O voo suspenso da confiança. TACV: entre a promessa repetida e a resignação coletiva
Ponto de Vista

O voo suspenso da confiança. TACV: entre a promessa repetida e a resignação coletiva

"Repensar os transportes aéreos em Cabo Verde exige mais do que novos contratos ou novas companhias. Exige uma mudança de paradigma mental e ético. Exige reconhecer que a credibilidade de um Estado se mede pela forma como trata os seus cidadãos nos momentos de falha. Exige substituir a cultura da promessa pela cultura da responsabilidade verificável. Enquanto essa mudança não acontecer, o país permanecerá num estado de suspensão: nem totalmente imobilizado, nem verdadeiramente em movimento. Um voo que nunca aterra na confiança nem descola para a maturidade institucional."

Há falhas que se resolvem com investimento, competência e tempo. E há falhas que, quando se prolongam excessivamente, deixam de ser apenas problemas técnicos para se tornarem sintomas psicológicos de uma governação em défice de credibilidade. A situação dos transportes aéreos em Cabo Verde pertence claramente a esta segunda categoria.

Num arquipélago, voar não é um privilégio: é uma extensão do direito de existir em igualdade. Cada ligação aérea é, simbolicamente, uma ponte entre ilhas que partilham história, afetos e destino comum. Quando essas pontes se tornam instáveis, imprevisíveis ou frágeis, o impacto não se mede apenas em atrasos ou cancelamentos, mas na forma como os cidadãos passam a percecionar o Estado, as instituições e o valor da palavra pública.

Desde há vários ciclos eleitorais, o discurso político em torno dos transportes aéreos mantém uma notável coerência retórica — e uma inquietante incoerência prática. No início das campanhas, surgem as promessas de regularidade, segurança, integração territorial e respeito pelo utente. Durante a governação, reafirma-se o compromisso com reformas estruturais. No final do mandato, repete-se a narrativa da herança pesada e da necessidade de mais tempo. E o ciclo reinicia-se.

Esta repetição produz um efeito psicológico profundo. Quando a promessa se torna previsível na sua não concretização, deixa de mobilizar esperança e passa a gerar desconfiança. A frustração inicial transforma-se em cansaço moral. E, por fim, instala-se a resignação: uma aceitação silenciosa de que reclamar pouco altera, de que exigir é quase um ato ingénuo.

A psicologia social descreve este fenómeno como impotência aprendida: quando indivíduos ou comunidades, após sucessivas experiências de falha institucional, deixam de acreditar na eficácia da ação cívica. Em Cabo Verde, essa impotência manifesta-se na forma como os cidadãos já planeiam as suas viagens com margem para o erro do sistema, como se o incumprimento fosse parte natural do contrato. O problema deixa de ser exceção; torna-se norma.

No setor da aviação, essa normalização da falha tem consequências particularmente graves. Um voo cancelado ou atrasado não representa apenas um transtorno momentâneo. Pode significar a perda de uma consulta médica, de um exame universitário, de um contrato de trabalho ou de uma ligação internacional construída com sacrifício. Quando não há assistência adequada, nem reembolso justo, nem responsabilização clara, o passageiro sente-se abandonado por um sistema que deveria servi-lo.

Esta sensação de abandono é ainda mais intensa entre os membros da diáspora cabo-verdiana. Para quem vive fora do país, regressar às ilhas é um ato carregado de significado emocional. Cada viagem representa reencontros, luto, celebrações, obrigações familiares e reafirmação identitária. Quando o elo aéreo ou marítimo falha, não se quebra apenas um itinerário — quebra-se um laço simbólico entre o país e os seus filhos espalhados pelo mundo.

A diáspora observa, compara e sente. Habituada a sistemas onde o passageiro é protegido por regras claras e eficazes, confronta-se, ao chegar a Cabo Verde, com um modelo onde o erro raramente tem consequências institucionais. Esta discrepância reforça um sentimento ambivalente: orgulho na origem, mas desalento face à incapacidade do Estado em garantir padrões mínimos de previsibilidade e respeito.

Importa sublinhar que a questão não reside apenas na escassez de meios. Países com recursos mais limitados conseguiram estruturar sistemas funcionais assentes em planeamento, ética e responsabilização. O verdadeiro problema emerge quando a governação se acomoda à gestão do improviso e substitui a estratégia por anúncios. Quando o discurso político serve mais para conter a crítica do que para transformar a realidade.

Neste contexto, a ausência de uma proteção eficaz dos utentes assume contornos morais. Um sistema de transportes não é neutro: ele reflete a forma como o Estado vê o cidadão. Em muitos países, como na União Europeia, e outros países arquipelágicos, a legislação reconhece explicitamente que o passageiro não pode ser o elo fraco da cadeia. Atrasos, cancelamentos e recusas de embarque implicam compensações, assistência e reencaminhamento — não por benevolência, mas por princípio de justiça.

Cabo Verde já tentou ensaiar um modelo semelhante. Contudo, a experiência passada demonstrou que uma lei sem fiscalização, sem sanções efetivas e sem independência institucional se transforma rapidamente numa peça decorativa. Uma legislação “para inglês ver” não só falha na proteção dos cidadãos como aprofunda o descrédito, reforçando a perceção de que as normas existem apenas para cumprir formalidades, não para produzir efeitos reais.

O resultado é um sistema em que os custos do mau funcionamento são sistematicamente transferidos para os utentes. Estes pagam com dinheiro, tempo, stress emocional e, por vezes, com oportunidades de vida perdidas. Psicologicamente, trata-se de uma inversão perversa da responsabilidade: o cidadão passa a financiar, involuntariamente, a ineficiência estrutural.

Tudo isto contribui para uma vergonha nacional silenciosa — não aquela que se expressa em escândalos imediatos, mas a que se instala lentamente no quotidiano. Uma vergonha feita de pequenas humilhações acumuladas, de expectativas baixas, de frases repetidas como defesa emocional: “é assim mesmo”, “não há nada a fazer”, “Cabo Verde é pequeno e não tem recursos”, “temos de conformar”. Estas frases, repetidas sem reflexão, funcionam como mecanismos de autoproteção psicológica, mas também como travões ao progresso coletivo.

Repensar os transportes aéreos em Cabo Verde exige, por isso, mais do que novos contratos ou novas companhias. Exige uma mudança de paradigma mental e ético. Exige reconhecer que a credibilidade de um Estado se mede pela forma como trata os seus cidadãos nos momentos de falha. Exige substituir a cultura da promessa pela cultura da responsabilidade verificável.

Enquanto essa mudança não acontecer, o país permanecerá num estado de suspensão: nem totalmente imobilizado, nem verdadeiramente em movimento. Um voo que nunca aterra na confiança nem descola para a maturidade institucional.

Mas se a coragem política se aliar à integridade ética, Cabo Verde poderá transformar este labirinto numa travessia consciente. E então, talvez, o transporte (aéreo e marítimo) deixe de ser um símbolo de frustração para se tornar aquilo que sempre deveria ter sido: uma expressão concreta de coesão nacional, dignidade cívica e respeito pelo cidadão — esteja ele numa ilha, na diáspora ou em trânsito entre ambas.

Cabo Verde necessita de estabelecer contratos juridicamente vinculativos, sustentados em normas internacionais reconhecidas, que definam com clareza deveres, responsabilidades e sanções aplicáveis às companhias aéreas estrangeiras. Esses instrumentos devem assegurar o cumprimento efetivo da legislação nacional, a proteção dos direitos dos passageiros e impedir práticas abusivas num mercado assimétrico. O Estado não pode limitar-se a enunciar compromissos genéricos ou a subscrever simples “memorandos de intenções”; deve exercer plenamente a sua função reguladora, dotando-se de mecanismos de fiscalização independentes e de meios coercivos capazes de garantir o respeito pela lei e pelo interesse público.

Oslo, 25 de dezembro de 2025

Domingos Barbosa da Silva é uma figura ativa da comunidade cabo-verdiana em Oslo e autor de textos em prosa e versodedicados à emigração, à memória e à identidade cabo-verdiana. Licenciado em Farmácia pela Universidade de Oslo, exerceu como farmacéutico e colaborou como correspondente do jornal Terra Nova na Noruega. Coautor de várias obras sobre a diáspora, publicou também ensaio e romance, afirmando-se como escritor atento às raízes, às travessias e às vivências do seu povo. Reside em Oslo, onde se dedica à escrita e à leitura.

Partilhe esta notícia

Comentários

  • Este artigo ainda não tem comentário. Seja o primeiro a comentar!

Comentar

Os comentários publicados são da inteira responsabilidade do utilizador que os escreve. Para garantir um espaço saudável e transparente, é necessário estar identificado.
O Santiago Magazine é de todos, mas cada um deve assumir a responsabilidade pelo que partilha. Dê a sua opinião, mas dê também a cara.
Inicie sessão ou registe-se para comentar.