POR OCASIÃO DO 48º ANIVERSÁRIO DA PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA DE CABO VERDE LIVRE, INDEPENDENTE E SOBERANA
Curvado sobre o sol, o suor e o verde mar da solidão,
debruçado sobre os lívidos conspectos da circunspecção,
convalescente sobre os circundados tempos da revolução,
ficas reflectindo sobre a orfandade do hino e as sombras erectas
irradiando dos signos maduros da concha e do milho faminto
aconchegados na bandeira ouro-rubro-verde e na estrela negra
da liberdade da pátria africana bi-nacional, da sua memória hasteada
sobre os tempos novos dos nossos olhos navegantes dos tempos
da vibrátil reverberação da esperança e das rememorações...
Ah! Estes tempos novos de estudada rememoração contra a amnésia
dos aturdidos tempos coloniais de antanho,
desses atordoados tempos da multissecular dominação estrangeira,
desses atemorizados tempos do chão nosso exaurido, sugado por mais
de meio milénio de opressão e sobre-exploração coloniais,
desses enterrados tempos do quase nada legado para as gerações nativas remanescentes das calamidades climatéricas e das muitas mortandades derivadas das fomes que infestaram as tragédias históricas do povo caboverdiano,
desses entediados tempos devorados e devastados pela insana saga predatória das atrasadíssimas classes possidentes coloniais, dos seus rebanhos de cabras e de cordeiros de Deus e da extenuante lavoura dos réditos dos senhores dos céus e das terras, dos seus mananciais de curtume e lucro, dos seus madeirames para a construção de naus negreiras e de outros navios de longo curso no comércio triangular e no tráfico transatlântico do café, da urzela, da cana-de-açúcar, dos panos de algodão, das cabeças de alcatrão,
desses entristecidos tempos do quase nada deixado em herança no domínio fabril, na agricultura, no sector empresarial, na área produtiva em geral, pelo longevo e senil colonialismo português,
desses envilecidos tempos do quase nada deixado nas áreas do ensino e da saúde pelo arcaico e obscurantista colonialismo português,
salvo alguns silos para o armazenamento de cereais e algumas vetustas fábricas de conservas de peixe,
salvo algumas medievas instalações de fabrico de bolacha e de outros
poucos géneros alimentícios,
salvo algumas salinas deficitárias e em estado de semi-abandono,
salvo alguns obsoletos equipamentos artesanais destinados ao fabrico
do mel da cana-de-açúcar e à destilação de aguardente,
salvo um único aeroporto internacional e alguns aeródromos, cais acostáveis e docas de pesca,
salvo alguns dispositivos de amarração de cabos submarinos e outras poucas infra-estruturas de telecomunicação transatlântica,
salvo raros viadutos, algumas estradas calcetadas e ruas alcatroadas e umas tantas pontes, algumas delas assaz imponentes se bem que bastas vezes impotentes, e nenhum aquaduto, e nenhum túnel, e nenhuma auto-estrada, e nenhuma via rápida, e nenhuma circular, e os muitos trilhos de terra batida, e os muitos caminhos de cabras e de desgraça, e as muitas rotas para a ontologia da afronta e do desânimo, e os muitos caminhos do mar da emigração e da forçada expatriação dos corpos famélicos em risco iminente de morte por inanição,
salvo dois liceus localizados nas cidades da Praia e do Mindelo, um seminário católico localizado na Ponta Temerosa da cidade-capital, um seminário nazareno localizado na ilha de São Vicente, uma escola técnica sediada na cidade do Porto Grande, um ciclo preparatório dos liceus sito na vila do planalto da Assomada, três externatos semi-oficiais localizados nas ilhas de Santo Antão, de São Nicolau e do Sal, uma escola do magistério primário situada na Variante de São Domingos da ilha de Santiago e uma escola de formação de práticos agrícolas situada em São Jorge dos Órgãos,
salvo dois hospitais sediados nos centros urbanos principais dos distritos do Sotavento e do Barlavento, alguns centros de saúde concelhios, uma quinta enfermaria psiquiátrica localizada na cidade da Praia, uma maternidade localizada na cidade de São Filipe, algumas farmácias e drogarias e uma multitude de mestres curandeiros e djambacosses para a cura das maleitas do corpo e dos males do espírito,
salvo dois estádios municipais de futebol de terra batida localizados nos centros urbanos principais, dois ginásios liceais para a prática de ginástica, futebol de salão, basquetebol, andebol e voleibol, inúmeros campos de futebol enrodilhados no atletismo dos pés ágeis de adultos, adolescentes e crianças do arquipélago da poeira, da ventania e da tenacidade,
salvo os muitos e periclicantes diques de correcção torrencial espalhados pelas ribeiras e ribanceiras das ilhas e erguidos pelos corpos atrozmente sub-empregados e severamente sub-alimentados dos homens e das mulheres dos campos desolados, assolados pelas as-secas e pela ameaça de morticínio pelas proverbiais e mais que conhecidas pragas do arquipélago das fomes e salvos in extremis pelos chamados trabalhos de apoio providenciados pelos governadores e administradores coloniais em busca desesperada de políticas de fomento de um Cabo Verde colonial dito melhor à semelhança das políticas de sorriso e sangue da Guiné Melhor empreendidas e implementadas pelo governador-general de bengalim e monóculo em resposta às persistentes denúncias nos palcos e foros internacionais protagonizadas por Abel Djassi e pelo seu movimento de libertação binacional contra as abstrusas, demagógicas e populistas manobras de perpetuação do domínio e do mando coloniais, por demais visíveis nas alienígenas páginas dos livros escolares e nos seus estranhos ensinamentos eivados de resignação e fatalismo cristãos, por demais visíveis nas arreigadas tradições das seculares subserviência e dependência coloniais, por demais visíveis nos enraizados hábitos de servilismo clientelar, por demais visíveis na muita miséria circundando a persistente mentalidade assistencialista das populações das ilhas, por demais visíveis na seminua indigência e a pobreza convictamente endémicas entranhando a predominante cultura miserabilista dos habitantes das ilhas,
salvo muitíssimo pouco mais,
excepto o inesperado que fomos nós, nascidos cativos e amados das ilhas,
salvo quase nada mais,
excepto o muitíssimo mais que fomos nós, forjados nos tempos da provação e do vitupério para a manutenção de nós mesmos, dos nossos corpos iconicamente franzinos, dançarinos sobre as ósseas veredas do padecimento,
excepto o imprevisto que fomos nós, gerados e forjados contra a supremacia estrangeira no âmago dos tempos todos nossos e dos outros, dos tempos alheios impostos por eles, agentes e representantes do poder estranho e forasteiro, e reinventados por nós, filhos das ilhas, criados e sobrevivos dos tempos da secreção do medo e da sagração do pavor para a segregação e a maturação de nós mesmos, do nosso instigado espírito de aventura enquanto ilhéus cercados pelo mar e cerceados pela natureza avara, do nosso singular destino de povo insular vocacionado para a democracia racial, social, económica e cultural, do nosso irrenunciável impulso à liberdade colectiva enquanto nação crioula destinada à independência política, do nosso inoculado instinto de rebeldia enquanto povo afro-atlântico prenunciado para a plena soberania interna e internacional,
sendo tudo isso, que sem nós é muitíssimo pouco, todavia suficiente para servir como irrefutável testemunho da duradoura desventura passada do povo das ilhas,
sendo tudo isso, que sem nós, e mesmo connosco, é muitíssimo pouco, todavia suficiente para servir como prova indesmentível do nosso patente abandono colonial,
sendo tudo isso, que sem nós, e mesmo connosco, é muitíssimo irrisório, todavia motivo suficiente de desenfastiado riso, e, depois, de desenfreada chacota, e, muito depois, de hilariante auto-ironia, e, depois disso tudo, de introspectiva auto-flagelação, e, depois do mais que se tivera de saber e arrostar, de irreprimível estupefacção e, finalmente, de colossal mágoa e incontida revolta,
em face desse nosso caso deveras especialíssimo
de ausência de colonialismo na colónia diligentemente abandonada à incúria
das autoridades e ao negligente estrangulamento dos seus moradores,
em face desse nosso caso deveras inaudito
de ausência de colonialismo na província do além-mar africano
resignada com a morte lenta dos castiçais e dos sisais em flor esquelética,
em face desse nosso caso deveras excepcional
de ausência de colonialismo no território ultramarino conformado
com o indigente estertor dos habitantes das ilhas achadas desertas pelos navegadores e descobridores quatrocentistas ao serviço d’ El Rey de Portugal, Dom Afonso V, cognominado O Africano pelo muito mal infligido aos negros e mouros das terras a sul da Ibéria, e povoadas com escravos negros resgatados da Costa de África vizinha e com senhores brancos e outros homens livres europeus recrutados em várias partes do Reino de Portugal e dos Algarves e das Terras da Cristandade, e outros degredados brancos condenados por crimes hediondos e beneficiados com regalias, isenções e privilégios vários,
para a consecução dos reais desígnios do rapto e da violação, da escravização e da subjugação, do tráfico e do mercadejamento dos corpos robustos e produtivos dos seus semelhantes negros, retirados à força das suas lavras e do seu seio familiar, resgatados por via da coação e da violência das sombras das suas árvores, da frescura dos seus rios, do aconchego das suas crenças,
para a prossecução dos piedosos fins da captura e do amolecimento das suas almas ditas pagãs e infiéis, todavia sempre fiéis a Deuses outros, vitais, ancestrais, todavia bastas vezes tementes ao Deus único e invisível anunciado pelo belicoso Profeta dos desertos arábicos, por isso, até então consideradas como totalmente ignaras porque efectivamente ignorantes da proclamada misericórdia do único e omnisciente Deus verdadeiro dos cristãos ocidentais, por isso mesmo, até então arredias e adversas à palavra da bênção da salvação divina intermediada pelos missionários e outorgada pelo Deus dos invasores, conquistadores, salteadores, e outros negreiros, e outros escravocratas, e assinalada pela vez primeira e bendita das crónicas coloniais nestas plagas meso-atlânticas com a genuflexão do navegador do Infante Dom Henrique e capitão da nau almirante da esquadra d’ El Rei de Portugal na praia deserta da primeira ilha descoberta, Sant’ Iago chamada,
deste modo ficando também assinalada a inteira e impoluta santidade dos primórdios do meio-milénio seguinte de inqualificáveis infortúnio e desventura,
dessas cinquenta e tal décadas passadas em lenta mas irrevogável trituração dos corpos e das almas cativas do amor e da misericórdia do Deus cristão, desse ancião loiro, euro-ocidental e de longas e sapientes barbas brancas,
deste modo ficando também assinalada a gradual deterioração dos padrões dos descobrimentos e o resignado entranhamento nas ocres cores das courelas de sequeiro e das vastas terras de pastorícia, bem assim nas verdejantes emanações das plantações das feições mulatas, negras e brancas do Povo das Ilhas de há muito conquistadas pelo sofrido rosto ensanguentado do Filho de Deus feito Homem e invicto companheiro de martírio dos escravos negros e pardos,
de há muito conquistados para as delícias futuras do paraíso situado nenhures dos lugares da terra islenha inundada de suor, sangue, lástimas, lágrimas e gritos devidamente enquadrados pelo tronco, pelo alvo sibilar do chicote e pelos altos ecos audíveis do berro dos feitores e da voz senhorial trovejante, pelas cadeias do cativeiro e pelos rostos convincentes do pelourinho e dos padres confessores dos pecados e guias avisados dos tortuosos caminhos dos infernos,
de há muito convencidos da real existência das delícias do paraíso prometido pelos inflexíveis pregadores da palavra dita do Cristo crucificado e diariamente fornecido pelos cativos,
desse paraíso situado algures entre o reino celestial de Deus e as mansões dos bispos e dos senhores armadores, mercadores, latifundiários e demais negreiros, e demais transeuntes compulsivos das coxas indefesas das raparigas negras e mulatas, e dos demais nostálgicos das pacientes ancas das mulheres brancas, imaginadas legítimas e piedosas, quedadas na longínqua amenidade europeia dos climas temperados do Reino de Portugal e dos Algarves e das suas ilhas adjacentes,
sendo, por isso, antiquíssimos os dissabores advindos das cruzadas negreiras de resgate dos corpos consagrados pecaminosos e de salvação das almas desqualificadas como transviadas dos antepassados dos escuros habitantes das nossas ilhas,
remontando, por isso, à hora inaugural da saga marítima europeia iniciada pelos navegadores portugueses os infinitos desassossegos da alma aprisionada, mantida em permanente estado de sítio na declinação da dor, do tétrico espanto e de outros mencionados dissabores conexos com o sequestro dos antepassados dos escuros habitantes das ilhas,
e da sua condenação à radicação forçada em terra estranha, cercada de medo e de mar por todos os lados,
e da sua condenação à definitiva estadia na terra estrangeira aos seus olhos inundados do sagrado rumor das folhagens do baobab e do verde fulgor das grandes árvores da beira dos imensos rios e da lonjura de planuras infindas,
e da sua coerciva habituação à terra insular castanha, bastas vezes semi-árida, amiudadas vezes desértica, múltiplas vezes salpicada de verde, maioritariamente escarpada, todavia sempre grávida dos passos, dos prantos, dos jogos, das brincadeiras, dos risos sedentários dos seus descendentes,
também eles condenados à expectativa do paraíso futuro prometido pelos chamados representantes na terra desgraçada do Deus encarnado e mortificado, também ele pregado na cruz do martírio e do indizível sofrimento, também ele sujeito às muitas provas da agonia e da morte impostas pelo desconfiado Deus dos nossos céus e dos céus dele, do Filho do Homem, também ele sujeito à cruz e à espada de outros estrangeiros ao reino dele, terreno, subjugado ao outro reino dele, celeste, adiado, à terra sonhada e prometida fraterna e repleta de pão, de vinho e de outras iguarias, e de outros manjares dos deuses e senhores, também eles estrangeiros às ilhas achadas desertas, também eles estranhos à terra dos vindouros senhores brancos europeus, dos recalcitrantes escravos negro-africanos e dos seus futuros descendentes crioulos, sendo certo que os mesmos senhores brancos europeus arribaram com as galantes roupagens e o privilegiado estatuto de donatários das ilhas, e o indeclinável estatuto de moradores e possidentes dos assentos da governança, da câmara e do senado da primeira e mais antiga cidade das ilhas, e o temível estatuto de donos e senhores das terras islenhas todas e dos seus futuros habitantes, incluindo daqueles que viessem a nascer dos ventres fecundos das suas escravas negras e mulatas,
sendo, por isso, antiquíssima a estupefacção
e singelos o estarrecimento e a revolta
em face desse nosso caso deveras inédito
de colonialismo sem colonialistas,
e, já agora,
sem capital de império,
sem cartas de privilégios e outras cartas régias autenticadas por sua majestade sereníssima o Rei de Portugal e dos Algarves, dos senhorios do Brasil e da Índia, das conquistas da Guiné, da Etiópia e das Arábias, etc.,
sem ministros do reino, antigos donatários, capitães-gerais, capitães-mores, corregedores, ouvidores, bispos, cónegos, cabidos, padres, frades, missionários, governadores-gerais e prefeitos das ilhas e do seu distrito continental-africano, governadores-gerais do arquipélago e governadores dos seus dois distritos insulares,
sem armadores, mercadores, latifundiários, feitores e administradores das companhias majestáticas,
sem portarias, sem decretos, sem decretos-leis e outros diplomas legais, e outros actos normativos vindos da capital da República Portuguesa,
sem despachos de nomeação, de promoção e de transferência carimbados com o selo branco do Terreiro do Paço,
sem ofícios confidenciais, pareceres devidamente homologados e outros actos oficiais expedidos do Ministério da Marinha e do Ministério do Ultramar,
sem directrizes, orientações superiores e ordens de serviço emanadas das autoridades centrais de Lisboa,
sem planos de fomento, pautas aduaneiras, impostos de selo, décimas e outras taxas e imposições fiscais estipuladas nos gabinetes dos Ministérios das Finanças e do Ultramar, longe de nós, da nossa terra exausta,
sem processos disciplinares concebidos e executados à revelia de nós, dos nossos temores, dos nossos tremores, das nossas sempre goradas expectativas, das nossas sempre frustradas esperanças,
sem a farsa das eleições para a indigitação de deputados das duas regiões naturais do arquipélago para o Congresso de Deputados, para a Câmara Corporativa e para a Assembleia Nacional portuguesa,
depois de devidamente demonstrada a força dissuasora da censura, da chantagem política e do espectro ameaçador do enforcamento, da decapitação, do arcabuzamento, do fuzilamento ou de uma outra forma horrorosa de execução sumária, do desterro em longínquas terras ultramarinas, e, mais tarde, do encarceramento por tempo indeterminado na colónia penal do Chão Bom de Santiago, também famigerada como campo da morte lenta do Tarrafal,
depois de irreversivelmente mortas no ovo as sublevações anti-escravocratas do Quilombo dos Valentes de Julangue e do sítio do Monte-Agarro, as revoltas camponesas dos Engenhos, da Achada Falcão e da Ribeirão Manuel e a revolta contra a fome de 1934 na ilha de S. Vicente,
depois de definitivamente amainadas as pretensões (con)federais brasílicas e as vertigens autonomistas dos próceres ilhéus do liberalismo monárquico e da primeira república portuguesa e dos seus concorridos sufrágios censitários, e dos seus competitivos sufrágios capacitários, e dos seus musculados e miraculados sufrágios fundados na fraude generalizada, na força persuasiva do metal sonante e na exclusão legal de mulheres, de analfabetos e de outros pés descalços,
depois de definitivamente dissuadidos e resfriados os intentos soberanistas das primícias políticas dos nativistas das ilhas, depois de desvanecidos e extintos os clamores independentistas da viragem do século da sublevação anti-escravocrata e independentista do Haiti, das independências americanas, da guerra dos boers, do atraiçoado irredentismo emancipalista do filipino Aguinaldo, do esplendor liberal emergente da indicial desagregação dos impérios centro-europeus,
sendo por isso antiquíssima a interpelação dos alicerces e das portadas do império colonial
em face desse nosso caso deveras excepcional
de omnipotente e duradoura tutela estrangeira destas nossas ilhas minúsculas marcadas pela debilidade, pela fragilidade e pela vulnerabilidade,
destas nossas ilhas consideradas como exemplo acabado de res nulius político e, por isso, adoptadas como modelar ilustração de uma estranhíssima forma de povoamento humano e de reivindicação coloniais sem colonialismo,
destas nossas ilhas acarinhadas e mostradas ao mundo como uma esquisitíssima forma de colonialismo sem colonialistas,
para mais,
sem governadores e outros altos representantes da soberania portuguesa,
sem intendentes, sem secretários-gerais do governo, sem os ilustríssimos membros dos conselhos legislativos da colónia/da província ultramarina indigitados pelo governador colonial,
sem juízes de comarca, delegados do ministério público, directores e outros chefes das repartições provinciais, sem inspectores, sem comissários, sem delegados escolares, sem os demais altos funcionários do Estado e do Banco Nacional Ultramarino,
sem administradores engalanados, funcionários públicos enfatuados e outros empedernidos filhos da folha recém-chegados da metrópole europeia à parca mesa do orçamento provincial,
sem oficiais subalternos, sem sargentos, sem outros alvos agentes da polícia de segurança pública,
sem oficiais superiores e comandantes dos regimentos militares e de outros corpos expedicionários,
sem as esposas metropolitanas dos comandantes militares e dos chefes da polícia de segurança pública e da polícia política em tempos recentes colocadas nos dois liceus, nos três externatos, no único ciclo preparatório, nas escolas primárias das nossas vilas e cidades,
sem os manuais escolares e os seus incontáveis apeadeiros e estações de caminhos de ferro da metrópole e das províncias ultramarinas,
sem a fauna, a flora e os muitos rios e riachos irrompendo pelas serras, pelos maciços montanhosos, pelas planícies, pelas lezírias do rectângulo pátrio peninsular,
sem a estonteante orografia, a selvagem arca de Noé e as sete e mais maravilhas de Portugal de aquém e além-mar,
sem os heróis de Mucaba e outros intrépidos heróis da guerra ultramarina alegadamente contra o terrorismo e a selvajaria de fanáticos comunistas e de outros agentes internos dos muitos e poderosos inimigos externos da pátria multirracial e pluricontinental,
sem as ameixas, as peras, as maçãs reinetas e outros frutos temperados nos suculentos paraísos dos livros escolares ilustrados, distantes das nossas bocas manhosas, habituadas ao reles sabor tropical de mangas, bananas, pitangas, jambres, mamões e papaias,
sem as férias graciosas na metrópole concedidas aos funcionários públicos e a outras criaturas ultramarinas do império colonial, muito efectivas na expressão do seu indefectível afecto pela mãe-pátria monumental, muito eloquentes na sua pública ostentação do seu entranhado orgulho da lusitanidade, muito convincentes na ruidosa deflagração do seu acrisolado amor da portugalidade,
sem a coerção da tabuada e de outros cálculos decorados em frases inteiras monocórdicas, estrangeiras às nossas (con)turbadas cabeças infantis viciadas na fala, na pronúncia e na prosódia do crioulo,
sem as revisões da matéria dada marcadas pelos irrefutáveis apelos das varas de marmeleiro e da palavra rude dos mestres-escolas e das monitoras,
sem a obrigatoriedade das sabatinas aliciadas pelos vigilantes olhos das palmatórias para a insana memorização dos nomes, dos cognomes, das muito ilustres hagiografias dos infantes, das infantas, das rainhas e dos reis todos das multisseculares dinastias portuguesas,
sem as asseverações moralistas convocadas para a penitência de pecados próprios e alheios e para a disciplinada aprendizagem das biografias, das lições de vida, dos honrosos actos dos seus aios, mestres e preceptores bem assim das suas concubinas e damas de companhia, para a altiva dissertação sobre outros feitos gloriosos da história pátria dos nossos egrégios avôs da nação valente e imortal,
sem os brados de vitória contra os castelhanos - os seus maus ventos, os seus piores casamentos, os seus lacaios e sequazes internos, as suas coroas usurpadas aos desejados monarcas lusos, aos nebulosos soberanos dos antigos portugueses - e contra outros inimigos da honra e da glória dos príncipes e de outros senhorios indígenas das terras lusitanas,
sem os chamamentos guerreiros contra mouros, cripto-judeus disfarçados de cristãos-novos, protestantes, negros e índios pagãos, e outros hereges, e outros inimigos da religião do reino, da independência política da pátria portuguesa e da integridade territorial do seu vasto e multissecular império colonial, das suas quinas e das suas chagas de Cristo, da sua fé em Deus, n’os lusíadas e no quinto império,
sem o sistemático denegrimento e sem a periódica excomunhão das suas manifestações culturais insulares marcadas pelo festivo desvelo da alma e pelo rítmico fervor dos corpos,
sem as proibições administrativas das serenatas ao luar, das tocatinas ao ar livre festivo ou silencioso das noites aprazíveis, dos desfiles da tabanca e do colá sanjon nas festas da santa cruz, nas festas juninas, nas festas de romaria pelos santos padroeiros das freguesias,
sem as ameaças de recusa do baptismo dos filhos pequenos em risco de perda da sua aura de anjos putativos, em risco de condenação ao perpétuo e infamante estatuto de mouros pela circunstância de terem sido gerados por ventres solteiros de mães alegadamente amantes da luxúria, por terem sido concebidos por pais amancebados na paixão e no pecado da fornicação,
sem as ameaças de denegação da hóstia sagrada e dos sagrados sacramentos da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana a alguns filhos das ilhas por mor da sua participação aberta ou furtiva em sessões da tchabeta, da sambuna e da finason e nas festas populares e comunitárias de celebração dos actos litúrgicos de consagração dos periclitantes ciclos da vida e da morte dos habitantes das ilhas,
sem a denúncia e a exemplar punição daqueles que ousavam trazer a língua da terra aos microfones da rádio, às crónicas dos jornais, às sátiras da vida oficiosa dos mandarins do governo da província/colónia e dos seus acólitos e representantes oficiais nas administrações concelhias e nas câmaras municipais da terra,
sem a transferência para longínquos destinos ultramarinos daqueles que se atreviam a falar sobre o crioulo, e os seus maiores trovadores, e os seus maiores cultores islenhos, nas conferências solenes comemorativas do quinto centenário do achamento das ilhas de Cabo Verde e de outras datas solenes evocativas e celebrativas da pátria verde-rubra longínqua,
sem os severos castigos aplicados aos alunos liceais que nos recreios e nos intervalos das prelecções dos docentes metropolitanos e dos professores e mestres-escola nativos se atrevessem a discutir em crioulo as matérias das aulas de matemática, filosofia, físico-química, português, francês, inglês, latim, alemão, geometria e ciências naturais,
sem o escolar constrangimento da aprendizagem obrigatória do vira, do fandango e do malhão-malhão, ademais trajados com as vestes folclóricas tresandando a Beiras, Minhos, Madeiras, Açores e Ribatejos,
sem a ininterrupta autoprojecção dos filhos da terra no retrato do colonizador estampado na fina e pálida fisionomia dos filhos dos comerciantes, dos oficiais do exército e da polícia, dos latifundiários e dos funcionários públicos metropolitanos,
sem a decidida retracção dos filhos das ilhas em face do retrato do colonizado emoldurado nos rostos rudes das muitas gentes rústicas das missas dominicais e dos mercados e feiras semanais,
sem a diária inoculação dos muitos complexos de inferioridade devidos à epiderme demasiado escura, devidos aos lábios demasiado grossos, devido aos beiços sensíveis, grosseiramente sensuais, devidos aos cabelos demasiado frisados, demasiado crespos, demasiado encaracolados, demasiado encarapinhados, devidos aos narizes demasiado achatados,
sem a diária injecção da vergonha devida à óbvia genealogia dos nomes bíblicos e dos apelidos latinos recobrindo os estigmas herdados dos antepassados africanos sempre ocultados por demasiado pretos, sempre esquecidos por excessivamente cafres, sempre desprezados por demasiado indolentes, sempre temidos nos mais tenebrosos dos pesadelos das crianças das ilhas por demasiado antropofágicos e parecidos com os demónios dos infernos descritos com pormenorizado horror, inscritos com detalhado desvelo nas missas e nas catequeses,
sem a diária interiorização do mal-estar devido à localização geográfica da ilha onde se nasceu, se cresceu e se almeja permaneça para sempre envolta exclusivamente em salitre e espuma marítima dos mares incógnitos ondulando navegados pelas naus portuguesas das descobertas, assaz distante da Europa, por demais próxima das terras dos pretos da Guiné e dos demais gentios da restante Costa de África,
sem as crenças, a farda, o bivaque, o s de Salazar incrustado aos cinturões dos exercícios para-militares da Mocidade Portuguesa,
sem os inspectores, os agentes e os torcionários da PIDE-DGS discretamente desembarcados para debelar os previamente identificados e outros eventuais focos de subversão independentista no mais perfeito e harmonioso resultado antropológico da expansão lusíada em quatro continentes, três oceanos e um ainda maior número de mares,
do seu subjacente espírito de aventura, da sua aventureira proficiência na arrecadação do ouro, da prata e do marfim alheios, da sua digníssima e precavidíssima capacidade na multiplicação de filhos mulatos, cabritos, caboclos, monhês e de outros descendentes mestiços, e de outras humaníssimas e coradas proles ultramarinas da sua humilíssima predisposição para a mistura e a miscigenação com povos e raças inferiores carecidos da orientação missionária da civilização cristã ocidental, da sua lendária capacidade de adaptação aos trópicos, e a outros lugares inóspitos, e a outras ambiências hostis, mesmo se com a maior miséria de meios materiais e muito parcos recursos em legítimas mulheres brancas, e em prostitutas de igual teor fisionómico e de idêntica tez alva importadas do reino, da sua lendária capacidade de invenção de eficazes antídotos contra a apagada e vil tristeza irradiando congénita das vozes, dos sons e dos suspiros do fado, da saudade e das dolentes cordas da guitarra portuguesa em tempo utilíssimo retomadas nos chorosos cânticos, nos langorosos acordes, nas miméticas resssonâncias, nas mumificadas lágrimas das gentes das ilhas.
Ah! Estes tempos novos de exaustiva rememoração dos transactos tempos coloniais de outrora, estes tempos nossos de permanente esconjuração desses tempos passados da incomensurável frustração devida ao costumeiro protelamento das indispensáveis medidas para a definitiva debelação das crises das fomes, para a efectiva minoração de outros nefastos efeitos das estiagens cíclicas, para o definitivo enterro do torpe e famigerado rótulo de arquipélago da fome.
Ah! Estes tempos novos de exaurida rememoração dos desfalecidos tempos coloniais de antanho, estes tempos nossos de evidente esconjuração desses tempos mortos do sempre tardio apetrechamento dos pequenos portos de cabotagem das ilhas, desses tempos defuntos da sempre adiada modernização do porto da Praia e do porto grande do Mindelo para a tempestiva e eficiente competição com os portos de Dacar e de Las Palmas, para a autónoma angariação de recursos financeiros, para a livre arrecadação de receitas próprias, para a mobilização de meios suficientes para o desenvolvimento económico sustentado das ilhas.
Ah! Estes tempos novos de repetitiva rememoração dos tempos coloniais derrotados, estes tempos nossos de frequente esconjuração desses execrados tempos da inépcia e da incúria, desses tempos passados da transida latência da raiva e da rebeldia devida ao desaproveitamento dos nossos escassos recursos minerais, desses pretéritos tempos da explosiva insatisfação geral devida ao desperdício das nossas potencialidades nos sectores do turismo, das pescas, das energias renováveis, das águas subterrâneas, desses sofridos tempos da desapiedada exploração da intermitência da esperança e da escassez da fé definhando-se com as almas raquíticas, com a cruz e o credo em Deus apodrecendo com os corpos famélicos nos anos das as-secas, desses intermináveis tempos da negligenciação da abundância da esperança e das águas diluvianas dos tempos setembrinos, da bonança da humidade, do pasto, dos frutos e da festa nos anos de boas as-águas…
Ah! Estes tempos novos de aflitiva rememoração dos tempos coloniais perdidos, estes tempos nossos de fremente vituperação e de duradoura esconjuração dos tempos coloniais da inércia e da letargia, do descuramento da inteligência dos filhos da nossa terra, da asfixia das suas reconhecidas capacidades de sobrevivência na luta contra a adversidade, de desencorajamento das suas conhecidas habilidades na adaptação às agruras da natureza, de definhamento das suas muitas veleidades e predisposições de abertura às novidades e às oportunidades dos tempos contemporâneos, de enfraquecimento das suas eficientes habilitações no acolhimento das vicissitudes da modernidade, dos seus contraditórios sinais colhidos da ignota fortuna do mundo longínquo e desconhecido.
Ah! Estes tempos novos de exasperada rememoração dos tempos coloniais vencidos, estes tempos nossos de firme esconjuração das suas classes
mercantis abalizadas na predação dos desvalidos e necessitados nas épocas das periódicas fomes, das suas gananciosas classes altas peritas na parasitação da miséria dos filhos das ilhas compulsivamente contratados como mão-de-obra serviçal das plantações coloniais, coagidos ao embarque para o sul-abaixo, obrigados à prestação de trabalho semi-escravo nas roças de Angola, de Cabinda, de Moçambique, de São Tomé e Príncipe.
Ah! Estes tempos novos de sabida rememoração dos antigos tempos coloniais, estes tempos nossos de vingativa esconjuração das suas matreiras classes possidentes, vorazes na exploração da mão-de-obra nossa livremente emigrada para os estaleiros navais, para as minas, para os andaimes, para as obras, para as camaratas, para as experienciações da indiferença e da discriminação, para as jornadas do frio e da solidão da CUF, da LISNAVE, da J. Pimenta, das minas da Panasqueira e de outras grandes empresas sediadas na antiga metrópole colonial.
Ah! Estes tempos novos de (res)sentida rememoração dos tempos coloniais revolutos, estes tempos nossos de dorida esconjuração das suas classes empreendedoras impiedosas na sobretaxação das remessas dos emigrados das ilhas em vários países do mundo dito civilizado depositadas no banco único da província/colónia, desse temido Banco Nacional Ultramarino, desse BNU tantas vezes amaldiçoado como abutre omnipresente e omnívoro, de olhar cuidadosamente especado no monopólio da emissão da escassa moeda do arquipélago das secas e da penúria, de garras e tenazes entranhadas nas terras produtivas dos latifundiários das ilhas, dessas terras apropriadas pelo astucioso uso da usura, dessas terras expropriadas pelo sigiloso aproveitamento dos vícios delapidatórios dos magnatas de outrora, dessas terras leiloadas pela traiçoeira estimulação das tendências ostentatórias dos terratenentes de há muito nativos da autóctone pobreza das ilhas, desses senhores morgados do outrora salpicado das calcinadas cores dos cutelos, invariavelmente abúlicos ante os constrangimentos da desolação social, invariavelmente atónitos ante as predicações da miséria iminente, irremediavelmente desarmados ante o preditível desconcerto da meteorologia, detestavelmente lamurientos ante a previsível assolação das crises da estiagem.
Ah! Estes tempos novos de truculenta rememoração dos tempos coloniais insalubres, estes tempos nossos de impiedosa vergastação dos seus privilegiados intermediários nativos, dessa pequena burguesia educada com os remédios inoculados dos quadros mentais da mistificação e de outros produtos simbólicos embrulhados no perfumado odor verde-rubro da pátria longínqua de antanho, dessa pequena burguesia cultivada na tradicional dependência das importações provenientes quase exclusivamente da antiga metrópole colonial, dessa pequena burguesia fundiária, mercantil e intelectual ainda umbilicalmente subordinada aos interesses económicos e culturais da ex-potência colonial, das suas grandes casas comerciais sediadas em Lisboa, no Porto e em Coimbra, dos seus estádios de futebol, das suas casas de fados, dos seus teatros nacionais, dos seus coliseus e espetáculos de variedades, das suas azinhagas milagreiras, das suas igrejas, basílicas e catedrais, dos seus institutos técnicos e das suas faculdades, das suas outras prestigiadas instituições intermediadas pelos seus caixeiros viajantes, mestres de oficina, professores catedráticos e por outros respeitáveis angariadores de clientes, e por outros veneráveis fazedores de discípulos, e por outros exemplares forjadores de émulos da obediência das cabeças vacilantes e dos pés rastejantes, e por outros singelos arquitectos da vassalagem das mãos devotas (diga-se, entre parêntesis curvos, também muito assíduos na rapinagem das coxas e nos lautos repastos dos pratos da terra, na suculenta gastronomia dos espíritos esbeltos, dos corpos secos, dos frutos tropicais, dos seus rubores e sabores feminis).
Ah! Estes tempos novos de rancorosa rememoração dos tempos coloniais liquidados, estes tempos nossos de infalível nomeação do inominável descalabro herdado dos fenecidos tempos coloniais do antigamente, estes tempos nossos de reconfiguração do pasmo das paisagens, estes tempos nossos de reformulação da sobriedade das criaturas humanas convergindo para os tempos temperados delas, para esses tempos tropicais aclamando-se resultados tangíveis, para esses tempos tropicais declamando-se flores soberanas, para esses tempos tropicais proclamando-se frutos saborosos da nossa independência política, para esses tempos tropicais também propícios à saciedade das estancadas correntezas dos tempos do temor, dos cálculos defraudados e das muitas incertezas da nossa pequena burguesia comercial, burocrática, agrícola e industrial, dessa pequena burguesia da posse remediada e da abastança da sede de saber, dessa pequena burguesia nascida da ascensão social, económica e cultural do negro e do mulato naturais das ilhas, dessa pequena burguesia germinada entre as ruínas do feudo e do latifúndio, dessa pequena burguesia esculpida pelos estilhaços do estio e da carestia, dessa pequena burguesia fecundada pelos desvarios da estiagem, dessa pequena burguesia forjada pelas muitas agruras e carências, pelos indescritíveis vitupérios da escravocracia, dessa pequena burguesia consolidada no orgulho da ilustração escolar, dessa pequena burguesia aristocratizada na lavra da bastardia e do verde esmaecido das paisagens inóspitas do pedregoso aquém-mar das nossas ilhas.
* Nota do Autor: constitui o presente prosopoema a parte 6 do longo prosopoema em formato de livro sobre o Cabo Verde pós-colonial, ainda parcialmente inédito e intitulado Puricidades, Pluricidades, Divercidades - Crónicas dos Tempos de Outrora e de Agora, do Ressentimento, do Júbilo e da Ressaca
Comentários