SÉTIMAS E PRÉ-DERRADEIRAS ANOTAÇÕES SOBRE A DIFERENCIADA POSTURA LINGUÍSTICA E IDIOMÁTICA DE UM CERTO, DETERMINADO E POTENTE TRIUNVIRATO POLÍTICO PÓS-COLONIAL E DA COGITADA HIPÓTESE DE O PRÉMIO CAMÕES 2018, O CABOVERDIANO GERMANO ALMEIDA, SE TORNAR FINALMENTE UM ESCRITOR BILINGUE, EM LÍNGUA PORTUGUESA E EM IDIOMA CABOVERDIANO, ENTREMEADAS DE ALGUNS DECISIVOS MONÓLOGOS INTERIORES E DE ESPORÁDICOS E TALVEZ (IN)CONVENIENTES, MAS MUITO CONVINCENTES EXCURSOS À ESQUECIDA, IGNORADA E MUITO MAL-CONTADA HISTÓRIA DAS NOSSAS ILHAS SAHELIANAS OUTRORA ISOLADAS, ESQUECIDAS E ABANDONADAS NO ATLÂNTICO MÉDIO E ACOMPANHADAS DE ALGUNS EXCURSOS EVOCATIVOS E MEMORIALÍSTICOS ÀS VIDAS QUASE DESVENDADAS DE ARISTIDES MARIA PEREIRA, PORFÍRIO TAVARES PEREIRA, ABÍLIO MONTEIRO DUARTE, DULCE ALMADA DUARTE, MANUEL MONTEIRO DA VEIGA, PEDRO VERONA RODRIGUES PIRES, ARNALDO CARLOS DE VASCONCELLOS FRANÇA, HENRIQUE TEIXEIRA DE SOUSA, ALGUM JOSÉ ANDRÉ LEITÃO DA GRAÇA E DO PRÓPRIO PRÉMIO CAMÕES 2018, GERMANO ALMEIDA
SECÇÃO PRIMEIRA
UMA MEMORÁVEL VISITA DE ESTADO QUE PRODUZIU UMA FRASE INUSITADA E DE CONSEQUÊNCIAS ATÉ AGORA IMPREVISÍVEIS, COM BREVE COMENTÁRIO SOBRE O ANTIGO REGIME DE PARTIDO ÚNICO, MAJESTOSA E POMPOSAMENTE DENOMINADO DE NOSSO REGIME DE DEMOCRACIA NACIONAL REVOLUCIONÁRIA
1. ESPECULAÇÕES, TALVEZ INUSITADAS, EM TORNO DE UMA SURPREENDENTE FRASE DO ESCRITOR BRASILEIRO JORGE AMADO, EM VISITA A CABO VERDE E DE COMO ESSA ASSAZ INESPERADA FRASE PODERIA TANTO FACILITAR COMO TAMBÉM COMPLICAR, E EM MUITO, O TRABALHO DO REALIZADOR PORTUGUÊS DE CINEMA E DILECTO AMIGO DA CELEBRADA MORABEZA CRIOULA, FRANCISCO MANSO
Apontou-se, nas sextas anotações das presentes perambulações reflexivas sobre a imortalidade em tempos de pandemia, o nome de Germano Almeida na listagem/elencagem de escritores caboverdianos monolingues literários em português.
Na verdade, não se está a imaginar Germano Almeida a tornar-se de repente um escritor bilingue caboverdiano, alternando a escrita literária entre o português e o crioulo. Um crioulo que, caso ocorresse esse milagre de Germano Almeida se transfigurar num escritor bilingue nas chamadas duas línguas de Cabo Verde, seria variado e diversificado consoante as origens sociais e regionais e as correspondentes falas das personagens, as ambiências insulares e diaspóricas nas quais se fossem desenvolvendo as intrigas, tão características na sua rica e inusitada diversidade na mais de dezena de romances de Germano Almeida, e não só (pense-se, por exemplo, em livros de não ficção da autoria do escritor boavistense, como, por exemplo, Viagem pela História das Ilhas ou O Dia das Calças Roladas, valendo a pena dizer que, se o primeiro é uma agradável incursão (com laivos romanceados e cronicados) à atribulada História do nosso arquipélago e das suas conexões com os mundos dos tempos de outrora, o último dos livros citados gira em torno das diferentes perspectivas dos protagonistas sobre a controversa questão da reforma agrária em Santo Antão e a repressão militaro-policial que se seguiu às insurreições de proprietários e camponeses, ocorridas a 31 de Agosto de 1981 e tendo como mote, oportuna ocasião e imperdível pretexto as discussões do projecto de lei a ela atinente, com prisões arbitrárias e sujeição das vítimas a torturas, maus-tratos e outros tratamentos desumanos, cruéis e degradantes (expressamente proibidos no Programa Maior do PAIGC e da Constituição então vigente e inspirada no mesmo Programa Maior), aliás, devida e tempestivamente denunciados junto de instâncias e organizações nacionais e internacionais ligadas à defesa dos direitos humanos (por exemplo, em Cabo Verde, o então celebrizado Instituto para o Patrocínio e a Assistência Judiciários (IPAJ) e, a nível externo, a Cruz Vermelha e a Amnistia Internacional).
Fosse assim, teria o realizador de cinema português Francisco Manso finalmente resolvido o problema dos diálogos, até agora sempre falados em português, dos seus filmes de ficção, alguns dos quais inspirados em romances de Germano Almeida, e com os papéis mais relevantes a serem desempenhados quase sempre, alegadamente por imposição dos produtores luso-brasileiros, por actores brasileiros e portugueses, diga-se que de grande qualidade e, sendo actrizes, ademais mulatas, bastas vezes de uma beleza estonteante. Sendo o crioulo a língua em que decorre a vida em Cabo Verde, como disse o icónico escritor Jorge Amado de forma confirmativa e plenamente concordante com os seus três jovens entrevistadores do então emergente Movimento Pró-Cultura (José Luís Hopffer Almada, Danny Spínola e Mito Elias), poucos caboverdianos se reveriam no cinema que se ia tentando fazer em Cabo Verde, inspirado em romances lusógrafos de autores caboverdianos de grande envergadura e indesmentível impacto público, designadamente Os Flagelados do Vento Leste, de Manuel Lopes, e realizado por António Faria, Ilhéu de Contenda, de Henrique Teixeira de Sousa, e realizado por Leão Lopes, e, mais recentemente, O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo e Os Dois Irmãos, de Germano Almeida, e realizados por Francisco Manso, para além de A Ilha dos Escravos, baseado no romance O Escravo, de José Evaristo de Almeida, e também realizado por Francisco Manso, que igualmente realizou uma série documental sobre a música tradicional caboverdiana, abrangendo todos os seus géneros e os seus mais importantes protagonistas. Novo no filme Os Dois Irmãos é a ausência, pela primeira vez em filmes de ficção “caboverdianos” de Francisco Manso, de actores brasileiros e portugueses, com a correlativa exclusiva participação de actores caboverdianos. Todavia permanece nesse filme o problema da intrínseca estranheza e da não identificação experimentada por espectadores caboverdianos, em especial os radicados nas ilhas, ao se defrontar com diálogos exclusivamente falados em português, por vezes num formato assaz artificioso, muito colado ao texto literário do romance, no qual se baseia (por vezes, quase homónimo, como, por exemplo, ocorreu com o filme O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva).
E é muito simples a razão dessa sensação de estranheza e de não identificação dos espectadores caboverdianos, em regra falantes nativos de uma das variantes do crioulo, a sua língua caboverdiana materna, com as personagens protagonistas dos filmes acima referenciados. Na sua vida real de todos os dias de criaturas humanas das ilhas, os caboverdianos desenvencilham-se nos seus atribulados e imprescritíveis afazeres, conversas, confidências e pensamentos, fazendo uso quotidiano quase que exclusivamente do crioulo, salvo a hilariante excepção de algum avatar santantonense mais afoito do célebre Mestre Tamoda, personagem do romance (quase)homónimo do escritor angolano Uanhenga Xitu (pseudónimo de Agostinho André Mendes de Carvalho), que, munido do indispensável papel selado, mostra-se mais propenso a falar em português nas circunstâncias as mais inesperadas e improváveis para pretensamente demonstrar e exibir alguma erudição livresca captada nas aulas do antigo segundo grau da instrução primária dos nossos mais antigos ou numas poucas aulas de Direito de um iniciado mas nunca concluído curso de solicitadores judiciais quando, já depois da conquista da independência de Cabo Verde, o Ministério da Justiça instituiu esse tipo de cursos médios, a ver se colmatava a premente falta de quadros que se fazia sentir em todas as áreas de actividade, tendo-se, por exemplo, destacado na área da administração pública o famoso curso do CENFA (Centro de Formação Administrativa), no qual antigos e respeitados funcionários da administração colonial, alguns regressados do antigo império colonial português, também se mostraram de imprescindível importância, ao iniciarem os futuros técnicos médios nos meandros do Estatuto do Funcionalismo Ultramarino, mais conhecido pelas célebres siglas EFU, doutamente desvendados nos dois volumes do Manual de Direito Administrativo, de Marcelo Caetano, Professor Catedrático de Direito Administrativo. Relembre-se que, apesar de, no 25 de Abril de 1974, ter sido apeado do poder colonial-fascista (não obstante tudo se ter passado de forma pacífica e sem efusão de sangue, salvo o lamentável e mortífero incidente ocorrido no próprio dia 25 de Abril de 1974 em frente da sede da PIDE/DGS, em Lisboa, na Rua António Maria Cardoso) e exilado, conjuntamente com os demais altos dignitários do regime deposto, para o Brasil da Ditadura Militar, em Cabo Verde continuava esse brilhante académico a ser a maior referência desse ramo do Direito, que ajudou a moldar e que se demonstrou como fulcral para o estável e normal funcionamento da Administração Pública Caboverdiana Pós-Colonial em muito falado e discutido processo de reforma para a construção de uma Administração Pública virada para o Desenvolvimento do País. Como sói dizer-se: a Deus o que é de Deus, a César o que é de César!…
Quando proferiu a frase (em Cabo Verde a vida decorre em crioulo) que tanto alarido e comoção provocou nas nossas ilhas e nas suas redondezas lusitanas, lusófonas, lusógrafas e lusodescendentes (mais ou menos hifenizadas com afro ou luso conforme os casos), Jorge Amado acompanhava o Presidente do Brasil, o também escritor José Sarney, na sua visita de estado a Cabo Verde, a convite de Aristides Pereira, visita essa, tal como, tempos depois, a do Papa João Paulo II, marcada por alguns estranhos apagões da Electra, exactamente em momentos em que decorriam cerimónias oficiais, por vezes solenes (com José Sarney na Sala de Sessões da Assembleia Nacional Popular, na presença dos Deputados da Nação, com João Paulo Segundo num Encontro com Jovens Católicos, e não só, num Gimnodesportivo da Chã de Areia superlotado…). Indícios dos tempos, a que se aditaria o ainda, até aos dias de hoje, não desvendado assassinato de Renato Cardoso, Secretário de Estado da Administração Pública e Ex-Conselheiro do Primeiro-Ministro Pedro Pires, para além de músico e compositor conceituado, a sinalizar o fim ou, pelo menos, uma grave crise de autoridade do regime de partido único?
Haveríamos nós, jovens e entusiásticos postulantes a escritores e integrantes do recém-nascido Movimento Pró-Cultura, de nos reunirmos com Jorge Amado e com a sua esposa, a Dona Zélia Gattay, também escritora, num memorável pôr-do-sol no Hotel Praia-Mar, sito na zona da Prainha, em que, entre outras coisas, o Mito surpreenderia os ilustres convidados com a veemência da sua veia poético-ecológica alternativa. A grande surpresa para mim ficaria adiada para alguns dias depois. Como tantos outros jovens poetas presentes no pôr-do-sol com Jorge Amado, aproveitei a ocasião de ter perante mim um ilustre auditório, onde pontificavam um dos escritores da minha predilecção de sempre, exactamente Jorge Amado, o Ministro da Informação, da Cultura e dos Desportos, David Hopffer Almada, o Presidente do Instituto Cabo-Verdiano do Livro, Jorge Miranda Alfama (não esteve todavia presente o reclamado terceiro Jorge, o Querido), o Director-Geral da Cultura, Manuel Veiga, e outras altas entidades da cultura, para além de numerosos escritores, músicos, artistas plásticos e outros homens e mulheres de cultura consagrados, residentes na então culturalmente efervescente cidade da Praia, e recitei alguns poemas da minha recente e inesgotável lavra, entre os quais o poema “Cabo Verde ou o verde afã de uma palavra vã”. Não é que poucos dias depois vejo estampada no semanário O Jornal, de Portugal, uma crónica de Jorge Amado sobre a visita dele a Cabo Verde que, pelos vistos, muito o impressionara, tendo essas impressões sido sintetizadas na expressão verde afã de uma palavra vã! Podem crer, senti-me então imensamente honrado e infinitamente gratificado. Não me cabia de orgulhoso contentamento e vaidosa satisfação!
2. ARISTIDES PEREIRA, UM CABOVERDIANO VERDADEIRAMENTE LUSÓFONO, ISTO É, FALANTE E ESCREVENTE MONOLINGUE EM PORTUGUÊS?
Outro exemplo de eventual excepção à regra acima enunciada, e diariamente constatada, de generalizada utilização do crioulo no dia-a-dia pelos caboverdianos radicados nas ilhas, tem a ver precisamente com o caso do anfitrião de então do Presidente brasileiro e do seu famoso amigo e popular escritor, e, como já vimos, da sua fabulosa e milagrosa frase crioulófila, o respeitadíssimo e muito estimado Presidente da República e Chefe de Estado caboverdiano, o já falecido Aristides Pereira, de perfil reservado comme il faut enquanto segura reserva moral da Nação caboverdiana, como sempre foi considerado, e pouco dado a exuberantes expressões dos seus estados de alma, além de assaz renitente a ardentes exteriorizações do seu estado de espírito, sempre exalante de uma grande tranquilidade, e sempre avesso a falas inócuas, inúteis e desnecessárias, sobretudo no crioulo que nunca ninguém, a não ser talvez no seu círculo familiar mais próximo, o viu ou ouviu falar, sendo certo que os seus discursos, evidentemente sempre proferidos em português e, obviamente, sempre reduzidos a escrito, até para efeitos de posterior compilação nos livros da sua autoria oficial e assinado com o nome dele e do respectivo título relevante para a respectiva indicação das funções exercidas.
É assim que quando fossem atribuídas a Aristides Pereira, Presidente da República de Cabo Verde, as compilações em livro eram sugestiva e invariavelmente intitulados Discursos, sendo que os que ele proferia e fazia publicar, não como Presidente da República, mas enquanto Secretário-Geral, primeiramente do PAIGC, e, depois, do PAICV, eram também invariavelmente intitulados Relatórios (ao Conselho Superior da Luta, ao Comité Executivo da Luta, ao II Congresso (o primeiro na sua condição de sucessor do traiçoeira e barbaramente assassinado Amílcar Cabral) e à Comissão Permanente do Comité Executivo da Luta, ao Secretariado Executivo, ao Conselho Nacional de Cabo Verde, ao Conselho da Unidade (das Assembleias Nacionais Populares) da Guiné e de Cabo Verde, à Conferência Inter-Governamental da Guiné e de Cabo Verde, ao III Congresso do PAIGC (o último de Aristides Maria Pereira como Secretário-Geral do Movimento de Libertação (Bi) Nacional no Poder nas nossas Terras Africanas, Livres e Independentes da Guiné e de Cabo Verde), respectivamente do partido fundado em 1956 por Amílcar Cabral e por um restrito grupo de caboverdianos e de guineenses, o PAIGC, e, depois da ruptura do processo de unidade Guiné-Cabo Verde, ocorrida na sequência do golpe de Estado, de 14 de Novembro de 1980, perpetrado pelo Membro da Comissão Permanente e Presidente do Conselho Nacional da Guiné do PAIGC e Comissário Principal do Governo da República da Guiné-Bissau, o Comandante de Brigada João Bernardo (Nino) Vieira, contra o Secretário-Geral-Adjunto do PAIGC e Presidente do Conselho de Estado da República da Guiné-Bissau, Luís de Almeida Severino Cabral, assim sucessivamente, mutatis mutandis, para os dez anos que ainda sobravam como força política dirigente da sociedade e do estado da vigente democracia nacional revolucionária ao PAICV, entretanto autoproclamado legítimo sucessor de todo o legado histórico e revolucionário do PAIGC no que se referia à História e aos ingentes desafios do povo caboverdiano de todas as ilhas e diásporas (por isso, sempre denominado, por vezes acintosamente, PAIGC-CV pelos reaccionários de serviço e pelos outros empedernidos inimigos e adversários de sempre desse histórico e longevo partido).
Face a esta concreta e precisa circunstância, repare-se bem na longa e, por vezes, maiúscula e musculada maneira de se designar o regime de partido único, então implantado nas ilhas, em modos, admite-se, assaz esquizofrénicos, quiçá também com o inconfesso intuito de legitimar a sua longevidade, captar e neutralizar adversários mais propensos a eventuais compromissos políticos de cariz alegadamente patriótico, e, nesse contexto, suscitar respeito e admiração, por um lado, e, por outro lado, provocar reverência e temor ante os seus duradouros e inamovíveis rostos, sobretudo os do conhecido e muito difundido triunvirato islenho vindo da luta. Triunvirato, aliás, nem sempre tão unido assim, sempre supostamente primando por uma inabalável coesão, como se supunha cá fora dos bastidores do partido então no poder e Aristides Pereira veio desmentir, de forma tranquila mas peremptória, e para surpresa geral, nas suas memórias confidenciadas ao insistente e produtivamente teimoso jornalista José Vicente Lopes.
3. PORFÍRIO TAVARES PEREIRA, O PADRE, AFINAL CONVICTAMENTE BILINGUE, QUE FOI SACERDOTE CATÓLICO E PROFESSOR PRIMÁRIO MONOLINGUE NA ILHA DA BOAVISTA E PAI DEDICADO E EXTREMOSO DE ARISTIDES MARIA PEREIRA
Por exemplo, numa questão assaz candente, mas não abordada directamente nessa mesma entrevista.
Filho de padre, do célebre professor primário e sacerdote católico Porfírio Tavares Pereira, das nações de gente da freguesia de São Miguel, no interior da ilha de Santiago (por isso, necessariamente um inelutável badio de fora, se bem que fugindo um pouco da tradicional imagem dessa figura emblemática do caboverdiano tido pelos citadinos do sotavento e do barlavento caboverdianos por rude, orgulhoso e destemido, porque ex-seminarista erudito e voluntarioso executante da música do piano e exímio intérprete do canto gregoriano), Aristides Pereira, tal como, aliás, Germano Almeida, só comunicava em português com o pai, chefe de família condescendente, sobretudo com o filho codé da sua mãe, mas severíssimo quando se tratasse de manter certos hábitos e rotinas que ele, Porfírio Pereira, considerava imprescindíveis e de grande utilidade para a futura instrução escolar (sempre na língua de Camões, entenda-se) dos seus filhos e dos seus outros numerosos pupilos espalhados por toda a pacata, amorável, cabrera e muito musical ilha da Boavista. Ficou-lhe, assim, a Aristides Pereira o hábito de falar português frequentemente ou, pelo menos, com uma certa regularidade fora das salas de aulas, hábito esse impreterivelmente herdado do lado paterno e aristocrático da família, pois que com a mãe falava sempre o seu indispensável e corrente crioulo de todas as horas maternais e domésticas. Ficou-lhe igualmente o hábito (também no sentido próprio de habitus) de fiel católico, apostólico, romano e convicto crente em Deus, se bem que, de há muito, desde que conheceu Amílcar Cabral na Bissau dos anos cinquenta do século XX, se tivesse tornado um muito pouco praticante dos ritos e das rotinas da Igreja Católica (como, por exemplo, frequentar as missas dominicais, confessar e comungar), e se tenha transformado num firme adepto e defensor da liberdade religiosa e da laicidade do Estado e da sua separação das Igrejas, mas mantendo-se durante todo o tempo da luta de libertação (bi)nacional sempre ileso e incólume em face das muitas investidas ateístas, ou, pelo menos, muito agnósticas, do seu admirado camarada mais novo e mais que (con)fiável companheiro de luta, o assumido materialista dialéctico, engenheiro Amílcar Lopes Cabral, tanto mais que, apesar da grande influência da ideologia marxista no pensamento de dirigentes e quadros superiores e no seio de uma parte importante de responsáveis políticos e militantes do partido/movimento de libertação (bi)nacional, mas mais na sua componente materialista histórica de explicação e fundamentação das mudanças sociais e de apelo à transformação histórica progressista do mundo e das nossas concretas sociedades humanas, a esmagadora maioria dos militantes e combatentes bissau-guineenses do partido da unidade e da luta bem assim dos cidadãos conacry-guineenses eram de alguma forma religiosos (muçulmanos, cristãos, animistas, crentes em Alá, em Deus ou no Iran, tudo sempre no mais perfeito, harmonioso e natural sincretismo cultural com o animismo mágico das crenças tradicionais negro-africanas, também sobreviventes, com maior ou menor pujança, em praticamente todas as ilhas habitadas de Cabo Verde).
Por isso mesmo, considerava Aristides Pereira que um dos maiores feitos da sua vida como cidadão e patriota caboverdiano e dos seus mais de quinze anos de mandato como primeiro Presidente da República de Cabo Verde foi ter conseguido trazer ao nosso pobre e humilde arquipélago saheliano o Papa João Paulo II, vê-lo beijar o sagrado chão das ilhas e ele próprio e alguns dos seus ministros fazerem-se casar, finalmente, pela Santa Madre Igreja Católica com a bênção do Sumo Pontífice, sem quaisquer constrangimentos e pruridos laicos, agnósticos e ateístas, como eram, aliás, correntes no período revolucionário que antecedeu a conquista da independência nacional e se lhe seguiu nos imediatos anos pós-coloniais posteriores. Acrescia ainda para essas suas indescritíveis alegria e satisfação, o processo da abertura política para a democracia pluralista e multipartidária a decorrer, aliás, de muito boa feição, nos bastidores políticos do seu partido de sempre, e, espera-se que, em breve, em tempos vindouros muito próximos, sob visível e muito sonoro entusiasmo do bom e reconhecido povo caboverdiano das ilhas e diásporas, que, certamente, não deixaria de renovar a necessária confiança, agora devidamente escrutinada nas urnas em eleições verdadeiramente livres, porque pluralistas e competitivas, no partido da luta, do progresso e do desenvolvimento do país que, com muitos sacrifícios, perseverança e espírito de missão, lhe trouxe a independência política, criou e fortificou a sua fé e a sua inabalável esperança na viabilização política e económica do seu país outrora conhecido como arquipélago da fome e, como acreditava o militante nº 1 e líder imortal do nosso Partido, o saudoso camarada Amílcar Cabral, na emergência de uma outra terra dentro da nossa terra, e, agora, nesta nova fase da luta para a reconstrução nacional do nosso país, interpretando de forma corajosa e clarividente os sinais dos tempos que sopram de leste, desta vez de forma assaz auspiciosa porque portadores de muitas graças e grandes bonanças, enfim, de boas as-águas, na senda irreversível da demanda de um futuro de liberdade, de paz e de democracia para a construção do progresso social e da felicidade do nosso povo nas ilhas e diásporas.
Como teria ficado feliz o pai, o Padre Porfírio Tavares Pereira, e com ele a humilde governanta, mulher e companheira de vida, e sua mãe dilecta, dele Aristides Maria Pereira, se pudessem ter assistido a tudo isso, e às imensas, compenetradas e felizes multidões de gentes nossas católicas a rezarem com o seu Papa e abençoadas por ele no bendito solo das ilhas!...
Era com visível ansiedade que o padre Porfírio Tavares Pereira, pai de Aristides Maria Pereira, o vindouro sucessor de Amílcar Cabral, como dirigente máximo do PAIGC, e futuro primeiro Presidente da República de Cabo Verde, e de outros inúmeros filhos mais velhos tidos com a sua única mulher e mãe-de-filho e governanta da sua residência de pároco da ilha da Boavista, sita em Povoação Velha, a mais antiga da ilha, aguardava a chegada do tempo das férias. Nessa altura, por ocasião das férias grandes escolares, fazia a sua visita anual à mãe e à restante família, residente na freguesia de São Miguel, no interior da grande ilha de Santiago. O tempo de férias coincidia com o tempo das as-águas. Julho, Agosto e, sobretudo, Setembro, mas também Outubro, eram os meses da fertilidade e do esplendor das águas e os campos ficavam completamente cobertos de verde. Eram os tempos das sementeiras, das mondas, das remondas e das tresmondas, com as azáfamas dos camponeses buliçosos e embevecidos, assistindo cúmplices e laboriosos ao viçoso crescimento, à floração e à eclosão dos frutos bem nutridos das plantas nos sequeiros. Nos regadios, as mangueiras pariam sem parar e deixavam amontoadas no chão as mangas maduras sem haver quem as pudesse comer todas. Nas ribeiras, com as águas chilreando com o canto dos pássaros, proliferavam os camarões, e, nas suas margens, eclodiam espontaneamente as plantas com as sementes de mangas, goiabas, laranjas, tangerinas, deixadas ao acaso pelas pessoas que as tinham comido…Todo o interior da ilha de Santiago desabrochava num imenso paraíso de águas, amamentado do verde resplendor de Setembro…
Esses eram também tempos da comunhão total do padre Porfírio Tavares Pereira com a mãe-terra sua, com a terra-mãe dele, a grande ilha de Santiago, com a mãe dele sua, tomada de saudade e dos efeitos da passagem do tempo sobre o corpo dela, sinalizador do irreversível decurso tanto dos tempos das as-águas como também dos tempos das as-secas, tão mortíferos e maléficos na não muito distante e trágica década de quarenta, e o espírito dela, ainda alegre e lúcido e, rodeado dos seus outros filhos, muito orgulhoso do seu filho padre, sacerdote devida e rectamente ordenado segundo todas as regras canónicas da Santa Madre Igreja Católica, Apostólica, Romana, dessa Igreja que tantos filhos ilustres, nativos das ilhas, chamados padres da terra ou padres de batina preta, deu à nossa sacrificada terra, Cabo Verde, pátria do genial poeta e compositor de mornas, o nosso grande Eugénio Tavares, em língua portuguesa igualmente vate elevado e temível polemista, e pátria também dos grandes poetas neoclássicos José Lopes da Silva e Pedro Monteiro Cardoso e do exímio prosador e articulista Juvenal da Costa Cabral, todos antigos colegas no velho Seminário-Liceu da ilha de São Nicolau dele, Porfírio Tavares Pereira, ele próprio poeta nas horas vagas, assaz dotado nas técnicas da métrica e da rima, e muito honrado com publicações suas no Novo Almanaque Luso-Brasileiro, no Almanaque Luso-Africano e na revista literária Esperança, a primeira do género em Cabo Verde e dirigida pelo Cónego António Manuel da Costa Teixeira, em edições ciosamente conservadas e guardadas.
Esses tempos eram também tempos de assídua e sentida revisitação do seu dialecto crioulo da ilha de Santiago, tão arredado dos muitos afazeres da sua exausta vida e do seu exaurido quotidiano de professor primário e de pároco católico de toda a extensa ilha da Boavista, aliás, a terceira em dimensão do arquipélago de Cabo Verde, para além das suas preocupações de chefe de uma família numerosa, a qual lhe cabia e competia prover com os devidos sustentos materiais e espirituais.
Dava-lhe especial prazer conversar e trocar impressões, as mais variadas e inusitadas e sobre os mais diferentes temas, assuntos e matérias, com a mãe e com os muitos parentes, familiares e amigos de infância que iam ter com ele à casa materna a saber da saúde do seu corpo e do seu estado de espírito e das suas outras novidades de expatriado de longa duração da sua ilha natal de Santiago. Sendo muitos deles lavradores, agricultores e camponeses que nunca puderam frequentar as poucas escolas primárias então existentes no interior mais rústico da ilha de Santiago, isto é, desse interior situado longe da cidade-capital (popularmente desde sempre conhecida como Praia-Maria), das vilas e pequenas aglomerações urbanas, tais a Cidade Velha, a Assomada, o Mangue do Tarrafal, a Várzea da Igreja de São Domingos, a Achada Igreja dos Picos, a Cabeça de Carreira, os Órgãos, Pedra Badejo, a Calheta de São Miguel, a Ribeira da Barca, Chã de Tanque, entre outras povoações de perfil mais ou menos rurbanizado, era deveras muito remota a possibilidade de ele se comunicar com eles em português.
Monolingues, comunicavam-se e expressavam-se exclusivamente em crioulo, a única língua que dominavam e na qual se sentiam completamente à-vontade, como, aliás, a maior parte dos caboverdianos de todas as ilhas dos tempos dele, Porfírio Tavares Pereira, por vezes com uma profundidade de discurso e de composição oral retórica que abarcava todas as nuances e subtilezas da sua impressionante riqueza metafórica e imagética. É verdade que, embora não falando a língua portuguesa, ou tendo sérias dificuldades em falá-la com um mínimo de à-vontade (para eles, de todos os modos, o idioma português era uma autêntica língua estrangeira), compreendiam muito do que se dizia nessa língua, em razão da sua proximidade e do seu parentesco linguísticos, sobretudo lexicais, com o crioulo deles, desde que, obviamente, se fizesse uso de um nível simples de linguagem e sem muito recurso às chamadas palavras caras, aliás, muito utilizadas em discursos solenes proferidos por padrinhos de casamento que, ao se apresentarem com as vestes gramaticais e as indumentárias lexicais dessa admirada e respeitada língua das ocasiões formais, também concitavam inevitavelmente respeito e admiração.
Muito solicitados, e, por vezes, expressamente recomendados pelos pais dos nubentes, os padrinhos de casamento com tais virtudes e qualidades eram muito dados à exibição de uma pretensa e, por vezes, hilariante erudição, e os seus discursos encomendados eram muito elogiados exactamente pela sua nula e/ou pouquíssima acessibilidade ao comum dos mortais, isto é, à generalidade dos convivas das festas de casamento, bastas vezes analfabetos ou, o mais das vezes, muito pouco escolarizados (obviamente que em língua portuguesa).
Todos esses tempos passados na ilha natal eram também tempos de peregrinação aos vários pontos da ilha de Santiago em romaria de saudade aos seus amigos de infância e a antigos colegas do Seminário-Liceu de São Nicolau, muitos deles ocupados agora como professores primários em escolas e postos escolares espalhados pela grande ilha, como, por exemplo, Hugo e José dos Reis Borges, outros exercendo as suas funções de párocos nas muitas freguesias da ilha-continente (como a denominou Luís Romano, para a diferenciar da ilha de São Vicente-es país-, e da ilha de Santo Antão-es terra), tais os padres Nicolau Ferreira, Joaquim Tavares Furtado, Francisco de Deus Monteiro Duarte e Benjamim Pinto da Calle, todos sacerdotes católicos antigos, invariavelmente bem servidos por competentes e atentas governantas, ademais mães-de-filho (quase) exclusivas das suas numerosas proles. Tinha especial prazer em visitar a Cidade Velha e demorar-se pelas suas numerosas igrejas e capelas, e, em especial, na sua Igreja de Nossa Senhora do Rosário e no que restava da sua antiga Sé Catedral, onde, a convite do pároco local da freguesia do Santíssimo Nome de Jesus, o padre Nicolau Ferreira, e, até, do Bispo da Diocese de Cabo Verde, então denominada Diocese da Ribeira Grande de Santiago Menor, também participava na celebração da missa solene e se empolgava com o canto gregoriano, tudo impecavelmente feito em latim e sempre ao som do piano.
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