A pergunta que não cala é como é que as autoridades cabo-verdianas, representantes de um país em que grande parte dos cidadãos vive no estrangeiro, podem associar-se a gente tão pouco recomendável e tão avessa a emigrantes? Como é que as autoridades nacionais se dão ao desplante de nomear para cargos de cônsul honorário pessoas cujo perfil se situa nas antípodas do que deverá ter um representante de Cabo Verde? Como preservar a boa imagem externa de Cabo Verde – capital importante para a promoção do seu desenvolvimento -, com políticas do tipo e representantes no exterior com tais características? Que interesses obscuros estarão por detrás.
Há poucos dias, a pacatez dos cabo-verdianos foi fortemente abalada pela notícia divulgada pela Televisão Portuguesa SIC, expondo a existência de ligações perigosas entre autoridades nacionais e altos responsáveis de um partido estrangeiro de extrema-direita, o CHEGA, xenófobo e anti-emigração, de entre os quais se destaca o Cônsul Honorário de Cabo Verde na Flórida, pessoa de duvidosa reputação, pois fugitiva da justiça portuguesa, durante muito tempo, e principal financiador do referido partido.
Além do citado cônsul, da parte do referido partido estão envolvidos nessa questão o próprio presidente do CHEGA que se tem destacado por ataques à emigração, num país amigo que acolhe uma significativa comunidade cabo-verdiana, um dos vice-presidentes, a esposa do cônsul (também ela cônsul de Cabo Verde noutra cidade), um advogado e um indivíduo ligado à claque de um club de futebol e conhecido elemento de extrema-direita.
No que concerne às autoridades cabo-verdianas, as fotos e videos da reportagem da SIC e da própria página do Cônsul-Honorário, de posts divulgados posteriormente, mostram que, pelo menos, estão envolvidos os Ministros dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, da Presidência e da Juventude, o ex-Embaixador nos Estados Unidos da América e um ex-deputado do MpD pela emigração. Ainda há notícias de que estava prevista para março a visita a Cabo Verde do Presidente do CHEGA, anulada à última hora devido ao surgimento do covid-19. Caso a viagem do presidente desse partido se concretizasse, ele seria recebido por personalidades com maiores responsabilidades na hierarquia do Estado.
Os dados disponíveis indicam que a ligação entre as partes foi estabelecida ao mais alto nível, tendo merecido a máxima atenção do lado cabo-verdiano, como atestam a lista das personalidades nacionais envolvidas e a despropositada guarda de honra prestada por militares ao cônsul honorário, o que configura uma verdadeira “caboverdura”, capaz de fazer inveja a qualquer República de Bananas.
Os cabo-verdianos, no país e na diáspora, receberam a notícia com perplexidade, revolta e vergonha perante tanta ligeireza, tamanha ousadia e falta de sentido de estado demonstradas pelos seus governantes, o que suscitou um coro de indignação, expresso nas redes sociais, nas ruas, nos mercados, nas universidades, enfim em todo o lado. Pelos contornos e possíveis consequências, trata-se, seguramente, de um dos maiores escândalos da história da governação do país, requerendo que os mentores se expliquem e lhes sejam assacadas responsabilidades políticas pela inqualificável manifestação de má governança e de falta de transparência.
Embora ainda se esteja longe de compreender todos os meandros deste imbróglio, desde já importa que algumas questões sejam suscitadas, esperando que os principais protagonistas dêm explicações à Nação, ajudando-a a sair do estado de incredulidade em que se encontra, desde a referida emissão televisiva.
A pergunta que não cala é como é que as autoridades cabo-verdianas, representantes de um país em que grande parte dos cidadãos vive no estrangeiro, podem associar-se a gente tão pouco recomendável e tão avessa a emigrantes? Como é que as autoridades nacionais se dão ao desplante de nomear para cargos de cônsul honorário pessoas cujo perfil se situa nas antípodas do que deverá ter um representante de Cabo Verde? Como preservar a boa imagem externa de Cabo Verde – capital importante para a promoção do seu desenvolvimento -, com políticas do tipo e representantes no exterior com tais características? Que interesses obscuros estarão por detrás.
Por mais voltas que se queira dar, não há como fugir à conclusão de que a resposta aponta para um misto de desprezo e desconsideração para com os cabo-verdianos, arrogância, sentimento de impunidade, irresponsabilidade e falta de patriotismo da parte das autoridades cabo-verdianas. Comportaram-se na gestão da coisa pública como se fossem os “donos disto tudo” e não tivessem contas a prestar a ninguém.
Embora a responsabilidade deva ser assacada ao Governo, na pessoa do Senhor Primeiro-ministro, torna-se pertinente entender quem foi o mentor dessa tramoia. Ou seja, quem está na origem da “descoberta” da pessoa que viria a ser nomeada cônsul honorário na Flórida? Quem descobriu a esposa desse indivíduo que, por sua vez, também seria nomeada cônsul honorário em New Jersey? Quem organizou a sua viagem a Cabo Verde? Quem abriu as portas do Governo de Cabo Verde a tais pessoas? Quem estabeleceu a ligação com o partido estrangeiro de extrema direita, xenófobo e anti-emigração?
À primeira vista poder-se-ia pensar que o Ministro dos Negócios Estrangeiros fosse o maestro deste “(des)concerto económico-diplomático”. Entretanto, vozes autorizadas e conhecedoras do actual estado calamitoso da diplomacia cabo-verdiana, dizem que o “dito cujo” não decide nada e quem, verdadeiramente, determina a orientação da nossa Chancelaria são dois ou três poderosos embaixadores políticos, proeminentes figuras do MpD, cirurgicamente colocados em determinadas capitais, o que, aliás, torna irrelevante a demissão do Ministro.
Os factos apontam que o mentor, o verdadeiro estratega dessa operação de aproximação do governo a partidos de extrema direita, xenófobos e anti-emigrantes, de nomeação dos cônsules honorários na Flórida e em New Jersey (marido e mulher), e de organização da viagem destes a Cabo Verde é o ex-Embaixador nos Estados Unidos de América, Carlos Veiga, a mesma personalidade que já anunciou a sua candidatura a Presidente da República, nas eleições de Outubro próximo, o mais alto magistrado da Nação, o guardião da Constituição da República.
Que cada cabo-verdiano tire as suas conclusões.
Comentários