linguagem abreviada. Não pagam um único centavo ao erário público, quer dizer, de impostos, alguns nem sequer possuem um seguro obrigatório contra terceiros em caso de acidente. Também os Hiaces, num frenético e desarticulado vaivém, buzinam minuto-a-minuto e, o catador de passageiros ou ajudante, de cabeça de fora e num desmesurado frenesim vai perguntando e gesticulando o braço:

– Santiago. O carro está cheio. Vamos direto, só temos um lugar. – Quase em paralelo, um outro Hiace reduz a velocidade e o ajudante berra. – Vais Assomada? Ou Tarrafal? Bora lá. O carro está cheio. Assomada sem paragem.

Alguns até descem e, num verdadeiro ato de quase rapto, sequestro ou assédio, pegam nos transeuntes e tentam metê-los à força no carro. E se não lhes obedecem, cobam-nos ainda só fedi. [Descompõe-nos duramente] Também as rabidantes não ficam indiferentes. Não se cansam de apregoar:

– Banana madura, freguesa. Quanto é que queres? Faço-te cinco por 100 das grandes, e das mais pequenas faço-te a 15$00 cada.

Do outro lado berra uma rapariga aparentemente muito jovem:

– Papaia baratinha. Tenho papainha, tenho papaiona. Papainha 150$00 o quilo e papaiona [Papaia grande] 140;

Mas além remata uma moça que acabara de chegar, vinda da ilha do Fogo:

– Mação do Fogo! Bonita e apetitosa. Só 20$00 cada uma.

Em passos largos passa um puto com uma garrafa debaixo do braço e um,a caneca na mãoo:

Água fresca, amigo? Está mesmo fresquinha. Só 5$00 cada caneca.

E em cada esquina se depara com um guineense, um senegalês, um nigeriano, um gambiano, um maliano, um mauritano ou um ganês vendendo quase tudo o que se importa da terra deles: cintos, carteiras, tecidos africanos, capas para tabletes e telemóveis, pilhas, máquina calculadora, obras de arte em madeira, contas coloridas, materiais de todas as espécies para construção civil, medicamentos como comprimidos, mentol-atos, penso rápido, banha da Cobra, Pau de Cabinda, Cialis, Puregrey-100, Viagra, camisinha ou preservativo, máscara contra Covid-19, álcool, álcool-gel, etc. Alguns compram ouro estragado, telemóveis e computadores usados, todo o tipo de velharias para reciclagem. Até sanitas e bidés usados eles compram ou trocam com drogas nos adolescentes. Esses nossos irmãos são pejorativamente apelidados de Manjaco por causa da tez bastante queimada de sua pele. E a todos eles chamam de Amigo como se fosse a única palavra que sabem expressar em crioulo. 

Nas barracas dos monhê [Indianos, Afegãos, Paquistanês e Bangladesh], muitas delas improvisadas com madeiras velhas, sacos, plásticos e papelões, as pessoas enfileiram-se e esperam pela sua vez para desbloquearem os telemóveis, concertarem os eletrodomésticos, comprarem rádios, tabletes, computadores portáteis, microondas, DVDs piratas, tapetes orientais, especiarias como caril, piripiri, pimenta, cominho, colorau, açafrão, etc., ou para se servirem do telefone público e fazer chamadas para o estrangeiro ou, navegarem na Internet, enviando mensagens por e-mail, Viber, Messenger, WhatSapp ou Facebook.

Os chineses, com lojas espalhadas por toda a ilha, alternadas porta sim porta não, recheadas com tudo e decoradas à moda asiática, dizem para os que por perto circulam:

– Tudo balato. China tene tudo balato. Tene tudo na móia [Em saldo, no leilão].

E no Sucupira então!… Aí nem se fala. A cada passo que se dá ouve-se vozes:

– Anda a almoçar, freguês. Não queres negociar comigo? Tenho perna, asa e peito.

A escassos metros, numa outra barraca ao lado, uma moça lava uma pilha de pratos num alguidar e sempre na mesma água, enquanto diz:

– Feijão com toucinho salgado e xerém de milho-de-terra, com vinho tinto fresquinho e de várias marcas. Até Manekon lá dos Mosteiros da ilha do Fogo.

Um pouco mais além, uma senhora, na casa dos 40, limpa o nariz com a costa da mão depois de assoar um ranho amarelado e pastoso, enquanto diz: ­

– Guisado de carne de Vaca com mandioca e batata-doce.

Já do outro lado, um rapaz com um avental protegendo-lhe a parte frontal do corpo, conferindo-lhe um ar notoriamente feminino, convida:

– Vem, freguês, hoje tenho congo com carne salgada, sta rai-di sábi [Está muito saboroso]. Quem o come não resiste para não lamber o beiço ou pedir bis.

Numa outra barraca, igualmente improvisada, uma senhora gorda, alta e bastante mulata, que só se apercebia que era de uma das tabancas bissauense pelo sotaque da sua pronúncia ou pelas vestes afro que envergava, não parava de publicitar a gastronomia da sua região:

– Txepe de peixe e de frango com molho de tamarindo e piripiri. E temos também caldo de mancara, funje de Angola e nbelela de São Tomé e Principe.

CAPÍTULO QUINTO

A LÍNGUA PORTUGESA NA PERSPETIVA DE UM CHINÊS

(Primeira parte)

Durante a plenária, de lá do fundo do hemiciclo, sentado ao lado do pai Kin Wan Ku, conhecido por China ou Chinóka, o Chinoquinha elevou a mão e esticou um dedo… oh! Perdão. Esticou o dedo indicador. Pois, se tivesse esticado o dedo médio ou do meio, o assunto mudaria completamente de figura, da cor, do tom, de humor e até da compostura. Os semblantes dos Homens-Bichos mais conservadores, como os Católicos, Apostólicos e Romanos; os Protestantes como: Testemunhas de Jeová, Nazarenos, Adventistas, Nova Apostólica e os membros da CRASDT; os do Templo Maior e até do First Love ou Primeiro Amor, uma igreja dirigida por um pastor ganês que, apesar de extremamente jovem, possui lata e habilidade suficientes para convencer os Homens-Bichos de que ofertar bens e pecúnias à casa de Deus, são o passaporte e a chave para entrar na Glória e viver a vida eterna com Jesus Cristo. Chinoquinha esticou o dedo indicador e pediu para colocar um ponto de ordem. E levantou uma questão de ordem gramática/morfossintática assaz pertinente, não havendo quem o tomasse por ridículo e despropositado:

– Porque é que a fêmea do Cavalo se chama Égua e não Cavala?

Um Professor de Língua Portuguesa, conhecidopor Copinho, porque gostava do seu groguinho e, sempre quando entrava numa taberna pedia que lhe servisse um copinho, ofereceu-se para esclarecer as dúvidas quanto ao género gramatical em questão. Mas, quanto mais ele explicava, mais dúvida suscitava e persistia na cabecinha do Chinoquinha, que voltou a questionar:

– Se eu for a um mercado comprar Peixe e encontrar apenas cavala, se eu quiser um macho, não poço pedir que me vendam cavalo?

Querendo e tentando ser o mais explícito, o académico lançou um repto:

– Na semântica da língua portuguesa existem muitas situações dessas, menino. E essas são ínfimas das inúmeras complexidades que, no léxico usado pelos meus irmãos Aguinaldo Fonseca, Amílcar Cabral, António Aurélio Gonçalves, Arménio Vieira, Armindo Tavares, Arnaldo França, Baltasar Lopes da Silva, Carlota de Barros, Corsino Fortes, Dany Spínola, Domingos Cardoso, Dulce Almada, Eduardo Cardoso, Eurides Monteiro, Felisberto Vieira, Francisco Carvalho, Francisco Fragoso, Francisco Xavier, Gabriel Mariano, Geraldo Almeida, Germano Almeida, Isandra da Silva, Ivone Ramos, Jacquelino Varela, João Branco, João Lopes, João Lopes Filho, Jophrey Liobovick, Jorge Barbosa, João Cleofas Martins, João Vário, Jorge Carlos Fonseca, José Lopes da Silva, José Luís Hopffer Almada, José Luís Tavares, José Maria Neves, José Vicente Lopes, Leão Lopes, Luís Romano, Manuel Ferreira, Manuel Lopes, Manuel Veiga, Mário Fonseca, Mário Lúcio Sousa, Mesquitela Lima, Ondina Ferreira, Onésimo Silveira, Orlanda Amarilis, Ovídio Martins, Princesito, Silvino Évora, Teixeira de Sousa, Teobaldo Virgínio, Tomé Varela da Silva, Vera Duarte, Viriato de Barros, Yara dos Santos e Yolanda Morazzo nos constranjam. Então, quero que me respondam a uma pergunta muito singela:

– Como se chama a fêmea do Carneiro?

A maioria respondeu: Carneira. Mas o Professor disse que era Ovelha. E perguntou se sabiam qual a razão desse nome. Sem resposta, ele explicou com sapiência:

– A razão é muito simples. Certo dia, o Carneiro levou a mãe da sua fêmea, sua sogra, a uma clínica por causa de um problema reumático nos joelhos e nos chifres, dor de dentes e menopausa que lhe apressava o esbranquiçar das lãs e o enrugar da pele. Ao entrar no consultório, a sogra escorregou-se e já ia cair. Muito assustado, o médico exclamou para aquela criatura cujo cabelo estava todo branco: Oh, velha! O genro, que há muito andava à cata de um nome que adequasse para apelidar a bruxa da sogra, curtiu a reação, o tom e a expressão com que o epígono de Hipócrates, especialista em estomatologia, reumatologia e desenrugamento dérmico dos Bichos pronunciara a exclamativa palavra: «Oh, velha!» Desde então, o Carneiro passou-se a chamar «Ovelha» à sogra. E com o advento dos netos e de mais rebentos, os alvos cordeirinhos, quando fêmeas, depois de crescidos e serem já mamãs, passarão a responder pelo nome de Ovelha em homenagem à avozinha.

Mesmo após essa brilhante explanação do académico, Chinoquinha não se coibiu e vomitou mais um dos seus desconchaves:

– O Carneiro é vendedor de carne?

– Vendedor de carne?! – rugiu Leão – A que propósito veio essa pergunta?

– Quando se é bebé, chama-se cordeiro. Depois de grande passa-se a Carneiro! Pensei que fosse pela profissão de vendedor de carne que lhe chamam assim?

– Não, Chinoquinha! Então achas que cordeiro se tem esse nome porque vai ao curandeiro fazer corda para transtornar ou matar criaturas?

Questionou Professor, sorrindo antes de agradecer ao Leão pela oportunidade que lhe concedera para expor o seu talento.

Mas Chinoquinha, teimosamente, voltou a levantar o dedo e a pedir para falar. Abriu um caderno diário e começou a enumerar um conjunto de palavras escritas nos dois géneros, que registara durante a pesquisa para um trabalho de Língua Portuguesa que frequentava na UniCv:

– Abelha / Abelho; Balata / Balato; Besta / Besto; Bode / Boda; Bulo / Bula; Cabla / Cablo; Calneilo / Calneila; Cavalo / Cavala; Clocodilo / Clocodila; Cobla / Coblo; Colvo / Colva; Dragão / Dragoa ou Dragona; Elefante / Elefanta; Folmiga / Folmigo; Galinha / Galinho; Galo / Gala; Galça / Galço; Glilo / Glila; Hiena / Hieno; Lagaltixa / Lagaltixo; Lato / Lata; Minhoca / Minhoco; Minhoto / Minhota; Mosca / Mosco; Mosquito / Mosquita; Mula / Mulo; Osga / Osgo; Papagaio / Papagaia; Pinto / Pinta; Piolho / Piolha; Pulga / Pulgo; Pulguinha / Pulguinho; Sapo / Sapa; Cacholo / Cachola; Centopeia / Centopeio; Taltaluga / Taltalugo; Vaca / Vaco; Zebla / Zeblo.

O ambiente tornou-se ensurdecedor. Uns riam-se, outros tossiam, até um discreto gás se escapou pelo orifício anal de um dos presentes, tendo-se difundido em odor, infelizmente malcheiroso, entre a barulheira que emouquecia o amplo espaço. Mas aqui já, foi tão desagradável quanto injusto e constrangedor. Todos pensaram que fora o deputado Cão e ficaram a olhar para ele com desdém e certa repulsa. Porém, aquele fétido sopro, que não sendo silencioso seria traque ou peido, provinha do fundilho de umas calças com suspensórios e que pertenciam a uma distinta bichonalidade. Todavia, com o intuito de desanuviar aquele ambiente, de suavizar o clima e desviar a atenção em abonamento ao deputado Cão, o Leão perguntou-lhe:

– Já estás melhor das cataratas?

Mas o Cão não respondeu. A injusta suspeição que lhe recaíra por cima não lhe agradara. Envergonhado, levantou-se e saiu com as orelhas baixas e o rabo entre as pernas, como se declarasse fiasco ou anunciasse tréguas numa ação beligerante. Consumada a sua retirada, a atenção que até antes do injusto incidente se colimava atingir Chinoquinha, o aluno da Língua Portuguesa, voltou à ribalta. E desta feita o coitado sentia-se mais desconfortável, confuso e inseguro quanto ao domínio do idioma luso. Porém, arremetido pelas dúvidas e pressões psicológicas, asseverou:

– O vosso idioma é o mais difícil do mundo. Na China, quando estamos a falar e não estamos a perceber o que o outro diz, exclamamos: estás a falar português, ou quê?

Mas lá fora também as coisas não terão corrido muito bem a favor do deputado canino. Foi tentar fazer um cagaço na empena de uma casa, quando já estava de cócoras e a espremer para expelir a bosta, surgiram do outro lado da esquina, dois rapazinhos que, ao aperceberem-se do trabalho que ele queria fazer, atracaram o dedo mindinho de um no de outro e ficaram a chamar-se pelo nome, um ao outro. Por mais que o deputado espremesse, nada saía. Refletiu e fez uso de um axioma que o acabaria por libertar de um complexo inútil:

– Quem não deve não teme. Não fui eu que dei fus! [Mau vento, bufa]

Na realidade não havia razão para que ele temesse. Não era ele o autor da polémica bufa, pelo que não tinha satisfações a dar a ninguém, senão a si e à sua consciência. Resolveu voltar para a reunião e ao convívio dos demais. Acabara de perceber, após esse segundo episódio, que não se deveriam levar a sério certas coisas do mundo. Que às vezes era necessário ser resiliente. Concluiu que nada se achava devidamente seguro, nesta terra de porcaria, onde já nem o direito de cagar em paz um Cão tem. E nem um Cão deputado! E fez mais uma vez o uso de um novo aforismo:

– Quando se está com azar, come-se papa e os dentes caem.

Retornou à sala para o convívio dos restantes. Naturalmente as coisas não iam nada bem na cidade capital. Tudo andava «lagadjidu» [descontrolado]. E ainda hoje, por onde se passa é confrontado com situações de assédio que culminam com o aflorar do estrese e a proliferação de esquizofrenia, entre outros padecimentos de foro neuropsicológico. Pois, é amiúde inquietado pelas buzinas de táxis, identificados ou descaracterizados, denominados de Clã, perguntando:

– Precisas de um táxi? Vais à Praia? São Filipe? Ponta d’Água? Palmarejo?

E tudo com uma despudorada naturalidade, medonha descontração e triste falta de respeito, como se a maioria não fosse clandestina ou simplesmente Clã na gíria ou na linguagem abreviada. Não pagam um único centavo ao erário público, quer dizer, de impostos, alguns nem sequer possuem um seguro obrigatório contra terceiros em caso de acidente. Também os Hiaces, num frenético e desarticulado vaivém, buzinam minuto-a-minuto e, o catador de passageiros ou ajudante, de cabeça de fora e num desmesurado frenesim vai perguntando e gesticulando o braço:

– Santiago. O carro está cheio. Vamos direto, só temos um lugar. – Quase em paralelo, um outro Hiace reduz a velocidade e o ajudante berra. – Vais Assomada? Ou Tarrafal? Bora lá. O carro está cheio. Assomada sem paragem.

Alguns até descem e, num verdadeiro ato de quase rapto, sequestro ou assédio, pegam nos transeuntes e tentam metê-los à força no carro. E se não lhes obedecem, cobam-nos ainda só fedi. [Descompõe-nos duramente] Também as rabidantes não ficam indiferentes. Não se cansam de apregoar:

– Banana madura, freguesa. Quanto é que queres? Faço-te cinco por 100 das grandes, e das mais pequenas faço-te a 15$00 cada.

Do outro lado berra uma rapariga aparentemente muito jovem:

– Papaia baratinha. Tenho papainha, tenho papaiona. Papainha 150$00 o quilo e papaiona [Papaia grande] 140;

Mas além remata uma moça que acabara de chegar, vinda da ilha do Fogo:

– Mação do Fogo! Bonita e apetitosa. Só 20$00 cada uma.

Em passos largos passa um puto com uma garrafa debaixo do braço e um,a caneca na mãoo:

Água fresca, amigo? Está mesmo fresquinha. Só 5$00 cada caneca.

E em cada esquina se depara com um guineense, um senegalês, um nigeriano, um gambiano, um maliano, um mauritano ou um ganês vendendo quase tudo o que se importa da terra deles: cintos, carteiras, tecidos africanos, capas para tabletes e telemóveis, pilhas, máquina calculadora, obras de arte em madeira, contas coloridas, materiais de todas as espécies para construção civil, medicamentos como comprimidos, mentol-atos, penso rápido, banha da Cobra, Pau de Cabinda, Cialis, Puregrey-100, Viagra, camisinha ou preservativo, máscara contra Covid-19, álcool, álcool-gel, etc. Alguns compram ouro estragado, telemóveis e computadores usados, todo o tipo de velharias para reciclagem. Até sanitas e bidés usados eles compram ou trocam com drogas nos adolescentes. Esses nossos irmãos são pejorativamente apelidados de Manjaco por causa da tez bastante queimada de sua pele. E a todos eles chamam de Amigo como se fosse a única palavra que sabem expressar em crioulo. 

Nas barracas dos monhê [Indianos, Afegãos, Paquistanês e Bangladesh], muitas delas improvisadas com madeiras velhas, sacos, plásticos e papelões, as pessoas enfileiram-se e esperam pela sua vez para desbloquearem os telemóveis, concertarem os eletrodomésticos, comprarem rádios, tabletes, computadores portáteis, microondas, DVDs piratas, tapetes orientais, especiarias como caril, piripiri, pimenta, cominho, colorau, açafrão, etc., ou para se servirem do telefone público e fazer chamadas para o estrangeiro ou, navegarem na Internet, enviando mensagens por e-mail, Viber, Messenger, WhatSapp ou Facebook.

Os chineses, com lojas espalhadas por toda a ilha, alternadas porta sim porta não, recheadas com tudo e decoradas à moda asiática, dizem para os que por perto circulam:

– Tudo balato. China tene tudo balato. Tene tudo na móia [Em saldo, no leilão].

E no Sucupira então!… Aí nem se fala. A cada passo que se dá ouve-se vozes:

– Anda a almoçar, freguês. Não queres negociar comigo? Tenho perna, asa e peito.

A escassos metros, numa outra barraca ao lado, uma moça lava uma pilha de pratos num alguidar e sempre na mesma água, enquanto diz:

– Feijão com toucinho salgado e xerém de milho-de-terra, com vinho tinto fresquinho e de várias marcas. Até Manekon lá dos Mosteiros da ilha do Fogo.

Um pouco mais além, uma senhora, na casa dos 40, limpa o nariz com a costa da mão depois de assoar um ranho amarelado e pastoso, enquanto diz: ­

– Guisado de carne de Vaca com mandioca e batata-doce.

Já do outro lado, um rapaz com um avental protegendo-lhe a parte frontal do corpo, conferindo-lhe um ar notoriamente feminino, convida:

– Vem, freguês, hoje tenho congo com carne salgada, sta rai-di sábi [Está muito saboroso]. Quem o come não resiste para não lamber o beiço ou pedir bis.

Numa outra barraca, igualmente improvisada, uma senhora gorda, alta e bastante mulata, que só se apercebia que era de uma das tabancas bissauense pelo sotaque da sua pronúncia ou pelas vestes afro que envergava, não parava de publicitar a gastronomia da sua região:

– Txepe de peixe e de frango com molho de tamarindo e piripiri. E temos também caldo de mancara, funje de Angola e nbelela de São Tomé e Principe.

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